10 outubro 2018

As Eleições longe dos Fatos

“A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os factos não estiver garantida e se não forem os próprios factos o objecto do debate.”

Hannah Arendt

À medida que se aproximam as datas em que os brasileiros irão às urnas (no dia 7 de outubro, para o primeiro turno, e no dia 28 do mesmo mês, para o segundo), duas perguntas vêm atazanando os analistas, as autoridades, os candidatos e os eleitores.


  1. Como vão se comportar as urnas em tempos de “pós-verdade” e “fake news”?

  2. A televisão e o rádio, na propaganda eleitoral gratuita, terão mais peso que as redes sociais para formar a opinião dos eleitores?

  1. Sobre as “fake news”, a “pós-verdade” e as eleições brasileiras

Comecemos pela primeira pergunta. A preocupação com as fake news tem fundamento total. Mais do que isso, toda paranoia em torno do assunto será perdoada – e justificada –, principalmente depois do que aconteceu na eleição do republicano Donald Trump para presidente dos Estados Unidos em 2016. Em sua edição de 10 de setembro daquele ano, a revista semanal The Economist, depois de observar de perto e analisar em profundidade as mirabolantes falsificações que serviram de combustível para a campanha do magnata, dedicou uma capa ao assunto. “A arte da mentira: a política da pós-verdade na era das redes sociais”, foi a chamada.[2] Segundo a revista, o divórcio entre o discurso político e os fatos teria se agravado violentamente. A campanha de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, em grande parte abastecida por notícias fraudulentas[3], seria a marca histórica do abandono da verdade factual pelo discurso político.
A Economist tinha sua razão; muitas inverdades choveram a favor de Trump durante a campanha eleitoral. Em alguns casos, por descaminhos impossíveis de prever. Mentiras produzidas em terras longínquas, como a Macedônia, inundaram as redes sociais americanas de manchetes sensacionalistas como “O Papa apoia Trump” ou “Barack Obama não é americano”. As notícias fraudulentas, as típicas “fake news”, não eram mentiras quaisquer. Tinham a aparência de relatos de registros factuais objetivos, com a fisionomia de peças jornalísticas, como se tivessem sido produzidas por uma redação profissional. Daí, aliás, o nome “fake news”: notícias falsificadas, fraudulentas, são notícias fajutas, nem tanto porque contam lorotas, mas principalmente porque falsificam sua própria natureza, isto é, fingem que são notícias jornalísticas e não são, passam-se por algo que não são, como uma nota falsa de dólar. As “fake news”, portanto, são fake independentemente do que noticiarem. Enquanto uma notícia jornalística autêntica – que, não nos esqueçamos, pode conter erros graves e mesmo distorções intencionais – provém de uma origem certa e sabida, as “fake news” não têm origem conhecida, assim como não têm compromisso com os fatos. Só o que fazem é difundir birutices a serviço de causas espúrias, ocultando sistematicamente o lugar de que surgiram.

As “fake news” dão lucro
Além da origem enigmática, outro traço distintivo das “fake news” do nosso tempo está no seu caráter lucrativo. As “fake news” dão lucro, ainda que modestos. Alguns dos inventores dessas sandices, como os garotos da Macedônia que produziam “conteúdos” falsos a favor de Trump, não entraram no ramo por motivos partidários; apenas queriam arrecadar uns trocados com base nas fórmulas de remuneração das plataformas de redes sociais e de buscas eletrônicas na internet. Sempre soubemos que a mentira é tão antiga quanto a linguagem, tão velha quanto a humanidade, assim como sabemos que a mentira na política tem a mesmíssima idade da própria política – Platão, que abominava os mentirosos, já admitia, em A República, que, para proteger a cidade, o governante às vezes tem que mentir. Mas, a mentira que agora toma de assalto o debate público nas redes sociais é uma espécie nova de mentira. Trata-se de uma nova atividade comercial, ainda que semiclandestina, uma atividade que gera bons dividendos. No cyberespaço, a mentira deixa de ser um recurso da intriga ou da maledicência e se estabelece como uma ocupação lucrativa, na qual não estão implicadas as preferências ideológicas do autor. Tudo é uma questão de mercado. Os cybermoleques da Macedônia – como ficou evidente em reportagens e documentários – não tinham predileção eleitoral por Trump, assim como não tinham nenhuma ojeriza específica contra sua adversária democrata, a infeliz Hillary Clinton; eles promoviam suas invencionices a favor do republicano simplesmente porque isso dava mais retorno nas redes, atraía mais “likes” e mais engajamentos e, consequentemente, acabava lhes rendendo uns trocados (pois as plataformas remuneram aqueles que fazem “posts” que alcançam grandes audiências). Os falsários macedônios, a exemplo de tantos outros, até tentaram fazer “posts” apoiando Hillary, mas acabaram descobrindo que o eleitorado de Trump era mais propenso ao consumo das “fake news”. Foi só isso. Foi só dinheiro – e nem foi tanto dinheiro assim. Uma ninharia. Café pequeno.
Mas, as encrencas das eleições americanas de 2016 foram bem maiores do que a mera distribuição de “fake news. A cada dia que passa, fica mais difícil para Trump e seus subalternos refutarem as acusações de que agentes russos, mais ou menos ligados a Putin, atuaram para disseminar propaganda inescrupulosa a favor do bilionário. Alguém ali combinou tudo com os russos e, como parte da tramoia foi descoberta, o ex-chefe da campanha dele, Paul Manafort, foi preso em junho passado. Em agosto, o presidente americano também teve de reconhecer que seu filho teve uma reunião misteriosa com uma advogada russa, o que complica um pouco mais o cenário. Pouco antes, ele reconhecera, de um modo um tanto evasivo, uma eventual participação de agentes russos em sua propaganda. O FBI continua com as investigações. O cerco aperta. Avolumam-se as evidências de que o lado maligno das mais complexas e soturnas tecnologias atuou em prol do obscurantismo sufocante, que foi gerado pela aliança entre um reacionário americano e um herdeiro do stalinismo soviético. O que se verificou, aí, foi algo aterrador: uma potência estrangeira, a Rússia, pode ter tido parte na violação da soberania popular dos Estados Unidos. Em razão disso, autoridades no mundo inteiro passaram a ver nas “fake news” um rastilho de ameaça à segurança nacional de qualquer país.

Riscos da interferência estatal
O temor se manifestou também no Brasil. De olho no exemplo estadunidense, representantes dos três poderes da República ficaram de orelhas em pé. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral até agosto passado, ministro Luiz Fux, resolveu se antecipar e convocou uma comissão do Estado brasileiro, com gente da Abin e do Exército, além de uns representantes da dita sociedade civil, para combater as “fake news”, e os estragos que elas podem provocar no processo eleitoral que se aproxima.
A iniciativa é boa, mas os riscos da interferência estatal são sempre altíssimos. A despeito das boas intenções de Fux, começaram a pipocar indícios apavorantes em torno da comissão convocada por ele. Houve rumores de que burocratas seriam chamados para criar filtros tecnológicos com o objetivo de reduzir o alcance das notícias fraudulentas. Surgiram indicações de que técnicas de vigilância seriam implementadas para espreitar as conversas na internet. Lá pelas tantas, pairou no ar a suspeita de que, nos recônditos do Estado brasileiro, alguém estava costurando um monstrengo, um big brother tropical, uma horrenda criatura frankensteiniana para colocar a sociedade sob o monitoramento implacável de um panóptico togado, um leviatã invasivo. Então, em boa hora, o ministro Luiz Fux viu por bem anunciar uma declaração de princípios que acalmou as almas mais aflitas. “Contra notícias falsas, nós precisamos de mais imprensa e mais jornalismo”, discursou ele no dia 20 de junho. Foi um sinal bem-vindo de que nenhuma medida censória estava a caminho. Agora é esperar para crer.
Que não paire dúvida alguma. Se o Estado resolvesse interceptar o debate público, provocaria um mal incomensuravelmente maior do que aquele que pode ser causado pelas “fake news” – e que já é incomensuravelmente gigantesco. Não custa reafirmar os princípios óbvios, nem que seja para relembrá-los aos desavisados. Só a liberdade de expressão e o direito à informação, garantidos em sua mais cortante radicalidade, conseguem conter a mentira na democracia. Não há outro caminho, como bem mostrou a História dos autoritarismos e totalitarismos do século XX.
Para ajudar a sociedade a combater as “fake news”, essa novíssima modalidade de produção em larga escala da mentira que sabota a democracia, o papel do Estado só pode ser o de fortalecer a imprensa, a liberdade, o debate e as condições plurais para que as opiniões se enfrentem. Qualquer coisa fora disso é delírio de prepotência.
Do lado da imprensa, ganharam corpo no Brasil ações de colaboração entre órgãos de imprensa independente, como o Projeto Comprova, que reúne redações de diferentes empresas (como Editora Abril, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Globo, entre outras[4]), para desmontar boatos maliciosos, vindos dos políticos ou de origens incertas e não sabidas. Além disso, organizações como Lupa, Aos fatos, Truco e outras dedicam-se a desbaratar invencionices e manipulações mal-intencionadas de dados. A França, durante a campanha eleitoral vencida por Emmanuel Macron, adotou fórmulas parecidas e obteve excelentes resultados. Vamos ver se vai dar certo aqui também.


  1. Sobre o duelo entre televisão e redes sociais

O utra frente de combate às “fake news” – e à pós-verdade – vem da própria dinâmica dos partidos e seus discursos na campanha eleitoral aberta. Não que os partidos digam a verdade – eles mentem como o diabo. Ocorre que a disputa pela preferência dos eleitores leva os candidatos a agirem como fiscais recíprocos uns dos outros, o que funciona como um arranjo particularíssimo e concentrado de “checks and balances”, o mecanismo de freios e contrapesos, tão essencial nas sociedades livres. Os partidos mentem, mas, por outro lado, servem para se desmentir uns aos outros. Por isso, quando a propaganda eleitoral começar nos horários reservados no rádio e na televisão, espera-se que o efeito devastador das “fake news” nas redes sociais seja ao menos atenuado.
Os candidatos que representam o mainstream partidário (PT, PSDB, MDB e mais uns poucos) estão confiantes de que o rádio e a televisão vão contribuir para que os exageros das fraudes que trafegam pela internet sejam contidos. Não surpreende que as siglas troquem todos os princípios que têm – e principalmente os princípios que nunca tiveram – por alguns segundos a mais no horário eleitoral da TV e do rádio.
Ninguém ignora a força das redes. É sabido que, nos Estados Unidos, Trump se beneficiou delas para se eleger. É sabido que, empossado na presidência, tenta se comunicar com as massas diretamente por meio do Twitter, num bonapartismo digital bastante curioso. No Brasil, também as redes são fortes. Já em 2010, Marina Silva, com pouco tempo no horário eleitoral, alcançou a marca dos 20 milhões de votos. Pelas análises posteriores, viu-se que boa parte desse montante veio do uso que ela fez da internet. Mesmo assim, não se deve ignorar que, no Brasil, onde a internet ainda não tem uma cobertura total, a televisão alcança 97,4% dos lares, onde é vista diariamente, como um hábito, pela quase totalidade dos brasileiros.
Para se ter uma ideia desse peso, basta lembrar que, em 2014, Marina Silva, que se valia tão bem das tecnologias digitais da internet, foi destroçada em poucos dias pela propaganda na televisão. Um pouco antes do segundo turno, o que se viu foram armas publicitárias de destruição em massa. Marina Silva crescera nas pesquisas e ameaçava ganhar um lugar no segundo turno. Para desconstruí-la, a propaganda do PT disparou contra a adversária calúnias e maledicências. Aproveitando-se da casualidade de Marina Silva contar com o apoio da respeitada educadora Neca Setúbal, que por acaso é também acionista do banco Itaú, a campanha de Dilma Rousseff a acusou de estar a serviço de banqueiros e de querer tirar o prato de comida da mesa do trabalhador.
O efeito dessa tática foi fulminante. Dilma dispunha de 11 minutos e 24 segundos diários no horário eleitoral. Marina Silva, que era candidata a vice na chapa de Eduardo Campos, pelo Partido Socialista Brasileiro, e assumiu a candidatura à Presidência da República após a morte de Campos, num acidente de avião no dia 13 de agosto de 2014, tinha apenas 2 minutos e 3 segundos. Não tinha o tempo necessário para se defender. Despencou em duas semanas.
Vale relembrar os números. Em meados de setembro daquele ano, as pesquisas eleitorais a colocavam em empate técnico com Dilma Rousseff na liderança do primeiro turno, com aproximadamente 34% das preferências dos eleitores. Nas urnas do primeiro turno, registrou apenas 21,3% dos votos, contra 33,5% de Aécio (segundo lugar) e 41,5% de Dilma (primeiro lugar). As redes sociais não foram suficientes para proteger os votos de Marina Silva.
A marquetolagem do PT, sob a batuta de João Santana, precisou de uns poucos dias para estraçalhar as esperanças da rival de Dilma. O PT se valeu de ataques – não se pode deixar de registrar – covardes, indignos e mentirosos. Dizer que Marina Silva arrancaria da mesa o prato de comida do trabalhador foi um dos pontos mais baixos da disputa de 2014. Vista no plano ético, a estratégia adotada foi inominável, repugnante, inaceitável. Mas, do ponto de vista técnico, funcionou. E funcionou por quê? Muito simples: porque Dilma dispunha de transbordante minutagem na televisão; porque Marina só podia contar com as redes sociais.
De casos assim, vamos aprendendo que, embora as redes e as tecnologias digitais sejam cada vez mais influentes e mais presentes, a velha TV – e também o rádio, não custa frisar – ainda ocupam os nervos centrais do espaço público no Brasil. Isso mudará, com certeza absoluta, mas ainda não mudou.

Bolsonaro será derretido pela campanha na TV?
Nesse quadro, a pergunta da temporada se volta para Jair Bolsonaro, o ser que vocaliza a defesa da ditadura pelas vias da democracia. A pergunta é a seguinte: Bolsonaro – a ponta de lança que deixa entrever uma das vertentes pelas quais a democracia pode, sim, resultar na negação de si mesma – será ou não desidratado, como se diz, ou derretido, como também se diz, pela campanha da televisão? Os tucanos acreditam que será. Os petistas também acreditam. Sem quase nenhum segundo no horário eleitoral, Bolsonaro não terá como se defender da artilharia que vem por aí. Instagram, Whatsapp, Facebook e Twitter serão suficientes para segurá-lo no segundo turno? Veremos.
Os partidos políticos mais tradicionais, como PT, PSDB e MDB, apostam suas fichas viciadas na TV para expelir Bolsonaro do segundo turno. Apostam basicamente em três fatores: o enraizamento das máquinas partidárias, ou a capilaridade de sua penetração; os palanques que essas máquinas serão capazes de erguer nos estados e em cada cidade nessas eleições, que são eleições casadas (candidatos a deputado puxarão votos para candidatos a governador, que puxarão votos para candidatos a presidente e vice-versa); por fim, o volume da propaganda no horário eleitoral, que, distribuída ao longo de todo o dia da programação, na forma de anúncios breves, alcançará altas audiências. Um candidato sem minutos na TV e sem máquina partidária ou governamental, como Bolsonaro, acabará virando um azarão. É nisso, o menos, que o mainstream acredita. A intelliguentsia política nacional insiste em acreditar que as chances reais de Bolsonaro, por mais barulho que ele faça, são reduzidas. São improváveis. Isso equivale a acreditar que a força da malha típica das “fake news”, que tanto ajudaram Trump, terão menos eficácia no Brasil.
Os partidos tradicionais, enfim, apostam que o horário eleitoral, a sua penetração em cada município e seus palanques em cada estado terão sucesso no combate às campanhas baseadas unicamente nas usinas de “fake news”, como as que vêm sendo empregadas por essa direita de coturno – e por uma esquerdofrenia furiosa. Nesse ponto, os partidos tradicionais, que em suas estratégias dominantes procuram cortejar ideários de centro, podem estar certos. Lembremos que Donald Trump, comprovada e irrefutavelmente ajudado por saraivadas de “fake news”, era um corpo estranho na política tradicional, mas não pode ser descrito rigorosamente como um outsider. Ele era e é muito diferente de Bolsonaro. Como candidato do Partido Republicano, contou com os préstimos todos da formidável e sólida instituição desse partido, por mais que uns e outros republicanos tenham feito muxoxo, biquinho e pirraça. Ao menos nesse aspecto, portanto, é um erro equiparar Bolsonaro a Donald Trump. Enquanto Trump navegou a bordo do vigoroso Partido Republicano, Bolsonaro está mal acomodado numa sigla sem nenhuma relevância, além de não ter nenhum partido sério entre seus aliados. Fora isso, não terá presença no horário eleitoral. Se sua campanha na internet, até aqui baseada em discursos de ódio e em inverdades esdrúxulas, der conta de levá-lo ao segundo turno, isso deverá ser creditado à incompetência dos candidatos dos partidos dominantes, à persistência de uma mentalidade conservadora e violenta que vem se firmando no Brasil há várias eleições e a uma vitória repentina (ainda improvável) da força da internet contra a força da televisão. Será uma surpresa, apavorante e inusitada.


  1. Como pano de fundo, a crise da verdade factual na democracia

Tentemos agora sair da superfície. Em camadas mais profundas, veremos um enfraquecimento das democracias nacionais, em países diferentes, ocasionado pelo esgarçamento da conexão necessária entre o domínio político e o plano dos fatos. A verdade factual se pulveriza. O presente artigo é curto para essa pauta, mas uma ou outra consideração sobre o assunto há de caber.
O que significa dizer que a política vem perdendo seu vínculo racional com os fatos? Vejamos. Em vários países, a saúde das democracias declina. O populismo ganha terreno. Vejam-se os casos da Rússia, da Turquia, da Venezuela e dos Estados Unidos. Isso mesmo: Estados Unidos. Se aceitarmos a premissa de que a democracia se constitui como um ambiente em que a vontade da maioria prevalece sem atropelar os direitos das minorias e da pessoa humana, constataremos que a rotina do governo Trump apresenta uma performance menos democrática do que aquela observada no governo anterior. O desprezo pelos direitos humanos vai se tornando regra macabra. O mesmo se nota, escancaradamente, na Rússia, na Turquia, na Venezuela, entre outros países.
Notemos que, nesses lugares, a verdade factual perde lugar para o embuste, o fanatismo, o culto à personalidade, a idolatria, o ódio patrocinado pelo Estado, a xenofobia, o obscurantismo nos costumes. Se os preconceitos e o ódio entram em alta, o registro dos fatos, necessariamente, cai em desprestígio e em desuso. Eis por que os nexos entre os fatos e a política na democracia se dissolvem. Em todas essas democracias em declínio, o traço comum é o crescente desprezo pelos fatos, ou pela verdade factual – termo caro a Hannah Arendt.[5]

Os fatos sumiram
Em outras palavras, a política vai deixando de mobilizar os fatos para, progressivamente, apoiar-se sobre crenças e sanhas irracionais. Com isso, a capacidade da democracia de trazer para a agenda pública a verdade factual vai se extinguindo.
Na concepção de Hannah Arendt, da qual não há muito como discordar, a política não tem como prescindir dos fatos – a menos que queira deixar de lado a democracia:
Os factos e as opiniões não se opõem uns aos outros, pertencem ao mesmo domínio. Os factos são a matéria das opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e diferentes paixões, podem diferir largamente e permanecer legítimas enquanto respeitarem a verdade de facto.[6]
Vai daí que, se um debate político é o debate das opiniões a respeito dos fatos de interesse comum, há algo de muito errado com o nosso – e não apenas com o nosso. Não faltam discussões ou opiniões. Ao contrário, sobram umas e outras. Enfrentamentos exasperados e exasperantes, ou mesmo bestiais, vão se amontoando e se esfacelando. Os fatos é que sumiram. Pense-se na propaganda de Bolsonaro: de que fatos ela fala? Pense-se no proselitismo de certos profetas, alguns mais à esquerda, outros menos: que fato existe nas alegações mais fundamentalistas que trafegam por aí?
Pensemos no populismo remasterizado que grassa neste início do século XXI. Seus seguidores se acreditam militantes de causas justas e se gratificam em cumprir a ordem de não tomar contato com os fatos que seus ídolos tornaram proscritos. Para alguns súditos fiéis de Lula, por exemplo, é pecado mortal abrir as discussões sobre os crimes (comprovados) cometidos por cardeais do partido. De outro lado, para adoradores do juiz Sérgio Moro, é pecado mortal criticar as inconsistências jurídicas de algumas das sentenças que ele proferiu. Para muitos dos seguidores de Bolsonaro, a ditadura militar foi a saída mais democrática que o Brasil poderia ter encontrado em 1964. Adeus aos fatos.
Quando as coisas ficam assim, a política se rende a ritos religiosos, em que o exame racional dos fatos é substituído por uma espécie de fé primitiva, entremeada de entulhos de messianismos pretéritos. Sob o pretexto de intervir nas tão propaladas “disputas de narrativas”, as ortodoxias se presumem infalíveis como o Papa. Os militantes da nossa era renunciaram ao juízo de fato e aceitaram “suicidar” as próprias consciências.
Este é o pano de fundo da explosão das “fake news”. Hannah Arendt dizia que “os factos e os acontecimentos – que são sempre engendrados pelos homens vivendo e agindo em conjunto – constituem a própria textura do domínio político”.[7] Pois, nos nossos dias, o domínio político vem perdendo sua textura.
Dessa perda da textura, as “fake news” não são a causa, mas a consequência. Não é por acaso que Donald Trump e Vladimir Putin se parecem bastante nas críticas infundadas que dirigem contra a imprensa, a instituição que deveria se encarregar de verificar os fatos.
[1]
ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Parte II. In: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1995.
[2]
o original: “Art of the lie: Post-truth politics in the age of social media.”
[3]
A expressão “fake news”, em inglês, costuma ser traduzida como “notícia falsa” ou “notícias falsas”. Na tradução sugerida pelo professor Carlos Eduardo Lins da Silva, adotada aqui, é “notícias fraudulentas”. O sentido do adjetivo “fake”, em inglês, envolve intenção do agente de enganar o interlocutor, o público ou o destinatário. O adjetivo “falsa”, em português, não implica esse dolo, essa intenção maliciosa. Desse modo, a expressão “notícias falsas” é fraca para traduzir o sentido da expressão “fake news”.
[4]
Agence France-Presse, Band, Rádio Bandeirantes, Band News, Correio do Povo, Exame, Folha de S.Paulo, Futura, Zero Hora, Gazeta do Povo, Metro, Nexo, Nova Escola, NSC Comunicação, Estadão, O Povo, Piauí, Poder 360, Rádio Band News, SBT, UOL, Veja, Jornal do Commercio.
[5]
A primeira visita a esse texto de Hannah Arendt eu fiz na conferência do ciclo Mutações de 2017, “Pós-fatos, pós-imprensa, pós-política: a democracia e a corrosão da verdade”, em que dialogo com os mesmos trechos citados aqui.
[6]
ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Parte II. In: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1995.
[7]
ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Parte I. In: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1995.

Eugênio Bucci é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e da ESPM.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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