01 abril 2011

Agenda para a Política Externa no Governo Dilma

De todas as heranças boas e más que o atual governo recebeu, a política externa é uma das mais negativas. O elenco dos erros é longo e inclui, principalmente:

a) a fracassada tentativa de envolvimento diplomático na querela sobre armas nucleares do Irã com as grandes potências, que terminou levando a uma contundente derrota por 12 a 2 no Conselho de Segurança da ONU e abalou o prestígio internacional do Brasil, naquilo que terá sido o mais grave erro em toda a história de nossa política externa;

b) a abstenção em resoluções da ONU que condenavam violações gritantes de direitos humanos no Irã, no Sudão e em outros regimes ditatoriais, o que representou um sério afastamento do Brasil de sua tradicional posição na matéria;

c) a defesa incondicional do regime cubano, inclusive de sua política repressiva, com manifestações do presidente Lula em Havana no sentido de que os dissidentes em greve de fome eram comparáveis a criminosos comuns;

d) a quixotesca tentativa de desempenhar o papel de mediador entre israelenses e palestinos, que nem chegou a começar por total falta de credibilidade;

e) as sucessivas derrotas de candidaturas brasileiras ou apoiadas pela nossa diplomacia em disputas por cargos relevantes em órgãos internacionais, como na Unesco, no Banco Interamericano de Desenvolvimento, na Organização Mundial do Comércio (OMC) e em muitos outros;

f) a nacionalização da Petrobras pelo governo boliviano, que resultou na perda de um investimento de mais de US$ 1,5 bilhão;

g) a atuação diplomática muito discreta do Brasil em situações tensas e conflitivas na América do Sul, como entre a Colômbia e a Venezuela, o Peru e o Chile, ou
entre o Uruguai e a Argentina, por exemplo, o que significou um déficit comentado por diversos líderes, como a ex-presidente Michelle Bachelet, do Chile, e debilita a liderança brasileira na região.

Não é desejável frequentar Ahmadinejad, os ditadores do Cazaquistão e da Guiné Equatorial, mandar um embaixador para a Coreia do Norte, fazer gestos positivos para o ditador do Sudão. São iniciativas gratuitas que nos tiram credibilidade. Este balanço negativo fez com que a política externa se tornasse muito polêmica no Brasil. Todos os principais jornais, numerosos analistas e a maior parte da opinião pública que segue estes assuntos, todos tomaram posições muito críticas. O desafio da diplomacia brasileira, hoje, é voltar a fazer com que a política externa consiga um amplo apoio nacional e possa recuperar o terreno que o Brasil perdeu com os equívocos do governo passado.

América do Sul: Prioridades e desafios

O Brasil não se envolve em conflitos regionais há quase 150 anos. Não tem inimigos, nem enfrenta ameaças internacionais que nos obriguem a colocar a segurança nacional como um imperativo prioritário. Tem, por isso, como objetivo básico de política externa a promoção de seu desenvolvimento econômico. O comércio internacional adquire, obviamente, importância central para atingi-lo e nossos vizinhos são parceiros fundamentais.

O palco histórico do Brasil e a âncora de nossa política externa é, desde sempre, a América do Sul. Aqui estão nossas principais prioridades e desafios. A relação com os países da região está hoje assinalada pelo considerável avanço que o Brasil realizou com a expansão de sua economia e pelo fortalecimento de suas empresas estatais e privadas. Até o final da década de 1980, o comércio regional de mercadorias era inexpressivo, enquanto o investimento brasileiro nesses países era praticamente nulo.

Hoje, existe uma corrente forte de intercâmbio, uma série de empresas brasileiras possuem forte presença nos setores produtivos – sejam eles agrícolas, industriais ou de mineração e de serviços – em diversos países da América do Sul. Daí derivam algumas considerações principais que o novo governo brasileiro precisa levar em conta.

Em primeiro lugar, há que dar novo impulso ao Mercosul. O ambicioso projeto da Unasul de promover a integração sul-americana ainda se encontra em fase inicial, sendo muito mais uma ambição do que uma realidade. O Mercosul, com todas as suas falhas, é tangível. Seu relançamento deve começar por abrir mais o mercado brasileiro para nossos vizinhos. Boa parte da responsabilidade pela relativa estagnação do Mercosul, depois do ímpeto que teve em seus primeiros anos, deveu-se a que nenhum dos países membros observou suficientemente os preceitos de livre comércio entre si. O Brasil teve, inclusive, uma parte considerável de responsabilidade nisso. No momento em que existe um crescimento bastante forte e simultâneo em todos os quatro países membros, seria muito oportuno que houvesse um importante avanço na liberalização do comércio dentro do Mercosul para benefício de todos. Isto permitiria reforçar também a união aduaneira – hoje muito limitada e permeada de exceções – mediante a ampliação da tarifa externa comum, o que por sua vez favoreceria o Brasil.

O Mercosul, que parecia ter sido condenado a uma paralisia definitiva, ressurge agora como uma nova oportunidade para todos os seus integrantes, devendo ser fortalecido em suas disciplinas básicas. Como disse em meu livro O Brasil e os Ventos do Mundo: “O Mercosul é mais do que uma união aduaneira ou um mecanismo de promoção do comércio. O Mercosul tem efetivamente criado uma série de níveis de entendimento com a cooperação militar, a cooperação entre profissionais liberais, o intercâmbio educacional e cultural, em suma criou uma verdadeira intimidade que não existia antes até porque vivíamos de costas uns para os outros”.


Isto não deve significar, porém, que o Mercosul volte a ser encarado como a melhor opção de inserção internacional do Brasil, como foi o caso na década de 1990. Adquirimos um peso internacional próprio. Nem sequer do ponto de vista dos acordos de livre comércio é do interesse brasileiro estar necessariamente obrigado a encontrar um denominador comum. Seria útil realizar estudos que permitissem um certo grau de flexibilidade no conceito de negociação em bloco. Deveria ser explorada a possibilidade de que nosso país adquirisse autonomia para negociar com diversos países do mundo.

Com o fim da opção da Alca e a realização de numerosos acordos de livre comércio por muitos de nossos principais parceiros comerciais, na região e fora dela, o Brasil encontra-se na situação de ter desvantagem concorrencial pela falta de preferências comerciais. Fica, assim, dificultado o acesso de nossos produtos de maior valor agregado aos maiores mercados mundiais.

Hoje, mesmo a negociação em curso com a União Europeia parece ter poucas possibilidades de avanço, enquanto não há sequer um começo com outros grandes países. A autonomia negociadora poderia abrir novas perspectivas para o Brasil. É necessário, porém, ter em mente as limitações destes acordos, especialmente o risco de obtermos muito pouco em termos de acesso adicional a mercados em setores em que já existem contenciosos (como algodão e açúcar, por exemplo) e onde os lobbies protecionistas são muito entrincheirados e poderosos, em especial na agricultura.

Em segundo lugar, o Brasil precisa desempenhar um papel mais ativo na solução de eventuais conflitos regionais. Não se trata de impor uma presença mediadora constante, mesmo porque não é evidente que nossa intervenção seja desejada, nem que a posição brasileira seja acompanhada por todos, sempre. Porém, a omissão que caraterizou a atuação brasileira no governo passado é uma lacuna que debilita a liderança regional que pretendemos exercer. Ela deveu-se provavelmente ao cálculo de que o envolvimento poderia ser excessivamente desgastante se não fosse efetivo, ou ser visto como a tomada de partido por um dos lados da questão.

O Brasil não tem os meios militares e econômicos para impor soluções, mas tem certamente condições para exercer um peso político e diplomático considerável na região. Nossa presença não precisa ser singular. Ela pode ocorrer em conjunto com os outros países ou no contexto de ações da OEA ou da Unasul. Mas é indispensável que o Brasil tenha um papel de destaque, sem se omitir em questões fundamentais, como a paz na América do Sul. No passado, o Brasil desempenhou este papel com grande êxito em diversas situações históricas, em especial na solução definitiva do secular conflito entre o Peru e o Equador, pelo Tratado do Itamaraty, de 1998.

Em terceiro lugar, pelo peso crescente que o Brasil vai adquirindo na economia dos países vizinhos, precisamos encontrar um equilíbrio entre a submissão aos caprichos de governos populistas (como foi o caso da nacionalização da Petrobras Bolívia) e uma postura intervencionista. O governo tem a obrigação de proteger os interesses das empresas brasileiras, por um lado, mas não pode adotar uma conduta prepotente que seja explorada contra nós, com acusações de “imperialismo”.

Obviamente, o Brasil não pode ameaçar seus vizinhos, mas tem suficiente influência para dar avisos claros e tomar posições firmes em defesa de seus interesses. Foi o caso do Equador em setembro de 2008, quando o presidente Ra¬fael Correa, às vésperas de um referendo sobre uma nova constituição, expulsou a Odebrecht e ameaçou não pagar o empréstimo de US$ 200 milhões que o BNDES concedeu ao seu país para financiar as obras que a construtora levava adiante. Nesse caso, a resposta do governo brasileiro foi comedida e rápida, com o adiamento da visita do ministro de Transportes do Brasil, na qual seriam discutidos temas ligados a obras de infraestrutura viária de interesse do Equador. Na sequência, houve uma posição diplomática brasileira firme, mas discreta. O presidente do Equador “deplorou” a decisão do adiamento, mas acabou por atenuar sua posição. Os pagamentos da dívida equatoriana foram honrados. Em julho de 2010, a Odebrecht voltou ao Equador.

O caso da hidrelétrica de Itaipu é emblemático. Desde o Tratado de 1973, tem sido um ícone da colaboração bilateral com o Paraguai, tendo nosso país uma postura exemplar, que permitiu ao vizinho assumir posições paritárias na gestão da empresa Itaipu Binacional. Há alguns anos, o Paraguai reivindica a revisão dos pagamentos da sua dívida. Seria, a meu ver, um equívoco fazer concessões sobre a dívida paraguaia (já que o Brasil financiou 100% da construção da usina), pois o Paraguai terá, em 2023, 50% do grande patrimônio que é a usina, sem dever mais nada. Não devemos tampouco aceitar que o consumidor brasileiro arque com novos e maiores ônus pela energia de Itaipu, sob qualquer forma, levando-se em conta que uma parte substancial do consumo do Sudeste brasileiro é atendido por essa energia. Encontrar um equilíbrio que dê satisfação ao Paraguai é importante, porque o Brasil não pode ser uma ilha de prosperidade e precisa levar em conta as aspirações justas de seus vizinhos. Nesse sentido, o apoio brasileiro à construção de nova linha de transmissão para a capital paraguaia é muito oportuno.

Devemos contribuir na medida de nossas possibilidades para que este país possa renovar sua economia, tornando-a menos dependente do comércio eufemisticamente chamado de “triangular” e até de atividades ilícitas. Temos todo o interesse em que a economia paraguaia se fortaleça e que haja uma melhor distribuição de renda, capaz de permitir um efetivo progresso social. Será necessário encontrar fórmulas que ajudem o desenvolvimento do Paraguai sem criar uma penalização injusta para o consumidor brasileiro. Mas praticar uma política externa baseada na ideia da generosidade é um sério equívoco.

O governo passado inaugurou uma postura inédita na nossa história diplomática: a tomada de posição na política dos vizinhos. Com sucessivas declarações de apoio em pleitos eleitorais – a favor de Néstor Kirchner, Evo Morales e Hugo Chávez – praticamos o que o Brasil se abstinha de fazer desde que deixou de imiscuirse nas questões internas dos países da região há quase 150 anos, em particular desde a gestão Rio Branco (1902–1910). Esta conduta deveria continuar sendo a linha mestra da política externa brasileira. A sucessiva intervenção a favor de um candidato nas eleições dos vizinhos pode levar-nos a situações muito difíceis de manejar.

Não há motivo igualmente para continuar a demonstrar uma inclinação tão favorável a Hugo Chávez. O Brasil ignorou todos os abusos totalitários de poder, inclusive na área de direitos humanos, que o líder venezuelano cometeu, assim como suas intervenções em países da região – como o apoio que sempre deu às FARC na Colômbia, sua atuação no Peru e mesmo o incentivo e suporte à nacionalização da Petrobras na Bolívia. Com isso, foi possível construir uma relação amistosa que teve reflexos positivos no comércio e na presença favorecida de empresas brasileiras na Venezuela.

Porém, a administração venezuelana tem sido muito incompetente. A inflação está quase fora de controle, em particular no setor de alimentos, tendo chegado a 9% em janeiro passado; faltou energia elétrica e água. A Venezuela foi o único país com PIB negativo em 2010, quando todas as economias do subcontinente tiveram excelentes performances. Assim sendo, é possível que, nas eleições de 2012, o autoritário Chávez venha a perder a Presidência, especialmente se a oposição for capaz de apresentar-se unida em torno de um candidato forte. Não se trata aqui de preconizar uma atitude permanentemente crítica ao líder bolivariano, mas de exercer uma influência moderadora, tanto no plano externo (onde está perdendo influência e capacidade de liderança), quanto, sobretudo, no âmbito interno, à medida que as eleições se aproximam e podem resultar em enfrentamentos.

Riscos nas relações com os Estados Unidos

A nossa relação com os Estados Unidos não tem mais a centralidade que a caracterizava no passado recente. Mas continua a ser uma dimensão muito importante de nossa política externa. O Brasil e os Estados Unidos nunca foram inimigos e nem ameaça recíproca. Falar em relações perigosas é uma fantasia carregada de distorção ideológica. É do interesse de ambos os países ter boas relações, mas é igualmente verdade que o Brasil nunca será um aliado sistemático dos Estados Unidos. Como escreveu Peter Hakim, em artigo recente da revista Foreign Affairs Latinoamérica: “É quase inevitável que Brasil e Estados Unidos venham a divergir nos próximos anos neste continente e no mundo. […] Suas políticas e agendas refletem diferentes prioridades, abordagens e interesses. Eles não poderão sempre encontrar posições comuns ou manter suas divergências em surdina”.

Houve um rápido avanço nas relações com os Estados Unidos nos primeiros meses do governo da presidente Rousseff, que deu claros sinais de desejo de reaproximação, em decisão pragmática e acertada. Nos últimos dois anos do governo anterior, tinha ocorrido um afastamento crescente, em razão da postura antiamericana que foi adotada pelo presidente Lula e seu ministro. Superar as divergências recentes, todavia, não será tarefa fácil.

O governo americano decidiu investir mais atenção e capital político na relação com o Brasil, o que também representa um gesto construtivo. Há, porém, alguns riscos neste momento. O primeiro deles é a questão do apoio à legítima pretensão do Brasil a ter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Esta aspiração é vista pelo governo e pela sociedade brasileira como o marco mais concreto do novo status internacional do Brasil. Tendo anunciado que apoiará a entrada da Índia como membro permanente, em sua visita recente a Nova Delhi, o presidente Obama criou um precedente entre os países emergentes, pois até então os Estados Unidos nunca se tinham manifestado abertamente em favor do Japão e procuravam delongar a reforma do Conselho. Se não fizer o mesmo em relação ao Brasil nos próximos tempos, criará um desapontamento que outras manifestações positivas dificilmente poderão compensar.

O segundo risco consiste em que os americanos interpretem a aproximação em curso como um sinal de que vão receber de nós um apoio regular e que atenderemos a todos os seus pedidos, o que não acontecerá, por certo. Na agenda continental, pode haver expectativas de que o Brasil gerencie as idiossincrasias da região, em particular na Venezuela, onde há um desafio crescente à hegemonia de Hugo Chávez, ou mesmo em Cuba. Isto certamente não nos interessa, embora o Brasil deva desempenhar um papel por conta própria, especialmente no primeiro caso, para favorecer a democracia e os direitos humanos.

Adesão à OCDE: Passo importante e desejável

O Brasil precisa abandonar certos preconceitos que estão hoje totalmente superados. Por exemplo, considerar que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é um clube de ricos onde estaríamos deslocados é uma atitude míope. Por que não ingressar na OCDE? A organização, hoje liderada pelo mexicano José Angel Gurría, já fez numerosos pedidos para que o Brasil se torne membro. Durante o governo FHC, o Brasil aproximou-se gradativamente da OCDE, ingressando em diversos comitês que nos interessavam. Houve, porém, um afastamento da entidade, que ainda é tratada de forma pejorativa, por alguns setores da burocracia e da diplomacia nacionais, como o “clube dos ricos”. A adesão cuidadosamente negociada à OCDE traria benefícios palpáveis às nossas empresas em termos de financiamentos mais favoráveis à exportação e seria um adicional de peso ao status cada vez mais ponderável do Brasil na cena internacional. Na agenda internacional, esta é uma das mais importantes decisões que a presidente Dilma poderia tomar.

Direitos humanos: Sem tergiversações

Há posições morais que um país deve tomar mesmo que isto seja contrário a seus interesses econômicos. A área de direitos humanos é uma das que não devem ser objeto de tergiversações. Não foi o que se verificou no governo passado, pois a delegação brasileira se absteve em votações no Conselho de Direitos Humanos. O Brasil tem adotado algumas posturas ambíguas que desvirtuaram nossa posição tradicional e o mandato desse órgão. Destacam-se, recentemente, os votos no tratamento das violações ocorridas sobre a Coreia do Norte, Irã, Sri Lanka e diversos outros países. É frequente o uso por autoridades brasileiras do argumento de que o Conselho de Direitos Humanos não deve ser seletivo no tratamento de violações de direitos humanos. Mas ações de cada governo devem ser julgadas individualmente. A delegação brasileira também alega com regularidade ser contraproducente discutir e aprovar uma resolução sem o envolvimento do país em questão. As violações de direitos humanos não podem ser assim relativizadas, nem submetidas a dinâmicas políticas ou geopolíticas locais, sejam elas em Cuba, no Irã, na Líbia ou na China.

É por isso bem-vinda a recente afirmação da ministra Maria do Rosário no Conselho de Direitos Humanos, no sentido de que “no governo Dilma, direitos humanos não se negociam e a presidenta é intransigente com o tema”. O recente almoço em Genebra da embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo com a dissidente exilada iraniana Shirin Ebadi, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2003, foi um sinal concreto desta mudança na posição brasileira. O próximo passo coerente seria copatrocinar o projeto de resolução que cria uma comissão para investigar as violações de direitos humanos no Irã.

Relacionamento Sul–Sul, sim, mas sem criar frente unida

Uma das principais ênfases da política externa do governo passado foi no chamado relacionamento Sul–Sul, quase um tentativa de reeditar o terceiro-mundismo dos anos 1950 e 1960. Não há dúvida de que é importante para o Brasil manter as melhores relações com os mais destacados países do Hemisfério Sul. Nos últimos quinze anos, demos sempre grande importância às relações com a China, a Índia e a África do Sul. O que não tem cabimento é a ideia de formar uma frente unida do Sul (como inaugurado na conferência de Bandung, em 1955,quando se falava em países do Terceiro Mundo), como forma de oposição aos países do Norte.

Um dos fundamentos desta orientação era o declínio de poder dos Estados Unidos. Ele é sensível em termos relativos, mas está muito longe de ser intenso e decisivo. Como disse o analista chinês Minxin Pei, na edição de julho/agosto de 2009 da revista Foreign Policy: “Não creiam na badalação (hype) intensa feita sobre o declínio da América e o despertar de uma nova era asiática. Muitas décadas passarão antes que a China, a Índia e o resto da região dominem o mundo, se é que algum dia o farão”. Felizmente, esta não deve ser a ênfase do atual governo. Como disse o ministro Antonio Patriota, em recente entrevista a importante revista brasileira: “Durante o governo Lula, a linha de atua¬ção Sul–Sul ficou em evidência porque era o aspecto mais inovador da política externa. Mas já naquela época, como embaixador em Washington, eu defendia que isso não se dava em detrimento da atenção a parceiros tradicionais do mundo desenvolvido. Esse é o espírito com que continuaremos a trabalhar”.

O País deve reforçar o sistema de não proliferação

O Brasil deve procurar desempenhar um papel significativo nas discussões para reforçar o sistema internacional de não proliferação e evitar a multiplicação de armas nucleares. Devemos fazer pleno uso de nossas credenciais, que são impecáveis, pois temos um compromisso constitucional e fazemos parte de todos os acordos internacionais globais e regionais de renúncia às armas nucleares. Com as recentes evoluções na Coreia do Norte e no Irã, o próprio regime de não proliferação está sob crescente ameaça e precisa ser reforçado.

Existe, no momento, uma questão em aberto neste terreno, que é a adesão do Brasil ao Protocolo Adicional do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Esse mecanismo, criado em 1997, permite fiscalização mais precisa das instalações atômicas dos países signatários, sem aviso prévio. A rejeição do protocolo pelo Brasil é posta em questão pelos países ocidentais, em especial os Estados Unidos, como incompreen¬sível. Creio, contudo, que a decisão pode ser adiada. Por ora, não existe nenhuma suspeita internacional de que o Brasil esteja desenvolvendo um programa nuclear encoberto, embora o ex-vice-presidente da República e um ministro do anterior governo tenham advogado publicamente que o país adquirisse armas nucleares. Esta posição terá de ser reavaliada mais adiante quando o país estiver em condições de produzir maiores quantidades de urânio enriquecido e eventualmente de tornar-se um exportador.

O que não deve repetir-se é o envolvimento brasileiro com o Irã nesta matéria, no qual fomos usados pelo regime de Teerã para tentar ganhar tempo e evitar novas sanções da ONU. É patente que esse país está buscando, no mínimo, ter capacidade de dotar-se de armas nucleares. Não há outra explicação para a multiplicidade de centros – por vezes secretos – de enriquecimento de urânio. Há um impasse completo nos esforços para colocar as instalações nucleares iranianas sob salvaguardas da Agência Atômica de Viena e para obter qualquer cooperação desse país com as decisões do Conselho de Segurança da ONU. O Brasil deve defender a liberdade de cada país buscar desenvolver sua indústria nuclear para fins pacíficos. Mas não havia nenhuma razão para que o Brasil buscasse ter um papel de mediador entre o Irã e as grandes potências, para o qual nosso país não tinha motivos geopolíticos ou econômicos sérios. Este afã de protagonismo resultou em sério fracasso, já que não produziu acordo e acelerou a votação de sanções pelo Conselho de Segurança da ONU, decisão tomada por todos os membros permanentes, contra a qual votaram apenas o Brasil e a Turquia, sofrendo uma derrota contundente por 12 a 2.

Potência global e política externa equilibrada

A afirmação do Brasil como potência global está em curso, sendo cada vez mais reconhecida. A inclusão no BRIC e no G-20, o crescente interesse que recebe na grande imprensa internacional, a boa performance da economia brasileira, os progressos havidos na promoção de maior inclusão social e no enfrentamento do crime organizado no Rio de Janeiro – nossas credenciais estão em alta.
Por isso, é necessário atuar além das questões anteriormente abordadas neste artigo, em todas as suas vertentes do cenário global, em especial:

a) uma participação ativa na busca de fórmulas internacionais para equacionar o problema do aquecimento global, como vem fazendo desde que, a partir de 2009, deixou de refugiar-se atrás do conceito de responsabilidade histórica dos países que se industrializaram mais cedo e conseguiu resultados muito animadores na redução do desmatamento da Amazônia, principal calcanhar-de-aquiles brasileiro;

b) um papel importante nas principais negociações comerciais, em especial na OMC. À medida que as maiores economias ocidentais se recuperem da grande crise que começou em 2008 e quando não houver mais preocupação com o ressurgimento do protecionismo, surgirão novas oportunidades na OMC ou mesmo fora dela. A ênfase brasileira no G-20 da OMC como nosso principal grupo deve ser recalibrada, já que, como ficou evidente nas últimas reuniões ministeriais, os interesses brasileiros divergem dos da China e da Índia em matéria de agricultura;

c) o Brasil, como outros países emergentes, inclusive a China e a Índia, reivindicam maior participação no poder decisório do Fundo Monetário Internacional. Este é um importante objetivo estratégico.
Para desempenhar suas novas e crescentes responsabilidades, o Brasil precisa ter uma política externa equilibrada que não incorra nos arroubos que nos levaram a grandes desgastes em passado recente. Com os novos avanços no processo de inclusão social que, desde o Plano Real, em 1994, vem permitindo a redução gradual da pobreza e uma melhor distribuição de renda, o Brasil vai superando seu principal desafio e projetando-se internacionalmente como país democrático, pacífico e mais justo

É diplomata. Foi ministro das Relações Exteriores no período 1995-2001.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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