América do Sul, Venezuela e o Day After Maduro
A o contrário do que previa Fukuyama, a história no início do século XXI não só não parou como disparou. Os Estados Unidos da América reveem unilateralmente seu papel de líder democrático e intervencionista em escala mundial, tanto do ponto de vista político-militar como do ponto de vista comercial. A Europa Ocidental fragmenta-se dramaticamente não só através do Brexit, mas também pela crescente desconfiança de suas nacionalidades periféricas – Polônia, Hungria, Espanha e Grécia – de que a delegação de poderes regulatórios à burocracia de Bruxelas gere mais custos do que benefícios às suas ambições nacionais. O crescimento demográfico negativo europeu associado ao fluxo migratório de população dos orientes mediterrâneo e norte-africano acrescentam fatores de fricção local de gravidade crescente, com o avanço de forças políticas conservadoras. A Rússia vê nessa turbulência mundial uma oportunidade rara de reconstruir seu papel histórico de potência na Europa e no Oriente Asiático. A China se reafirma como o novo polo de poder mundial através de um protagonismo político-comercial que se espalha gradualmente pelos vizinhos asiáticos, chegando com vigor na África e na América do Sul.
Não é razoável supor que a América Latina, em geral, e a América do Sul, em particular, permaneçam imunes a tantas oscilações político-comerciais de caráter transcontinental. Neste cenário, o objetivo deste pequeno preâmbulo histórico é o de desconstruir a narrativa de que a América Latina passa por um período de instabilidade política característica de sociedades atrasadas culturalmente e não adaptáveis a regimes políticos democráticos.
Tomando alguns casos como exemplo: o México e o Caribe progrediram econômica e socialmente nos últimos 50 anos. Ambos beneficiaram-se do crescimento da economia norte-americana e europeia. Cuba e Nicarágua fracassaram no seu propósito de conciliar comunismo com prosperidade econômica e paz política. Na vertente Pacífica da América do Sul, Chile, Peru, Colômbia e Equador passaram por graves crises institucionais, mas chegaram ao século XXI em condições políticas muito melhores do que há 50 anos. Do lado do Atlântico, a América do Sul se beneficia do “boom das commodities” do início do século, mas, infelizmente, não soube gerir suas instituições de modo a garantir a sustentabilidade de seus programas de crescimento econômico. No Brasil, as instituições democráticas vêm prosperando desde 1985, a despeito da crise de questionamento das instituições tradicionais do modelo democrático-representativo desde as jornadas de junho de 2013, agravadas pela recessão em 2015.
A Argentina não conseguiu retomar seu crescimento econômico: o governo Mauricio Macri não foi bem-sucedido e Alberto Fernández ameaça adotar políticas peronistas populistas e fiscalmente insustentáveis. No âmbito político, no entanto, é importante destacar que a transição de poder de Macri a Fernández ocorre de maneira exemplarmente ordenada e democrática.
Em resumo, a América do Sul, seja pelo critério geográfico, populacional, econômico ou político está melhor do que estava há 50 anos. Examinemos, por fim, dois países da América do Sul, que hoje estão mergulhados em graves crises institucionais, Bolívia e Venezuela. O caso da Bolívia é muito didático. Evo Morales deu ao país 13 anos de estabilidade política, feito extraordinário num país que sempre foi o campeão regional de turbulências institucionais. Do ponto de vista econômico, foi bem-sucedido na medida em que se afastava das políticas macroeconômicas heterodoxas e respeitava, embora com restrições, as exigências do mercado e dos empreendedores privados. No entanto, Evo Morales sucumbiu à tentação continuista e fracassou na fraude eleitoral que orientou as eleições de 2019. A transição política é hoje uma incógnita, mas claramente distingue-se das quarteladas que historicamente contaminaram a história política da Bolívia e de seus vizinhos.
Finalmente, chegamos à Venezuela. O que ocorrerá após a queda de Nicolás Maduro? Mesmo sem bola de cristal é possível afirmar que o day after do país vai depender, principalmente, de três variáveis, a saber: i) o papel do petróleo na economia do país; ii) a relação com os Estados Unidos da América; e iii) a decisão de se desvincular gradualmente de suas conflitivas opções ideológicas e orientar suas forças econômicas, comerciais e políticas com o Mercosul, do lado do Atlântico, e com a Aliança do Pacífico, do lado do Pacífico.
Venezuela, fundadora importante da Opep
Para responder à primeira variável, é necessário voltar à importante década de 1960, na qual a Venezuela já demonstrava alta dependência econômica das exportações de petróleo e, sob a presidência de Rômulo Betancourt, funda junto com Irã, Iraque, Kuwait e Arábia Saudita a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Apesar de, na literatura, não se dar o devido papel protagonista à Venezuela, esse país foi responsável pelo primeiro passo de idealização da Opep décadas antes da criação da organização na Conferência de Bagdá em 1960. Ainda em 1949, sob a presidência do militar venezuelano Carlos Delgado, a Venezuela já iniciava diálogo com esses mesmos quatro países com o objetivo de compartilhar perspectivas e conhecimentos sobre a produção de petróleo. No entanto, com o fracasso da iniciativa, o preço internacional da commodity seguiu declinando. Décadas a seguir, em 1961, é aprovado na cidade de Caracas o estatuto da Opep, com o fim de delimitar a identidade e os principais objetivos da organização. Dotada de caráter intergovernamental e permanente, desenhava-se um oligopólio árabe-venezuelano para controlar as flutuações do preço internacional da commodity.
Em 1974, o preço do barril do petróleo triplica e, sob a presidência de Andrés Pérez (1974-1979), o setor de petróleo é nacionalizado na Venezuela e a ação diplomática do país torna-se ainda mais ativa, iniciando uma euforia petroleira até 1984. Para Celso Furtado (1974), “nos próximos dois decênios a Venezuela poderá ter saltado a barreira que separa subdesenvolvimento de desenvolvimento”. Sentiu-se dona da imensidão do petróleo, provocando um frenesi nacional baseado em uma visão limitada de desenvolvimento. O aumento repentino da rentabilidade do setor petroleiro venezuelano decorrente da alta do preço da commodity resultava em aumento do emprego e da renda da mão de obra do setor mais competitivo da economia do país, com pico de produtividade e aumento do salário real em 1978. Como consequência, a própria arrecadação do Estado aumentou, possibilitando o investimento em políticas públicas a partir do excedente de divisas. No entanto, o aumento do grau de especialização da pauta de exportação venezuelana agravou ainda mais a falta de dinamismo econômico.
O chamado crescimento sem desenvolvimento traduziu-se em uma década de 1980 de declínio econômico, endividamento externo, deterioração da condição de vida da população e aumento da pobreza. A concentração excessiva da economia em apenas um produto, negligenciando o setor industrial, resultou, no longo prazo, em alta dependência da volatilidade do preço internacional da commodity. A doença holandesa mostrou na prática venezuelana o perigo da abundância do recurso natural com altas vantagens comparativas, não acompanhado de uma gestão eficiente com investimento na dinamização de outros setores da economia.
Na década 1990, por sua vez, com base no ressentimento das políticas liberalizantes propagadas por Washington, a presidência de Rafael Caldera (1994-1999) lançou um giro diplomático que promove o afastamento dos Estados Unidos e a aproximação ao Mercosul, especialmente ao Brasil. O estreitamento de laços encontra reciprocidade na retórica e na prática: é inaugurada a rodovia BR-174 que liga Manaus a Pacaraima; instala-se uma Comissão Binacional de Alto Nível formada pelos chanceleres dos dois países, abrindo espaço de diálogo bilateral sobre diversos temas; assina-se o Protocolo de la Guzmania entre Caldera e Itamar Franco, que se compromete com o desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável e com justiça social; e inicia-se a integração energética com o Norte do Brasil (Roraima, Amazonas e Amapá); aumenta-se progressivamente o intercâmbio comercial de bens e serviços até o Brasil alcançar a marca de segundo maior parceiro comercial da Venezuela em 2007. Por último, e como gesto de importância da Venezuela para a chancelaria brasileira, liderada à época por Celso Amorim (1993-1995), o presidente Caldera discursa na Assembleia Geral das Nações Unidas apoiando um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU para o Brasil.
No âmbito do regionalismo, desde o início do mandato de Caldera, a Venezuela demonstrou interesse em fazer parte do Mercosul, além de apoiar enfaticamente a iniciativa brasileira da Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa). Nesse cenário, as agendas de política externa de Brasil e Venezuela convergiam na perspetiva Sul-Sul de incremento da integração sul-americana fazendo frente ao Nafta.
A segunda variável, não menos importante, sobre a relação com os Estados Unidos, é marcada, historicamente, ora pelo alinhamento carnal (roubando aqui propositalmente o conceito argentino), ora pela distância ideológica da narrativa anti-imperialista. Na América do Sul, a Venezuela caracteriza-se como o “centro irradiador da independência colonial” (VIZENTINI, 1996). Com uma economia essencialmente primário-exportadora e uma história política dotada de forte presença militar, o século XX venezuelano é caracterizado por instabilidade e disputa de poder interno entre militares e a elite agrária. As ditaduras militares na Venezuela – no plural, pois foram diversas – tinham como costume o vínculo estreito com os EUA. Os curtos períodos de democracia populista, pintados com o verniz nacionalista, eram ora antiamericanos, ora estreitamente alinhados a Washington. No plano econômico, reina a forte ligação com os Estados Unidos – mercado tradicional da principal commodity venezuelana – mesmo em fases de projeto nacional-desenvolvimentista doméstico e de diplomacia autônoma. Dessa forma, a administração de Caracas oscilava entre um nacionalismo democrático antiamericano e um nacionalismo militarista com ditaduras pró-Washington.
Como terceira e última variável, a cooperação Brasil-Venezuela é, sobretudo, complementar. São muitos os benefícios da integração: negociação coletiva em organismos multilaterais, redução da dependência aos Estados Unidos e China, integração energética, cooperação amazônica, etc. Especificamente, retomar os planos originais de transformar a Venezuela em ofertante de energia elétrica para todo o Norte do Brasil, não apenas de Roraima, é um horizonte especialmente importante no exercício de pensar o day after Maduro. Manaus é o principal polo de consumo de energia do Norte do Brasil e é muito mais próxima e melhor conectada com Caracas do que com outras grandes cidades brasileiras. É mais econômico para a classe média manauara passar férias nas ilhas do Caribe venezuelano do que na costa atlântica brasileira.
Venezuela necessitará de grande ajuda externa
No entanto, a Venezuela pós-Maduro necessitará de ajuda externa em grandes proporções. Atualmente, sua população encontra-se dividida em diferentes países: Colômbia, Argentina, Chile, Brasil, Espanha, Estados Unidos, dentre outros. Certamente, um problema psicossocial que marcará as próximas gerações de cidadãos venezuelanos. No âmbito econômico, hiperinflação, perda de divisas, a maior taxa de desemprego da história, pobreza extrema e racionamento de bens básicos são marcas que necessitarão de apoio estrangeiro e o retorno da sua mão de obra qualificada para uma recuperação que, ainda assim, tardará décadas. Resta-nos torcer para que, com uma boa gestão, a agenda econômica leve o país a praticar política interna e externa aliada aos benefícios potenciais de inserção do país nas cadeias de valor sul-americanas, seja via industrial, seja no campo agrícola, como também no setor de serviços.
José Botafogo Gonçalves, diplomata, é vice-presidente emérito do Conselho Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Ministro de Estado da Indústria, do Comércio e do Turismo (1998). Embaixador do Brasil na Argentina (2002-2004). Ariane Costa é mestre em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialista em Negócios Internacionais pelo Iesp e coordenadora de Projetos da Fundação Konrad Adenauer.
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