01 julho 2010

Ameaça do Crime Organizado à Segurança Pública no Brasil

O artigo analisa a ameaça à América Latina, em particular ao Brasil, representada pelo aumento do crime organizado transnacional. A maior presença dessa forma de crime na sociedade exigirá novas políticas públicas e nova articulação entre o sistema de defesa externa e de segurança pública doméstica. O autor levanta as questões: 1) Como superar o déficit de punição na sociedade brasileira? 2) Como superar o atual repertório de políticas Interesse 10_CTP.indd 3 6/24/10 9:15:18 PM de segurança fracas em tempos de aumento do crime? 3) A descriminalização do consumo e a penalização do tráfico podem ajudar a controlar o crime?

A origem da crise: politização da segurança pública

Entre 2003 e 2007, mais de 240 mil pessoa-s foram vítimas de homicídio no Brasil, o que significa uma média anual, no período, de aproximadamente 27 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Essa taxa coloca o Brasil entre os países mais violentos do mundo. Para ser preciso, o País está entre os 5% mais violentos do mundo, com uma taxa que é quase três vezes a taxa média mundial de 9,2, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde de 2004. Apesar de esse ter sido um período de crescimento econômico, gastos sociais elevados e redução da desigualdade, a taxa de homicídios aumentou 15% no Brasil, excluindo-se São Paulo e Rio de Janeiro do cálculo nacional.


Entre 1980 e 2007, todos os 26 estados da Federação que existiam em 1980 apresentaram aumento na taxa de homicídio. Em oito estados, a taxa aumentou mais de 200% no período. O estado mais violento do Brasil em 2007 era Alagoas, com 60,4 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, seguido pelos estados do Espírito Santo e Pernambuco, com taxas acima de 50 por 100 mil. O Rio de Janeiro ocupa uma posição singular entre os estados mais violentos do Brasil, pois tinha um nível alto de violência em 1980 e seguiu violento até a década atual. Nas grandes cidades do País o crime violento é ainda mais pronunciado: em 2007, na capital Maceió, a taxa de homicídios foi de 92,4 para cada grupo de 100 mil habitantes, e Vitória, Recife e Olinda apresentaram, em 2007, taxas acima de 55 por 100 mil habitantes, que colocam essas cidades entre as mais violentas do mundo.

As políticas forjadas em resposta ao aumento do crime violento no contexto da redemocratização não foram adequadas por vários motivos. Primeiro, o crime foi tratado como um problema relacionado com o tema da defesa dos direitos humanos, em que os abusos perpetrados por agentes estatais ocupavam o primeiro plano. O Brasil era violento, pensava-se, porque ainda não era uma democracia plena. A violência era mais um indicador do fracasso social e político do regime autoritário, que precisava ser superado, do que um problema em si mesmo.

A redemocratização seria o antídoto que gradual-mente faria com que a sociedade brasileira se tornasse menos violenta. Em segundo lugar, o próprio papel das instituições de justiça criminal (as polícias, o Ministério Público, a Justiça e o sistema penitenciário) no controle e contenção do crime estava desacreditado e enfraquecido politicamente.

Esse foi um tempo em que a energia política estava concentrada no debate sobre a necessidade de grandes reformas no sistema de justiça criminal. Foram necessárias duas décadas para se perceber que havia um espaço significativo para avançar com ações aparentemente pouco importantes, que diziam respeito à definição de prioridades operacionais e à gestão do trabalho cotidiano das instituições de Lei e Ordem, as quais poderiam ter um impacto significativo no controle do crime. O fato de que o Brasil estava próximo de se tornar um dos países mais violentos do continente mais violento do mundo foi praticamente apagado da visão das lideranças que conduziram a redemocratização.

Nas primeiras décadas da redemocratização, a sociedade brasileira optou gradativamente pela adoção de uma legislação penal menos punitiva e também por enfraquecer o papel das polícias e da justiça criminal no controle do crime e da violência. Foi e continua a ser bastante pesado para a sociedade o custo dessas escolhas erradas.

Porque o País se tornou tão violento no mesmo período em que houve uma melhora na distribuição de renda e no acesso à educação é outra questão, que ainda não pode ser respondida adequadamente. Esse contraste entre a melhoria das condições sociais e o aumento do crime define a posição singular que o Brasil ocupa entre os países mais violentos do mundo. Se considerarmos os outros países do grupo dos 5% mais violentos do mundo: Libéria, Rússia, Somália, Venezuela, Guatemala, El Salvador, Angola, África do Sul, Serra Leoa e Colômbia, somente os países exportadores de petróleo, a Rússia e a Venezuela têm renda per capita maior do que a do Brasil.

A boa notícia é que, no mesmo período em que o crime violento se disseminou pelos estados brasileiros na década passada, foram obtidas conquistas econômicas e políticas que redefiniram o papel internacional do Brasil e inflaram as aspirações das lideranças nacionais. Há reconhecidamente um movimento na elite política e empresarial do País no sentido de buscar uma maior abertura para os assuntos internacionais e para a integração regional.

Nada menos que 98% dos respondentes, em um levantamento de opinião da elite empresarial e política brasileira, realizado em 2008 por Amaury de Souza, afirmam que o País deve participar ativamente das questões internacionais e 85% acreditam que o Brasil se tornou mais importante do que era na comparação com dez anos atrás. A ideia de que o País deve participar de operações de paz da onu, enviando tropas, recebeu o apoio de mais de 70% dos entrevistados.

No entanto, para que o Brasil deixe o grupo dos 5% mais violentos do mundo e caminhe na direção da elite mundial, será necessário um enorme esforço interno na área de segurança. As sete maiores economias do mundo têm uma taxa média de homicídios que é simplesmente vinte vezes menor do que a do Brasil em 2004, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde. Mesmo com a inclusão da Rússia, a distância continua sendo grande: a taxa brasileira é seis vezes maior do que a taxa média do G-8. Se integrado como membro permanente do Conselho de Segurança da onu, o Brasil será um país muito diferente dos seus pares. Mesmo tendo a companhia da Rússia nesse grupo, seríamos quatro vezes mais violentos do que a média dos membros permanentes do Conselho.

Comércio e integração regional favorecem atividades ilícitas

A integração da infraestrutura de transporte e o aumento do comércio regional com os países vizinhos certamente trará grandes benefícios, mas há aspectos da atividade econômica que costumam interagir positivamente com o crime, pois abrem novos nichos para as atividades ilícitas. Moisés Naím define bem essa relação entre a expansão econômica e as atividades ilícitas: “Logo ficou claro que as facilidades adotadas pelos países para encorajar o sucesso do comércio legal também beneficiavam as atividades dos comerciantes ilícitos”. Isto significa dizer que o crescimento projetado para a próxima década de expansão do comércio com os países da América do Sul exigirá uma preparação adequada, não só para enfrentar o “estoque de violência” da sociedade brasileira, como também para fazer frente aos problemas que o crescimento e a integração econômica com os vizinhos e com o resto do mundo provavelmente trarão.

A boa notícia é que este movimento “para fora”, de abertura econômica e de maior integração com o comércio mundial, pode mudar a forma como a sociedade brasileira encara a questão da segurança, tornando-a de fato uma prioridade nacional. Se a liderança política do País quer ver confirmado o seu desejo de tornar o Brasil um global player na próxima década, terá de levar a sério temas como o controle do crime e a corrupção no sistema de justiça c
riminal, problemas que incidem diretamente sobre a credibilidade do Brasil como um líder nas questões de defesa e segurança.

O crime organizado como ameaça principal à segurança pública

Há uma lição que pode ser aprendida da experiência dos países que enfrentaram o crime organizado e que diz muito sobre como o Brasil deve preparar-se para enfrentar essa situação: não há melhor momento para combater a presença dessa séria ameaça à sociedade e ao Estado do que em seus estágios iniciais. Depois de certo ponto, o custo das intervenções aumenta exponencialmente para a sociedade. Essa dinâmica já é conhecida em alguns estados e cidades do Brasil e afeta diretamente a estabilidade política de vários países na América Latina.

A percepção de que o crime organizado transnacional é uma séria ameaça aos países da América Latina, e em particular ao Brasil, não é consenso entre especialistas. A exemplo do que acontece na Europa e na América do Norte, apresenta-se um debate dividido em dois campos. Na pequena comunidade de especialistas no tema há uma tendência a apresentar o desenvolvimento do sistema de transporte, a melhoria da infraestrutura de comunicação e informática e mesmo a expansão do sistema do comércio mundial com a criação de blocos econômicos, nas últimas duas últimas décadas, como fatores que geraram oportunidades inéditas para as atividades ilícitas em escala global.

Esse processo de expansão do crime organizado transnacional, por sua vez, exerce uma forte pressão sobre os sistemas nacionais de segurança pública. No entanto, a maioria dos criminologistas permanece cética com relação ao argumento de que esse tipo de crime constitui um fenômeno efetivamente novo no cenário mundial, ou mesmo que este seja particularmente relevante no contexto brasileiro. O argumento cético defende que as formas mais sérias de crime são basicamente locais, ou que, pelo menos, antes do crime se constituir como uma atividade transnacional é necessário que esse tenha uma base social local bem estabelecida.

No Brasil, a ação do crime organizado está concentrada principalmente em áreas urbanas, com uma presença crescente também nas regiões de fronteira e nas áreas de cultivo de maconha no interior do Nordeste. As formas mais organizadas de crime envolvem a cooperação entre grupos que atuam em diferentes países ou em diferentes regiões do País. Temas quase desconhecidos até a última década passaram a ter grande relevância no debate sobre a segurança pública: surgiram novos nichos de atuação do crime organizado como a biopirataria, o tráfico de órgãos, ou mesmo a falsificação de produtos industriais, além da expansão do tráfico de drogas e armas; houve, de forma concomitante com a expansão desses mercados ilícitos, um rápido desenvolvimento de novas tecnologias e de redes de comunicação que ampliaram o poder dos grupos criminosos.

Políticas de contenção e o papel das Forças Armadas

As políticas de contenção das atividades ilícitas transnacionais abrem um novo capítulo no debate sobre as políticas de segurança no Brasil. Trata-se de um problema que exige novas formas de articulação entre o sistema de defesa externa e de segurança pública doméstica. Esta, no entanto, não é uma meta fácil de ser atingida. Do ponto de vista das instituições policiais, as principais dificuldades encontradas advêm do fato de ser o crime transnacional um crime de natureza complexa, que tem certas semelhanças com crimes de “colarinho branco”, como a corrupção e os crimes financeiros. O crime transnacional, por definição, envolve atividades realizadas em diferentes jurisdições, o que acarreta pelo menos dois grandes problemas para as polícias e para a justiça estadual. Em primeiro lugar, é necessário dispor de uma razoável capacidade tecnológica e de conhecimento especializado para detectar e reprimir as atividades desses grupos. E, em segundo lugar, o sucesso das ações repressivas depende em larga medida da capacidade que os agentes estatais eventualmente demonstram em reduzir os conflitos entre instituições que atuam em diferentes níveis, ou que têm diferentes competências.

Do ponto de vista das Forças Armadas, a presença do crime organizado atinge várias de suas funções e pode ser notada uma preparação crescente para desempenhar um papel relevante nas ações de garantia da Lei e da Ordem e no controle das fronteiras. Os instrumentos legais que garantem a participação das Forças Armadas em atividades de Garantia da Lei e da Ordem (glo) foram redefinidos na última década. O marco desse processo foi a Lei Complementar no 117, de setembro de 2004. Atualmente, está em tramitação no Senado o Projeto de Lei Complementar de autoria da Presidência da República e aprovada pela Câmara de Deputados em março de 2010 (plc no 00543/2009), que altera a Lei complementar de no 97 de 1999. A nova lei permitirá às Forças Armadas fazer patrulhamento, revista de pessoas, veículos, embarcações e aeronaves e mesmo efetuar prisões em flagrante nas áreas de fronteira terrestres e marítimas do País.

Outro fator positivo nesse cenário é o aumento da participação das Forças Armadas em operações internacionais de ajuda e reconstrução. A operação na minustah (Haiti) envolveu diretamente a participação em ações de natureza policial contra grupos criminosos organizados e na repressão a atividades ilícitas. Além de contribuir para a manutenção da paz entre as facções civis que até recentemente disputavam o poder político. A missão foi renovada em 2009 com o objetivo adicional de auxiliar o governo recém-eleito a reformar e a reestruturar a Polícia Nacional, além de combater diretamente o tráfico ilícito de pessoas, o tráfico de drogas e armas e outras atividades ilegais nas quais estão diretamente envolvidos grupos criminais que atuam nos eua e no Haiti. Essas operações podem vir a servir de laboratórios para as Forças Armadas nas suas intervenções internas de glo e no patrulhamento das fronteiras, com potenciais resultados positivos para a segurança pública.

Essa é uma questão controversa na agenda da segurança pública. E para fugir de um debate meramente normativo sobre se as Forças Armadas podem ou não desempenhar um papel positivo na provisão da segurança pública é importante pensar sobre as dinâmicas dos mercados ilícitos e investigar como essas interagem com as diferentes instituições de segurança e justiça.

O vetor das drogas e das armas

A América Latina é um dos grandes centros produtores e consumidores de drogas ilícitas do mundo e também uma das regiões mais afetadas pelas atividades criminosas relacionadas com o tráfico e com a distribuição local dessas substâncias. A América do Sul, mais especificamente, é a única região produtora de cocaína no mundo, produção essa destinada a abastecer um mercado global com mais de 14 milhões de consumidores, que consomem cocaína pelo menos uma vez por ano, segundo o World Drug Report de 2007. O estudo indica que a taxa mais alta de prevalência no mundo, entre a população de 15 a 64 anos, é a dos eua, com uma taxa de 2,2% de consumo anual. Na Europa, a taxa anual de prevalência é de 1,2% na mesma faixa etária, em relação a 0,8% na América do Sul.

As pesquisas de prevalência e os dados de apreensão de drogas mostram uma presença significativa também das drogas químicas. Esses dados simples indicam que a indústria das drogas encontrou um ambiente bastante propício na América Latina e, particularmente, nos países vizinhos da América do Sul. Em primeiro lugar, há uma boa infraestrutura de transporte e telecomunicações, principalmente se comparada com outras regiões produtoras da Ásia e África, que facilitam o transporte em direção a grandes centros consumidores relativamente próximos. Em segundo lugar, não apenas a proximidade com os grandes mercados consumidores da América do Norte é importante, como também devemos levar em conta o fato de que existe um mercado consumidor interno expressivo e em expansão na América do Sul e na América Central. A taxa de prevalência de consumo de cocaína, no último ano, em Santiago no Chile, por exemplo, entre a população de 15 a 64 anos é igual à média europeia de 1,2%. Em terceiro lugar, o intenso fluxo migratório da América Latina para os eua permite uma conexão direta entre os grupos que distribuem as drogas nas cidades norte-americanas e os grupos que atuam nas regiões produtoras e no transporte das drogas. Por fim, é preciso levar em conta, ainda, a fragilidade institucional, principalmente na área de justiça criminal, que prevalece em boa parte dos países da região. O poder de corrupção das organizações que se dedicam ao tráfico de drogas vê-se ampliado diante de um sistema de justiça criminal fracamente organizado e malpreparado para a função de controle dessas formas relativamente novas de criminalidade.

Indústria da droga e violência

A indústria da droga é uma indústria ligada intrinsecamente à violência, a qual está, na sua maior parte, associada à presença dos grupos organizados que produzem, distribuem e traficam drogas pelos países da região. A pressão que esse problema exercerá na agenda pública dos países da região e em particular no Brasil, devido à sua renda relativamente alta e vantagens logísticas, não será pequena, principalmente em função da magnitude considerável da indústria das drogas na América do Sul.

A principal commodity ilícita exportada pelos países da América do Sul é a cocaína em suas várias formas. As fontes disponíveis de informação convergem na identificação de duas características da produção de coca: 1) entre 60% e 70% da área cultivada de coca está na Colômbia e 2) a produção de coca na Colômbia, na primeira metade da década atual, tem diminuído discretamente, combinada com um aumento do cultivo na Bolívia e no Peru. A diminuição observada é, à primeira vista, pequena, mas, quando comparamos esses resultados com a explosão do cultivo e da produção constatada na década anterior, esses resultados ganham importância. Em 1990, a área cultivada com coca na Colômbia era estimada em 40 mil hectares, em 1995 passou para 50 mil e, em 1999, cresceu quatro vezes em relação ao início da década e atingiu 160 mil hectares, como indica o relatório da unodc de 2008. Apesar de ser a Colômbia ainda o principal produtor mundial de coca, posição que atingiu no final da década de 1990, foi na década atual que, pela primeira vez, foram constatadas diminuições sucessivas nas áreas de cultivo.

Conexão entre mercados ilícitos de drogas e armas

Há uma conexão importante entre os mercados ilícitos de armas e drogas que precisa ser detalhada analiticamente, porque isso tem grande impacto na forma como a distribuição da droga ocorre nas áreas urbanas. Como a insegurança jurídica é a principal característica de qualquer atividade ilegal, as organizações que atuam nesses mercados precisam alocar recursos para propinas de autoridades públicas, comprar armas para defesa, contratação de “seguranças”, entre outros custos que compõem o “custo da ilegalidade”. A alocação de recursos nas organizações do crime organizado é determinada, em larga medida, pela necessidade de combater as organizações rivais que podem expropriar seus negócios sempre que tiverem capacidade para tal. A relação entre armas e violência não é clara. Por um lado, a predisposição para o combate diminui quanto mais armados estiverem os grupos rivais, o que potencialmente contribuiria para reduzir o custo social da violência. Na medida em que o custo de perder uma luta aumenta com a adoção de armas mais potentes, a propensão ao conflito diminui. Por outro lado, o uso de armas de fogo introduz imprevisibilidade no conflito entre os grupos, fato que beneficia, sobretudo, os contendores mais fracos. A presença desse fator equalizador, a arma de fogo, produz um aumento na disposição para o conflito entre os combatentes mais fracos, o que pode levar, em consequência, a níveis mais altos de violência.
Os mercados ilícitos de armas e drogas têm, no entanto, uma diferença importante: armas são produzidas legalmente para depois serem transferidas para o mercado ilegal em algum ponto do processo de comercialização. O grande desafio das políticas para o setor não é propriamente o de regular o acesso legal às armas (embora esse seja um tema preferido de muitas ongs e movimentos sociais), mas a capacidade de controle das transferências ilegais de armas para os grupos criminais organizados.

Cresce o uso de armas de fogo em homicídios

Há indicadores agregados que permitem avaliar a importância das armas para o crime organizado. Nos estados do Brasil onde esse problema é mais grave, tende ser maior também a participação dos homicídios por armas de fogo no total de homicídios.

Em Pernambuco, 84% dos homicídios no ano de 2004 foram praticados com armas de fogo. No Espírito Santo e no Rio de Janeiro, esse percentual é de 75% e 82%. Para que se tenha um parâmetro de comparação, nos estados do Amazonas e do Piauí esse percentual não chega a 40%. À medida que o crime organizado avança, aumenta a participação de armas de fogo nos homicídios. No estado de Pernambuco, em 1980, a razão entre os homicídios causados por armas de fogo e os homicídios causados por outros meios era 0,94. Ou seja, há 29 anos, morria-se mais por facadas e agressões do que pelo disparo de armas de fogo. Em 2002, a mesma razão passou a ser de 6,9, o que significa que a taxa de homicídios por armas de fogo é quase sete vezes maior do que a taxa de homicídios cometidos por outros meios. Esses dados indicam que ocorreu uma acentuada disseminação do uso de armas de fogo nos homicídios, fenômeno que é concomitante ao aumento da presença do crime organizado em vários estados do Brasil.

Agentes e Vetores da Mudança

Como superar o déficit de punição sem grandes reformas institucionais? O Brasil, como os demais países da América Latina, tem um sistema de justiça criminal relativamente pequeno e pouco operante dado o nível de criminalidade observado. De maneira geral, os países da América Latina, com exceção do Chile, têm um nível de encarceramento e de policiais por habitante muito baixo, dado o nível de violência que apresentam. Esses países formam, na verdade, um cluster bastante homogêneo. A situação do Brasil ficaria ainda pior se São Paulo fosse excluído do cálculo nacional. Nesse caso, a taxa de encarceramento do Brasil só seria maior do que a da Venezuela, país que nos dez anos entre 1998 e 2007 observou um crescimento de 160% na taxa de homicídios por 100 mil habitantes. Isso mostra que, de maneira geral, os países da América Latina têm optado por manter um nível muito alto de impunidade penal. Penas de prisão têm sido aplicadas com muito menor frequência do que seria esperado, dado o nível de criminalidade violenta desses países, e a disponibilidade de policiais acompanha a mesma tendência. No Brasil, há menos de dez presos para cada homicídio, enquanto que nos eua há 82,8 e no Chile, aproximadamente 87. Na Itália, são 84 presos para cada homicídio e na França, 137. O número de policiais por homicídio também se verifica em um patamar muito diferente do dos países da América Latina e mesmo dos eua: são 411 e 536 policiais por homicídio respectivamente.
É possível observar diferenças nas políticas de segurança pública seguidas pelos estados. São Paulo apresenta taxas de encarceramento acima da média nacional (305 por 100 mil habitantes) e acima dos dois estados que estão entre os mais violentos do Brasil, Pernambuco e Rio de Janeiro. No entanto, o padrão de encarceramento de São Paulo, apesar de ser o estado com a maior taxa de prisões no Brasil, é ainda muito distante do observado nos estados norte-americanos da Califórnia (487 por 100 mil) e Nova Iorque (326 por 100 mil).

São Paulo, terceiro estado menos violento do País

O estado de São Paulo tornou-se, no curto período de uma década, um dos estados menos violentos do Brasil. Em 1999, São Paulo era o quinto estado mais violento do Brasil e, em 2007, tornou-se o terceiro menos violento do País, perdendo apenas para Santa Catarina e Piauí. Todos os demais estados do Sudeste e do Nordeste, com grande população, como Pernambuco e Bahia, são mais violentos do que São Paulo. Se computado o número de homicídios nos demais estados do País, excluindo-se São Paulo, a taxa nacional seria de 29,0 por 100 mil, o que é quase duas vezes a taxa do estado de São Paulo, de 14,8 por 100 mil habitantes.

São Paulo não é o único exemplo de que é possível obter a redução do crime por meio da expansão da capacidade operacional do sistema de justiça criminal. No Rio de Janeiro, houve um avanço importante com o desenvolvimento de novas ferramentas de gestão e com a adoção de políticas inovadoras para as áreas controladas pelo tráfico de drogas e pelas milícias. O primeiro passo com o objetivo de reverter o quadro de baixa eficiência das polícias foi a criação de ferramentas de gestão que permitiram o acompanhamento de metas de desempenho. Paralelamente ao esforço de melhoria do sistema de gestão, o estado do Rio de Janeiro adotou uma política de permanência nas áreas urbanas, até então ocupadas pelo crime organizado (traficantes de drogas e milícias) e nas quais não era possível exercer o policiamento de forma ordinária. A política recebeu o nome de Polícia Pacificadora. Em cada área recuperada é implantada uma Unidade de Polícia Pacificadora (upp). O momento tem sido propício à quebra da inércia produzida por décadas de políticas erradas, que concederam aos traficantes e milicianos o papel de provedores dos serviços de segurança nessas áreas. O principal pressuposto da política é que sem o efetivo controle e desmantelamento das organizações criminosas qualquer outra intervenção social ou urbana tende a gerar resultados de baixo impacto para o desenvolvimento econômico e social dessas áreas.

A polícia pacificadora busca desarticular o controle do tráfico e das milícias na medida em que exerce o policiamento ostensivo nas áreas recuperadas em bases permanentes e com um contingente específico para esse fim. O efetivo da pm tem sido redimensionado com o objetivo de garantir uma presença permanente em áreas até então desprovidas desses serviços, inclusive com atendimento a chamadas do 190 e com a realização de prisões em flagrante de forma regular. O policiamento ostensivo é acompanhado da oferta dos serviços de polícia judiciária por parte da Polícia Civil. O tempo transcorrido das intervenções ainda é curto para permitir uma avaliação dos seus efeitos, mas indicadores simples, como a variação no número de homicídios e nos autos de resistência (mortos pela polícia em situações alegadas de confronto), mostram que há uma variação na direção esperada. Na Cidade de Deus, a maior área sob intervenção do programa de Polícia Pacificadora, no período de janeiro a maio de 2009, em comparação com o mesmo período do ano anterior, houve uma queda de 46% nos homicídios e de 77% nos autos de resistência.

A política de upp tem recebido forte apoio da parte do público, principalmente nas áreas sob intervenção, e há uma possibilidade tangível de vir a iniciativa a consolidar-se como uma política de estado no Rio de Janeiro. A política
da upp visa, em última instância, promover uma equalização dos riscos de vitimização entre diferentes grupos sociais, o que demandará uma mudança na escala da oferta dos serviços de segurança pública e um rápido desenvolvimento de ferramentas gerenciais que permitam aumentar a eficácia das ações repressivas e preventivas desenvolvidas pelo sistema de justiça criminal. A meta anunciada pelo governo é recuperar, até 2014, a capacidade de policiamento no conjunto das áreas hoje controladas pelo tráfico e pelas milícias na cidade do Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro representa provavelmente um caso extremo no Brasil de ineficiência, corrupção e violência policial, mas a trajetória recente da política de segurança no estado demonstra que é possível, mesmo em contextos institucionais muito degradados, empreender ações que, no curto prazo, são capazes de reduzir o número de crimes e ampliar o poder de intervenção do sistema de justiça criminal.

Políticas fracas em tempo de crise

Desde a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1997, a grande novidade na área foi a proposta de criação do Sistema Único de Segurança Pública (susp), em 2003, apresentado como o início de “uma nova etapa na história da segurança pública brasileira”, com a intenção de articular as ações dos diferentes níveis de governo na área da segurança pública e da justiça criminal. Na prática, no entanto, o projeto apoiava-se muito mais em uma retórica de cooperação do que em mecanismos baseados em incentivos. E o ótimo apelo da sigla não resistiu à fragilidade de sua engenharia institucional.

O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), de 2007, é outro exemplo de uma iniciativa federal que também não apresenta um balanço muito convincente até o momento. Esse programa tem uma série de características que, em certo sentido, marcaram uma ruptura com as iniciativas anteriores na área, mas até o momento é possível dizer apenas que o programa é mais um conceito, um anúncio, do que propriamente um projeto consistente com objetivos viáveis. São 94 ações propostas para serem realizadas até 2012, quase todas de natureza educacional, cultural e assistencial, voltadas para os segmentos demográficos de maior risco de vitimização. A retórica empregada prevê uma nova conjugação entre políticas de segurança pública e políticas sociais e o seu elemento diferencial é o foco na juventude e também no território (as regiões metropolitanas mais violentas do País).

Os recursos mobilizados pelo governo federal para promover essas iniciativas não são desprezíveis. No orçamento de 2009, estavam previstos gastos de r$  1,2 bilhão. Do montante incluído no orçamento, 45% serão gastos com bolsas de complementação salarial e mais 13% para desenvolver políticas sociais. Deduzidos ainda os gastos com administração e propaganda, restarão r$ 450 milhões previstos para serem gastos em 2009 nas atividades-fim, o que corresponde a 39% da dotação total.

O Pronasci tem um caráter bastante centralizado no que diz respeito à definição das políticas, embora os governos municipais tenham um papel importante na sua execução. O Ministério da Justiça exige, por exemplo, que os municípios participantes criem um Gabinete de Gestão Integrada, sem o qual não será possível receber recursos federais, e estabelece ainda um modelo de policiamento único, de tipo comunitário, para as guardas municipais. O Ministério da Justiça passou também a gerir diretamente projetos sociais, como o “Mulheres da Paz” e o “Proteção de Jovens em Território Vulnerável”. Outra característica importante do Pronasci é que prioriza os gastos indiretos com programas sociais e projetos “estruturantes” das polícias – não-relacionadas com a atividade-fim – que preveem gastos em ações, como a recuperação de instalações físicas, treinamento, aquisição de sistemas de computadores, entre outras despesas do gênero.

A sustentação política do Pronasci tem crescido desde que foi lançado, em 2007 (sua implementação ocorreu em 2008). Em parte porque, ao destinar recursos para o investimento em programas educacionais e de lazer, o programa amplia o interesse dos políticos locais nessas verbas, pois o retorno eleitoral desse tipo de intervenção (por exemplo, inaugurar uma nova quadra de esporte em um bairro de periferia) é provavelmente maior do que desenvolver um novo sistema de gestão para as polícias, ou mesmo equipar a polícia com novas viaturas. O ônus de provar que esta quadra esportiva não terá qualquer efeito significativo na redução da violência ficará, em larga medida, restrito ao debate acadêmico. Mais uma vantagem: é quase impossível, do ponto de vista político, em um país desigual como o Brasil, opor-se a gastos sociais, mesmo que esses sejam feitos à custa de investimentos na segurança pública.

O Pronasci tem servido, assim, para acomodar os interesses corporativos das polícias estaduais e os interesses político-eleitorais de seus formuladores e operadores em nível federal e também nos estados e nos municípios contemplados pelo programa. No entanto, há aspectos do Pronasci que se constituem até mesmo como um obstáculo à construção de políticas eficazes de redução do crime em nível nacional. São medidas fracas em um contexto de crise. Em quase todos os estados do Brasil, há extensa presença de redes de crime organizado, corrupção policial em larga escala, exploração sexual de crianças, epidemia de crack, um dinâmico mercado ilícito de armas, roubos e invasões de domicílio em grande número. Há uma dura lógica econômica que motiva boa parte desses crimes, e imaginar que poderemos controlar problemas dessa natureza com medidas de caráter social, com construção de quadras de esporte e atividades culturais para jovens, ou com medidas que têm como foco a participação comunitária na política de segurança, parece uma aposta arriscada contra a mecânica do crime organizado.

A descriminalização do consumo e a penalização do tráfico podem ajudar a controlar o crime?

Há um último aspecto a ser considerado: a política criminal diante das drogas. Entre os caminhos imaginados pela liderança política do País para atingir a redução da violência têm ganhado peso as propostas de
descriminalização do consumo de drogas. A política europeia de focalizar a redução dos danos e a diminuição das sanções legais contra os consumidores é geralmente apresentada como um modelo a ser seguido. Na América Latina, Colômbia e México são apresentados como casos de fracasso por seguirem a “política repressiva globalmente promovida pelos Estados Unidos”, como afirma a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia. A única ressalva feita à política europeia pela Comissão é que esta não enquadra corretamente o problema da redução do consumo interno, o que produziria uma externalidade negativa para os países produtores da América Latina.

Os países hoje com a legislação mais tolerante em relação ao consumo de drogas no mundo, como Holanda, Suíça e Portugal, também estão entre os países menos violentos do mundo. Na verdade, são países que nunca viveram ondas de crime violento no século xx comparáveis ao que ocorreu em países como Brasil ou eua. E só recentemente a ação de grupos criminais, principalmente do Leste Europeu, tem trazido preocupações adicionais às polícias desses países, que continuam tão seguros quanto eram antes da adoção de suas legislações liberalizantes.

O exemplo europeu tem servido aos reformadores como base para o argumento de que drogas e violência formam um binômio a ser desmembrado pela política de descriminalização; bastaria tratar o consumo de forma mais branda (de preferência com medidas de redução de danos) e o tráfico com penas mais duras, que a diminuição da violência seria alcançada. Ao assumir como um modelo para a política antidrogas no Brasil a experiência de países europeus, que são no mínimo trinta vezes menos violentos, corre-se o risco de excluir do alcance da legislação justamente o principal problema doméstico nessa área: o desafio de controlar os grupos organizados armados que traficam drogas e que recorrem extensivamente à violência na relação com grupos rivais, com as comunidades em que atuam e com as polícias.

Boa parte dos recursos públicos dos sistemas estaduais e federal de segurança pública no Brasil são empregados justamente na solução desses problemas, ligados mais ao tráfico do que aos problemas produzidos pelo consumo. Quais serão os efeitos desse transplante de legislação para o contexto de alta violência que prevalece no Brasil e nos países da América Latina é outra pergunta em aberto.

O movimento no sentido da redução das sanções penais, ou mesmo das sanções não-penais contra os usuários tende a produzir efeitos colaterais negativos, como também produz incentivos assimétricos na cadeia de produção e distribuição das drogas, o que pode ser particularmente danoso aos jovens, principalmente os de menor renda e escolaridade, dada a sua forte participação nesse tipo de atividade. Para os grupos de maior renda na sociedade, no entanto, essa política tem alguns efeitos positivos. A proibição do tráfico combinado com a despenalização do consumo é a melhor solução possível para esse segmento, melhor do que qualquer alternativa, como a legalização da produção e do comércio, ou mesmo o equilíbrio das sanções entre consumidores e traficantes, como argumenta o economista Gary Becker no seu artigo de 2004.

Diversas estimativas disponíveis indicam que a maconha, a cocaína e a heroína são inelásticas com relação ao preço da oferta. Isso faz com que os consumidores de menor renda sejam mais afetados do que os de maior renda na sua decisão de consumir esse tipo de droga. A resposta dos consumidores mais pobres pode ser, por exemplo, o engajamento no tráfico de drogas e em outras atividades ilícitas como uma forma de financiar o seu consumo. O problema fica agravado quando levamos em conta o fato de que o custo da punição por tráfico de drogas é menor para as pessoas com menos educação e com menos oportunidades no mercado legal de trabalho. Assim, como a punição legal é tempo-intensiva e o tempo dos pobres tem menor valor, produz-se uma diferença entre classes quanto ao valor da punição.

Além disso, o custo da reputação é maior para os ricos, ou seja, esses farão o possível para evitar uma condenação porque isso pode significar perdas substantivas de renda no futuro. Esse fator faz com que a proibição e a aplicação de sanções produzam o efeito esperado nesse segmento. Ou seja, o custo do consumo aumenta com a proibição quando os consumidores têm maior renda, maior escolaridade e mais oportunidades de trabalho em atividades legais. Os efeitos da proibição e do controle policial entre consumidores pobres, no entanto, são dissipados pela prática de discriminação no preço das drogas: traficantes normalmente praticam preços menores para consumidores locais em relação aos preços oferecidos aos consumidores que não moram na sua área de negócio.

Tendo em vista essa análise dos incentivos econômicos operados pela legislação antidrogas é possível entender por que os grupos de maior renda geralmente pressionam os governos pela adoção de políticas mais duras contra o tráfico de drogas e mais brandas contra o consumo. Essa tem sido a lógica prevalecente nas mudanças legais adotadas no Brasil e que terão impacto significativo nas políticas públicas de segurança em decorrência das externalidades produzidas pelo consumo da droga.
Serão as novas lideranças eleitas em 2010 capazes de fazer alguma diferença e melhorar o desempenho das polícias, da justiça e do sistema penitenciário, tornando-as instituições mais eficazes no cumprimento de suas metas e mais bem avaliadas do ponto de vista do público? Em uma região caracterizada por altos níveis de desigualdade e pobreza e deficiências marcantes na provisão de serviços de saúde e educação, para darmos alguns exemplos, é muitas vezes difícil aceitar a hipótese de que as políticas de segurança pública têm uma identidade própria como política pública. No entanto, o argumento de que as ações difusas, apresentadas como preventivas, devem ter primazia sobre as ações dissuasórias não parece uma escolha justa do ponto de vista da atual geração de jovens, que continuará exposta a níveis altos de violência enquanto esperam pelos efeitos do desenvolvimento econômico ou pelos benefícios que pode trazer a melhoria das condições sociais no futuro.

Os recursos que serão necessários para controlar o crime na sociedade brasileira, sem ilusões de atalhos políticos, certamente farão falta para atender a outras demandas sociais igualmente urgentes. Como sociedade, é preciso as pessoas estarem preparadas para o dissenso sobre como será possível atingir esses objetivos, mas dificilmente uma legislação tolerante com o consumo de drogas, ou a destinação do orçamento da segurança pública para programas sociais terá qualquer implicação positiva para o trabalho do sistema de justiça criminal, tendo em vista o alto nível de violência e criminalidade na sociedade brasileira. Com certeza as escolhas políticas nessa área não serão fáceis.


é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, onde coordena a Escola de Segurança Multidimensional (ESEM-USP)

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