28 junho 2023

Análise pessimista do governo Lula, mas com esperança de estar errada

Avaliar governos com menos de seis meses de mandato é risco que pode comportar injustiças. O destino ainda não se cumpriu; há tempo para que a realidade seja transformada. Alterar o curso do presente é missão dos grandes políticos, sobretudo, em momentos de crise. O futuro do governo Lula está, portanto, em aberto. Dependerá do […]

Avaliar governos com menos de seis meses de mandato é risco que pode comportar injustiças. O destino ainda não se cumpriu; há tempo para que a realidade seja transformada. Alterar o curso do presente é missão dos grandes políticos, sobretudo, em momentos de crise. O futuro do governo Lula está, portanto, em aberto. Dependerá do que venha a fazer de si próprio. O início, no entanto, está dado: as circunstâncias da eleição, da transição, da posse e dos primeiros meses não retroagirão e já permitem uma primeira visão a respeito do governo.

Há mais de uma década o Brasil está em desequilíbrio. Já em abril de 2013, a pedido do editor desta Revista, escrevi artigo a respeito do governo de Dilma Rousseff, apontando uma série de problemas preocupantes. Desconfiava que a então presidente não estaria à altura do desafio. O leitor poderá se certificar (https://interessenacional.com.br/dilma-do-desafio-historico/) de que o quadro pintado já continha as tintas do pessimismo que, infelizmente, se confirmou. Ainda o carrego.

Após o impulso da estabilização econômica, com o Plano Real – governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso –, os primeiros mandatos do presidente Lula puderam avançar na inclusão social e na distribuição de renda. Mas, desafortunadamente, ele e sua sucessora não compreenderam a complexidade das transformações estruturais na economia, na sociedade e na política que sem apresentavam.

Desafios históricos impõem sensibilidade e conhecimento; exigem nova forma de pensar e novo modo de comunicação; novo modelo político e novo tipo de liderança. Equilíbrio entre segurança e ousadia. Elementos escassos no Brasil e no mundo contemporâneos.

Do impeachment para cá, uma ruptura foi tentada, colocando em risco e agredindo as instituições. Ao contrário do que certo senso comum afirma, elas não têm funcionado com eficiência, antecipando-se aos efeitos deletérios das mudanças. Em especial, o governo Jair Bolsonaro, se é que se deu conta dessas transformações, tentou mesmo foi implementar marcha-a-ré reacionária em direção à Idade Média. O balanço final de seu governo aponta inegável retrocesso.

O sistema político afundou-se no hiperfisiologismo e é ainda menos eficiente do que sempre, cobrando crescentes taxas de barganha. A renovação das lideranças deu-se por seleção negativa; a qualidade, comparada à média histórica, é aceleradamente cadente – possivelmente, nunca esteve em nível tão baixo. Isso inclui os Poderes Executivo, Legislativo e uma parcela do Judiciário.

O país que o presidente Lula recebeu em 2023 registra um legado que o faz morder a língua ao se lembrar de ter qualificado de “herança maldita” o que recebeu, 20 anos antes, das mãos de Fernando Henrique Cardoso. Também a situação do planeta é mais delicada e sufocante. O jogo está mais difícil ao passo em que os times são de pior qualidade.

■  Lula, da prisão ao Planalto

Ocioso discutir os motivos que levaram Luiz Inácio Lula da Silva à prisão. O fato é que ao livrar-se dela, no final de 2019, o então ex-presidente passou a expressar alternativa de poder. Inicialmente, recolheu-se a seus companheiros, na expectativa de que o Supremo Tribunal Federal (STF) lhe restituísse os direitos políticos. Por precaução, falou e sinalizou pouco.

Eram tempos de temor de que Jair Bolsonaro destruísse o quadro de políticas públicas acumuladas ao longo de décadas, além de liquidar a jovem e frágil democracia brasileira que, em menos de 30 anos, passara por dois processos de impeachments – que não são, exatamente, passeios de domingo, na Avenida Paulista.

Temor justificado porque o Brasil não era único canto em deterioração política. Uma mancheia de países encontra-se em crise, e isso tem colocado em dúvida, no longo prazo, a continuidade da democracia em boa parte do planeta. Vários autores têm demonstrado que democracias morrem ou podem morrer, mesmo em países de forte tradição democrática.

Enfim, as condições em que Lula venceu a eleição e chegou ao poder em 2023 são muito piores do que no passado. Se isso pode servir de atenuante na avaliação deste início de mandato, também é verdade que as crises provam a liderança política: pelo menos até aqui, o presidente não tem atendido às expectativas de desempenho, apresentando mais dificuldades e defeitos do que virtudes destacáveis.

São circunstâncias labirínticas desde sempre conhecidas que não poderiam ser tratadas com desleixo. Evidências internas e externas de um mal-estar rondando o mundo são indicadas há pelo menos uma década e meia. Livre da prisão, ao projeto lulista de retorno ao poder caberia preparar-se para elas, articulando condições para seu contorno. Mesmo o período de prisão deveria servir para avaliar erros e acertos da experiência dos 13 anos de poder petista. Somar acertos e subtrair erros; chegar a um saldo realista.

Era essa expectativa de parte do mundo político em 08 de março de 2021, quando o ministro do STF, Edson Fachin, anulou as condenações de Lula, relacionadas à Lava Jato. Nasceria, naquele momento, um novo Mandela, um Pepe Mojica, capaz de conduzir o país à pacificação de um novo pacto político?

Nos primeiros meses, Lula deu sinais naquela direção. Pronunciou-se em várias ocasiões, em tom moderado: com Bolsonaro, o país estava em riscos, não haveria espaço para ressentimentos; o Brasil precisava ser recuperado. Boa parte da comunidade política imaginou a aglutinação dos setores democráticos: da centro-direita à esquerda, ou até espaço para a esperança de uma “terceira via”. A ilusão se desvaneceria ao longo do processo eleitoral.

Dado os absurdos de Jair Bolsonaro – negacionismo na pandemia, a agressividade com a imprensa e medíocre desempenho do governo –, o cenário da não reeleição passou a ser provável. Se Lula não errasse (muito), suas chances seriam concretas. Paradoxalmente, foi isso que parece ter agido para que o então ex-presidente avaliasse desnecessário compor uma frente mais ampla que as estreitas alianças de esquerda de seu partido.

O “já ganhou” o fez ignorar apelos para a ampliação, superando antigas divergências, articulando convergências mínimas. Uma segurança temerária enfraqueceu as pressões pela formação de uma frente realmente ampla e robusteceu o ressentimento do candidato e de seus companheiros em relação ao impeachment e à prisão. A maior parte do sistema político e da economia nacional foi colocada de lado.

■  Obsolescência de lideranças e diagnóstico incorreto

Na vertigem do processo de transformações, o mundo noutra rotação, 20 anos parecem passar rápido. Mas, é tempo mais que suficiente para que uma geração de lideranças se esgote. O término da vida e a obsolescência das carreiras políticas são inevitáveis. Em 20 anos, o PT perdeu seus melhores quadros dirigentes. O núcleo-duro de Lula, em 2002, foi-se: Luís Gushiken, Márcio Thomaz Bastos e Duda Mendonça; Antônio Palocci e José Dirceu; Frei Beto, Ricardo Kotscho e Luís Dulci. O “Estado-Maior” fez falta na campanha de 2022 e, agora, no governo.

Sem equipe capaz de situá-lo dos fatos, potencializá-lo, corrigi-lo, ou a ele se contrapor, Lula perdeu massa crítica, capacidade de análise, elaboração, correção, coordenação e articulação políticas. A geração que se sucedeu não está à altura da anterior ou do desafio atual. Pelo menos, ainda não está. O downgrade é incontestável.

As circunstâncias de 2022 não foram compreendidas, talvez porque as referências sejam do século XX. Movimentos sociais clássicos, sindicatos e partidos perderam corpo e expressão. Os problemas percebidos parecem de outro tempo e paisagem. Instrumentos antes inexistentes – redes sociais, análise por micro dados, comunicação digital – foram assimilados em graus abaixo da concorrência. Mais agressiva, a política renunciou à fleugma, armou-se da explosão psicológica, da manipulação e da mentira. 

■  Eleição quase perdida

O favoritismo de Lula era demonstrado pelas pesquisas, dada a rejeição que Bolsonaro construiu contra si – também demonstrada pelas pesquisas. Mas, em que pese a geral disfuncionalidade, uma vez no cargo o presidente é, naturalmente, competitivo. A reeleição foi inventada para reeleger: as condições de competitividade são desiguais e, no caso de 2022, o uso da máquina foi de fazer corar os mais cínicos.

O PT parece não ter se dado conta de nada disso e Lula quase perdeu uma eleição que ganharia com facilidade, maior fosse seu arco de alianças. Portanto, não foi apenas o abuso da máquina e dos recursos públicos em magnitude pornográfica até para os padrões brasileiros que dificultaram o jogo. Também a soberba, o distanciamento político, os vacilos nos debates e os erros do candidato e de seu staff quase puseram tudo a perder.

No sufoco, Lula socorreu-se de Simone Tebet – candidata do PMDB no primeiro turno –, de artistas, políticos e do mundo econômico, todos os que rejeitavam Bolsonaro. O que realmente decidiu a eleição foi o fato de o antibolsonarismo mostrar-se, por pequeníssima margem, superior à soma do antipetismo com o bolsonarismo e o clientelismo.

A ambiguidade de Lula durante quase toda a campanha foi um artifício para evitar perder apoios se revelasse o que de fato ia à sua mente: uma posição bem mais à esquerda do que em mandatos anteriores; mais assemelhada ao governo Dilma do que as condições eleitorais poderiam assimilar.

A defesa da democracia foi verdadeira, mas também houve um biombo para ocultar peculiaridades ideológicas e uma série de problemas políticos. A questão democrática tomou todo o debate, temas programáticos foram prejudicados ou suprimidos. Se isso veio a calhar no momento, mais tarde se revelaria como um problema estrutural do governo.

A frente de Lula não pode ser entendida em termos clássicos. Foi, antes de tudo, um disforme ajuntamento antibolsonarista, em defesa da democracia. Importante, mas distante de todo o potencial que poderia expressar. Um quadro assim, é claro, teria desdobramentos: a indefinição e a superficialidade cobrariam alto preço na transição, na formação e nos primeiros meses do governo.

■  A transição e o governo

Atípica em termos democráticos – Bolsonaro não reconheceu a derrota –, a transição foi resultado do atabalhoado processo eleitoral. Sem clareza do que seria a equipe adequada aos novos tempos, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, assumiu a coordenação para, hierarquicamente, conter petistas como Gleisi Hoffmann e Aloisio Mercadante. Foi um processo ziguezagueante, com pouca clareza de objetivos, que prepararia as bases de um governo oblíquo.

A transição reuniu tantos setores quanto conseguiram demonstrar poder de pressão sobre o PT e o presidente eleito: corporações, políticos e uma federação de grupos identitários. Legítimos, sim, mas incapazes de comporem-se entre si. Formou-se um todo conflitivo com dificuldades de realizar sínteses políticas e programáticas.

Acrescenta-se a necessidade de rever o orçamento deixado por Bolsonaro: uma peça irrealista diante das condições que seriam enfrentadas pelo novo governo. O presidente eleito pode, então, verificar que o Congresso Nacional, mais de uma década depois, guarda quase nenhuma semelhança com o que conviveu entre 2003 e 2010. Principalmente, na Câmara dos Deputados.

Um Parlamento tomado por uma forma superior de fisiologismo, o hiperfisiologismo. Que, fortalecido com a fragilidade do governo de Jair Bolsonaro – obrigado a ceder em troca de blindagem política –, tomou para si o controle de parte do orçamento federal. A eleição legislativa de 2022, forjada em torno disso, não apenas manteve como até acentuou o apetite por recursos públicos. Na atual legislatura, essa voracidade vem se alargando.

Habituado a compor governos a partir da participação dos partidos no ministério, Lula buscou, para o terceiro mandato, legendas compreendidas no chamado “centro político”. Além da frente eleitoral, acolheu PDT, MDB, PSD, União Brasil e sinalizou para parcelas do Centrão. Na lógica que animou a formação de quase todos os governos desde a redemocratização, distribuiu ministérios e cargos.

Decidiu centralizar recursos de liberação de emendas em seu ministro das Relações Institucionais: forma de estabelecer relações diretas com os partidos, retirando poder de intermediação de caciques do Congresso. Na tradição do Presidencialismo de Coalizão, deveria ser o suficiente para formar maioria Parlamentar. Não foi.

É cedo para afirmar, mas há indicação de alteração no modelo de composição de maioria parlamentar, no Brasil. A fragmentação do sistema partidário em geral e de cada partido em particular, além do superpoder dos presidentes do Legislativo – como Arthur Lira –, tem transformado a relação entre Executivo e Legislativo. A lógica do Centrão se impôs. 

O Poder Executivo estaria perdendo controle sobre a agenda do Legislativo, ficando muito mais exposto aos interesses dos parlamentares. Não se trata de mudanças na direção novo sistema de governo, como o Parlamentarismo ou o Semipresidencialismo. Antes, essa hipótese indicaria a primazia da oligarquia congressual, uma “Coalizão de Oligarquias”.

Equívocos da pré-campanha à eleição, a cadente qualidade de quadros, a pouca clareza programática, a degeneração do sistema político. O processo aqui descrito, as escolhas feitas ao longo do tempo – path dependence –, tudo indica que o governo não poderia ser diferente do que ao final resultou: elevado número de ministérios, com pouca efetividade geral.

Um ministério, repleto de disputas, com reduzida coordenação ou comando políticos; poucas ilhas de excelência setorial, precária articulação política. Um todo conflituoso, com possibilidade de explodir. O ministério envelheceu precocemente.

■  Abraçado ao passado

Até aqui, o governo Lula tem se valido do fato de “não ser Bolsonaro”. Não é pouca coisa. Mas, tampouco, é suficiente. O país tem enorme dificuldade em compreender o presente e olhar para o futuro. Como no filme “Adeus, Lênin” (Alemanha, 2003, direção: Wolfgang Becker), o governo parece ter dormido no passado para acordar no presente sem perceber brutais transformações. Sem compreender o presente, não haverá futuro. Seria um “Adeus, Lula”?

Indícios e evidências nesse sentido são robustos: na economia, o equilíbrio fiscal não deveria ser nada mais que o básico obrigatório. O chamado arcabouço fiscal não pode ser tomado como um projeto econômico. A Reforma Tributária, há anos sobre a mesa, é condição sine qua non para o desenvolvimento, mas não o substitui integralmente.

No Meio Ambiente, confusões e desencontros de objetivos abalam pilares da política ambiental e descapitalizam parte do patrimônio político internacional do Brasil. Não há clareza de um modelo de exploração sustentável da riqueza ambiental, embora haja acúmulo e inteligência social para isso.

Na confluência desses dois fatores, o governo não consegue normalizar relações com o agronegócio, e até aprofunda conflitos – a começar por provocações do próprio presidente da República.

No front externo, não se poderia supor que o governo de Lula pudesse se permitir tantos erros e sandices. As sinalizações que o próprio presidente da República tem dado são péssimas. Flertes com regimes autocráticos são a negação do motivo maior de sua eleição: a defesa da democracia.

Confusões de um início de governo? Mesmo assim, imperdoáveis para quem possui a experiência e a presumida sagacidade de Lula.

■  Conclusão

Este artigo não se escora à perspectiva otimista, embora não o faça com prazer. Não se permite recorrer a cenários edulcorados, ao gosto do que, afinal, se gostaria de ouvir. Contentar espíritos iludidos não é a melhor forma de colaborar para a correção de rota e a reversão dos erros.

Seu principal sentimento – felling, mesmo – indica que o governo Lula se isola da realidade, do presente e da sociedade de forma precoce e acelerada. O governo tem aberto várias e simultâneas frentes de conflito, o que não é permitido sequer para iniciantes. A ausência de um Estado-Maior, experiente e capaz de alertar ao presidente sobre seus passos perigosos ou em falso, é a falta que parece gritar mais alto.

Com tudo isso, trata-se de um governo que reanima a oposição contra si. Fosse uma oposição de melhor qualidade, Lula estaria numa situação bem mais complicada, ao mesmo tempo em que o país não precisaria assustar-se com ela, temer os mesmos retrocessos que recentemente superou. Mas, não é. Muito pelo contrário.

As circunstâncias são determinantes. Mas, a boa liderança política busca contorná-las, mudar seus rumos, mitigar seus efeitos. Neste momento, o país não conta com lideranças desse tipo. Há um vazio ou elas ainda estão apenas em botão. Em 2013, analisando o governo Dilma, nesta mesma revista, afirmei que “a vantagem do pessimista é que vale a pena estar errado”. Não estava errado. E, dez anos depois, constrangido, vejo-me obrigado a repetir a mesma frase. Com o receio de não estar errado.


CARLOS MELO é cientista político e professor Sênior Fellow do Insper. Escreve semanalmente no canal Headline (carlosmelo.headline.com.br)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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