14 outubro 2019

As Fontes da conduta brasileira: novas democracias, novos referenciais

O objetivo deste texto é verificar os atos iniciais da gestão Bolsonaro, cotejá-los com períodos anteriores e identificar padrões de conduta que indiquem continuidade ou ruptura de tendências de formulação e implementação da política externa brasileira.  A hipótese indicada é de que existe um novo padrão de política externa inaugurado na gestão Lula, que persiste no governo Bolsonaro: a mescla entre razão de Estado, centrada na função tecnoburocrática competente (a diplomacia oficial), e a lógica política da busca da hegemonia de poder, na qual a política externa serve a objetivos domésticos eleitorais.

O objetivo deste texto é verificar os atos iniciais da gestão Bolsonaro, cotejá-los com períodos anteriores e identificar padrões de conduta que indiquem continuidade ou ruptura de tendências de formulação e implementação da política externa brasileira.  A hipótese indicada é de que existe um novo padrão de política externa inaugurado na gestão Lula, que persiste no governo Bolsonaro: a mescla entre razão de Estado, centrada na função tecnoburocrática competente (a diplomacia oficial), e a lógica política da busca da hegemonia de poder, na qual a política externa serve a objetivos domésticos eleitorais.
A confusão entre funções permanentes de Estado e necessidades ocasionais de governo na condução da política pública externa é um fenômeno corriqueiro nas democracias liberais do século 21. A influência da retórica sobre os assuntos internacionais para satisfazer o eleitorado permeia a condução externa de países avançados da América do Norte e da Europa Ocidental – vide o caso do Brexit no Reino Unido. No repertório de regimes populistas contemporâneos, estilo e conteúdo ligados a temas internacionais – imigração, fuga de empregos e investimentos, criminalidade transnacional, aquecimento global e outros – e alvos externos – adversários ideológicos ou competidores econômicos – constituem meios fáceis para a interação direta com seus respectivos povos.
Limitada pelo curto tempo decorrido e pelos movimentos erráticos iniciais, a análise da política externa do governo de Jair Messias Bolsonaro requer emprego de metodologia criteriosa, sob pena de se proceder uma avaliação precipitada e parcial. Organizar uma cronologia, uma historiografia, um balanço crítico ou, ainda, a adoção de métodos quantitativos por meio de testes estatísticos resultaria numa apreciação incompleta. O número limitado de observações inviabiliza a inferência com um modelo de política externa com significância.
Três metodologias oferecem possibilidades de se obter aproximações das tendências: a análise de discurso, a comparação com modelos anteriores de inserção internacional do Brasil e a aferição do uso dos fatores de poder. A análise de discurso focará nos documentos inaugurais das autoridades federais competentes na definição da política externa. Os modelos de períodos anteriores serão objeto de uma varredura superficial indicativa de padrões de interação interno-externo desde o Brasil independente. Os fatores de poder serão considerados à luz dos resultados obtidos, combinados de forma a indicar perdas e ganhos perceptíveis. A análise das fontes da conduta brasileira examinará a coerência entre as propostas do candidato e a implementação no governo, no plano dos valores. O estudo se encerra com sucinta revisão da conduta governamental na temática ambiental e no episódio das queimadas da Amazônia.
A análise do discurso oficial
O estudo dos pronunciamentos inaugurais constitui uma via para a compreensão dos fundamentos da política externa: os discursos de posse e de transmissão de cargo do presidente da República e do ministro das Relações Exteriores.
As falas inaugurais do presidente Bolsonaro são discretas quanto à temática externa.  A posse, no Congresso Nacional, contém menção singular, quase no final do discurso: “A política externa retomará seu papel na defesa da soberania, na construção da grandeza e no fomento ao desenvolvimento do Brasil”. No Palácio do Planalto, a temática externa é mencionada, igualmente nas seções finais da peça, na referência a “retirar o viés ideológico de nossas relações internacionais” e, no fecho, a “tornar o nosso País […] uma das maiores nações do planeta”. Defesa da soberania e o fomento ao desenvolvimento repetem mandamentos constitucionais basilares. Desideologização foi um mantra de campanha, conjugado ao reposicionamento da máquina pública ao interesse popular.
O ponto comum às duas falas é o resgate da ideia-força de país grande. Vigente no período militar, o conceito de Brasil Grande denota força e capacidade da nação. Na redemocratização, a ideia de grandeza foi rechaçada devido à alusão ao regime anterior e pela conveniência tática de se manter o país atrelado à sua própria circunstância e às limitações de expansão externa do país: uma potência média de expressão regional, sem pretensão a qualquer tipo de liderança, ciente da escassez dos meios de projeção de força e de excedentes de riqueza.
O país grande no discurso de Bolsonaro busca alcançar dois objetivos distintos e comunicantes. Na dimensão doméstica, o papel refundacional da sociedade e do Estado estabelece o referencial de destino não cumprido, devido ao assalto ideologizante ao Estado (comunismo) e à deterioração da coisa pública (corrupção). Na perspectiva externa, alinha-se à retórica de mandatários afins, salvacionistas da grandeza nacional e do nacionalismo, tais como Donald Trump, Matteo Salvini da Itália, Viktor Orban da Hungria e Bibi Netanyahu de Israel – mencionados no discurso do ministro das Relações Exteriores.
O chanceler acentua o ideário proposto na retórica presidencial, com ênfase ao refundacionismo nacional, calcado no resgate de certos valores. Propõe o reencontro do povo com a pátria, da nação com o nacionalismo, do país com suas raízes de fé e de sentimento (o amor). Convoca e mira no combate ao globalismo e a expressões esquerdizantes, tais como a Venezuela, e celebra nacionalistas europeus. No discurso, é apresentado um feixe de ideias e proposições encadeados à vocação e à tradição universalista do Brasil.  Sublinha de forma positiva e correta a agenda econômica, alinhada com os objetivos liberalizantes e de abertura propostos pelas equipes correspondentes. Estão ausentes o reconhecimento dos acertos das gestões anteriores e as diretrizes gerais de um programa de atividades e de plano de ação. Faltam as prioridades de agenda e os rearranjos organizacionais, os modos e estilos de atuação, característicos da nova administração. Abstém-se de mencionar interlocutores relevantes, tais como a China, a Rússia, o Japão, os países árabes, a Índia e os vizinhos sul-americanos.
Uma proposta analítica: a abordagem dos ciclos longos
Examinar os ciclos longos da inserção internacional do Brasil permite identificar as amarrações do tema externo no modo de exercício do poder das novas democracias do século XXI. A esquemática de relacionamento do Brasil independente com o mundo se divide, para fins do presente estudo, em quatro períodos: I) 1822 a 1864; II) 1864 a 1930; III) 1930 a 2002; IV) 2002 em diante. Os períodos I e III caracterizam um país voltado para dentro, no qual o elemento externo constitui um dado coadjutor com mais potencial de dano do que de promoção das políticas públicas e de uma estratégia de desenvolvimento. Nesses dois períodos, controlar o risco do mundo orienta a política externa e a doutrina de Defesa. Os interstícios II e IV são marcados pela maior permeabilidade às relações com o exterior e pela busca de oportunidades oferecidas pelo mundo.
A periodização permitirá discutir a hipótese de que o modelo de representação externa da gestão Bolsonaro é a continuidade de um movimento de emancipação da inserção internacional do país, iniciado em 2002. Neste modelo, o governo da e para a maioria, legitimado pelo sufrágio eleitoral, implementa a política externa de governo, mesclada à coalizão ideológica e ao controle do aparato estatal. As razões de Estado e a tarefa burocrática – guiadas pelos preceitos de memória e continuidade – submetem-se ao ideário do momento e ao serviço da popularidade visando ao pleito seguinte. O manejo externo derivará da hierarquização preponderante de popularidade e da governabilidade, vis-à-vis a perenidade da razão de Estado.
Da Independência à Guerra do Paraguai, o externo regional – o Prata – e de além-mar – o vínculo atlântico – constituíam uma ameaça e uma tensão permanente à consolidação da soberania e da autonomia da nova nação. A campanha da Tríplice Aliança suscitou uma aproximação com os vizinhos e um saneamento preliminar das relações na fronteira meridional. Possibilitou também o início da emancipação social e da sofisticação produtiva do país, por meio da contratualização pública e privada com as nações industrializadas da Europa e da América do Norte.
Nos 20 anos seguintes à paz do Paraguai, o Brasil modernizou-se.  Transformações tecnológicas e demográficas profundas estabelecem um novo padrão de interação entre o Brasil e o mundo. A economia do café estimulou o progresso econômico e a evolução social. A institucionalidade política amadureceu, investimentos estrangeiros em infraestrutura urbana e de transportes proliferaram, encaminhou-se o fim da escravidão e um sistema emigratório sustentado e duradouro. O mundo tornou-se parte e determinante para a consolidação do Brasil urbano protoindustrial. O Brasil da virada do século XIX calcou sua inserção externa no universalismo da solução negociada de conflitos e se manteve distante da primeira guerra mundial.
A partir de 1930, o regime varguista implementou o modelo de industrialização via substituição de importações, baseado no Estado intervencionista e economia fechada.  Após 1945 e até o final da Guerra Fria, o Brasil concentrou sua atuação nos foros multilaterais.  Nas décadas de 1970 e 1980, inicia-se uma gradual e limitada abertura ao exterior, por meio do aproveitamento do potencial energético e de navegação da bacia do Prata. Esse movimento culmina nos acordos que levam à construção do Mercado Comum do Sul (Mercosul). A redemocratização do Brasil e da América Latina permite a recepção ampla dos Direitos Humanos na Constituição Federal de 1988.  O fim da Guerra Fria definiu a supremacia do modelo de democracia liberal e economia de mercado como padrão de organização social de validade universal.
Nos anos 1990 e 2000, o mundo é internalizado: as tecnologias de informação e comunicação facilitam o acesso da população brasileira ao meio externo. A globalização tecnológica induz a integração às cadeias mundiais de valor e de suprimentos de matérias-primas. Os programas de desestatização e de liberalização comercial abrem a economia nacional a empreendimentos e produtos estrangeiros. A política externa segue sendo de domínio e condução estatal, mas mais porosa e permeável a particularidades privadas.
Os ciclos longos e a nova democracia do século XXI
A política externa brasileira no século XXI caracteriza-se pela normalização ao conjunto típico das políticas públicas governamentais das democracias ocidentais. A assunção dos governos petistas sancionou o componente de legitimidade eleitoral da maioria à ação externa do Estado brasileiro. Inaugurou-se a fórmula da mescla entre a razão de Estado, conduzida pela tecnoburocracia especializada (o estamento diplomático) e o pragmatismo da hegemonia, calcado na visão dos especialistas político-partidários, conforme postula Soares de Lima (2010) e demonstra Jakobsen (2016).
Lula defendia a ideia de construção de um outro mundo possível, solidário na Fome Zero e contestatório à hegemonia do capitalismo ocidental, alcançada de maneira perversa por meio da expansão incontrastável da globalização desigual. Esse substrato idealista justificou aproximações com regimes autoritários e envolvimento em questões que pouco tinham a ver com os interesses brasileiros, cujo ápice foi a ação brasileira na questão nuclear iraniana. A oposição ao projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi um caso saliente de satisfação ao eleitorado interno em detrimento da busca do interesse nacional pelo emprego da razão de Estado.
A anomalia da política externa de Lula – a combinação Estado + governo, burocracia especializada + assessores políticos – ressurge no governo Bolsonaro, consolidando um novo padrão de se conceber e implementar a política externa como ramo das políticas públicas. A congruência entre os interesses estatais permanentes e os interesses específicos da coalizão de poder tornou-se a condicionante principal a balizar a métrica da eficácia da política externa. A atuação de operadores de fundamentação ideológica – facilitada de modo crescente pelo uso intensivo das ferramentas digitais – submeteu a política externa à lógica hegemônica de manutenção do poder, mesmo quando combinada à preservação da razão de Estado conforme prescrito na Constituição Federal.
Rompe-se, assim, o consenso da responsabilidade de Estado proposto por Celso Lafer (2009), que caracterizou a política externa brasileira ao longo de todo o século XX. Estabelece-se, desde a ascensão do PT ao poder, um padrão de concepção e implementação da política externa: a mescla da política de interesses permanentes de Estado com a lógica de manutenção de poder do governo. Assim como ocorreu sob Lula, o modo de fazer política exterior de Bolsonaro valida um projeto hegemônico de poder e sua dimensão externa, em primeiro lugar, para depois atentar à manutenção e à continuidade dos princípios tradicionais da ação internacional do Brasil.
As duas gestões atípicas ou irregulares do período oferecem a contraprova da hipótese proposta. Dilma, por anomia, e Temer, por atonia, configuraram dois momentos em que a agenda externa ficou relegada a um plano inferior ao seu potencial de contribuição ao alcance do interesse nacional. Em ambas, a condução da política externa retornou ao seu leito natural, da razão de Estado, guiada pela burocracia especializada.
O conceito de diplomacia presidencial, saliente em Fernando Henrique e em Lula – quando o chefe de governo assume papel de formulador, representante e principal agente da atuação externa de um país – não é aplicável a Dilma e a Temer. Dilma Rousseff, por desprezo ou por inépcia, demonstrava indiferença aos temas externos. Michel Temer carecia de cacife para atuar com desenvoltura no meio internacional, devido às cautelas externas quanto à legitimidade de seu mandato, à grave crise econômica e às denúncias de corrupção contra colaboradores próximos e contra o próprio presidente.  Bolsonaro tem mostrado razoável atividade externa, mas ainda é cedo para se rotular seu ativismo de diplomacia presidencial.
As linhas permanentes do governo Bolsonaro e sua inserção no ciclo longo da política externa brasileira
Jair Bolsonaro venceu as eleições presidenciais de 2018 baseado numa plataforma de eliminação do comunismo, combate à corrupção e à criminalidade e de choque cultural de conservadorismo. Esses pilares temáticos convertem-se em fontes da conduta externa brasileira, essenciais para a compreensão das ações concebidas e realizadas desde a campanha.  Os atos externos do novo governo e a concepção de sua política externa estão balizados por essas fontes, limitados apenas quando enfrentarem reações contrárias, externas ou internas.
A primeira fonte é o comunismo, o paulatino aparelhamento estatal e o controle social por meio de ferramentas de Estado que tolhem as liberdades individuais e injetam a decadência moral. No plano interno, o comunismo foi personificado nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e agremiações associadas, inclusive, em menor grau, as gestões do PSDB e do PMDB. O comunismo está incrustrado em certos setores – sindicatos laborais, movimentos camponeses, coletivos identitários, uniões estudantis, organizações não governamentais (ONGs), setores progressistas do clero católico romano, partidos políticos, representantes das comunidades científica, artística, cultural e jornalística – e em parcelas de corporações estatais.
As ramificações externas do ideário comunista, por meio de ONGs internacionais e organizações intergovernamentais, em particular a Organização das Nações Unidas (ONU), alimentam e reforçam a agenda comunista, de dilapidação do poder estatal, via aparelhamento interno e concessão externa de atributos de soberania, consolidando a permissividade de costumes e a lassidão moral, campo fértil para os demais pilares. Essa engrenagem, de modo simplificado e amplo, é rotulada de globalismo. Suas ideias, suas intervenções e seus operadores devem ser combatidos, dentro e fora do Brasil. A resultante bolsonarista é de rechaço ao papel do multilateralismo como canalizador dos interesses brasileiros.
A segunda fonte é a corrupção. Corrupção significa o conjunto sistematizado de ações e procedimentos, entre representantes da administração pública e de empresas privadas, que engendram e financiam a expansão de uma engrenagem de perfil comunista, em particular pela América Latina. A operação Lava Jato, e seus desdobramentos no Brasil e no exterior, evidenciou o gigantesco arcabouço de deterioração estatal e de desvio de recursos públicos, por meio da ocupação de postos-chave na administração de empresas estatais, contribuição ilegal a campanhas eleitorais, arranjos com empresas de construção civil e infraestrutura e financiamento público afastado de critérios de mercado e de compliance, de parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), inclusive em países vizinhos e na África.
A terceira fonte é o combate à criminalidade. A insegurança pública foi o principal tema social da campanha eleitoral. Organizações criminais migraram da atuação regional, calcada no assistencialismo penitenciário, para se tornarem empreendimentos nacionais, visando ao controle de cadeias de valor complexas e multissetoriais, incluindo conexões internacionais. A criminalidade de impacto no Brasil dos anos 2010 em diante é de padrão operacional transnacional – age através e por sobre fronteiras nacionais, exigindo cooperação internacional e multilateral para seu enfrentamento. A segurança pública tornou-se tema de política externa.
A quarta fonte é o conservadorismo, a reinserção dos valores de ordem, justiça e liberdade por meio do fortalecimento das instituições tradicionais, como a família, a comunidade local, a nação, a religião e as forças armadas. Rechaçam-se iniciativas que desvirtuem ou fragilizem as instituições e abrem campo para a disseminação da criminalidade, local e transnacional. A pauta de valores conservadora lastreia a agenda de política externa, por meio de sua promoção em foros multilaterais e da preferência por parceiros de visão afim. Contudo, a desatenção a ordenamentos internacionais de direitos humanos ou ambientais expõe o país a questionamentos externos, deteriorando a reputação do Brasil.
O balanço preliminar da atual gestão pela abordagem dos fatores de poder
Uma apreciação adicional do potencial de um país no espaço internacional pode ser realizada por meio da aferição da disponibilidade de fatores ou recursos de poder. De modo esquemático, dimensiona-se o potencial de recursos econômicos, políticos e estratégico-militares à disposição daquele Estado-nacional para a promoção de seus interesses no meio externo, ou seja, para o exercício do poder relativo à detenção desses fatores em comparação aos demais países. O cômputo da eficácia desses fatores em questões de alcance global, regional ou bilateral estabelece as proporções preliminares de poder que modelarão uma determinada interação temática, quando focada em assunto determinado ou subjetiva, isto é, quando considerada em relação a outros atores.
Esse tipo de abordagem mostra-se de particular validade no governo Bolsonaro, no qual a resultante da política externa deriva de visões do mundo e motivações distintas nos núcleos ligados à modernização econômica, à condução de temas de defesa e segurança e à matriz ideológica que impacta as preferências políticas, conforme indica Spektor (2019). A equipe econômica postula uma agenda liberalizante e desestatizante: mais integração econômica externa e diminuição do papel do Estado, inclusive no apoio estatal – BNDES, Petrobras e outros órgãos – a iniciativas políticas no exterior. O grupo da defesa e segurança baseia-se em doutrinas de manutenção da soberania territorial e tecnológica e na autonomia decisória, além do aumento da capacidade de repressão à criminalidade nacional, por meio da vigilância de fronteiras e da cooperação internacional, e de dissuasão, com investimentos quantitativos e qualitativos em armamentos e capacitação. O núcleo ideológico, por sua vez, pauta-se na necessidade de combate ao ideário globalista incrustrado, no campo dos valores, nas organizações intergovernamentais, e no plano geopolítico, em nações contestatórias à preponderância ocidental, em especial a China.
O desempenho da atual gestão no campo econômico, nos assuntos ligados às relações econômicas externas, tem sido positivo. As variáveis macroeconômicas mostram-se sob controle: inflação baixa, juros em queda, reservas internacionais vultosas, combate ao gasto público. Encaminham-se reformas estruturantes, tais como a da Previdência Social e a Tributária. A redução do custo de fazer negócios no Brasil é uma meta nos órgãos federais com competência regulatória e normativa, observando-se a propensão à desregulamentação, à simplificação, à racionalização e à desestatização de procedimentos.
No âmbito externo, o avanço na acessão à OCDE sinaliza a disposição a se adotar uma gama de políticas públicas virtuosas e compartilhadas pela maioria dos países de renda elevada. A restauração de uma agenda modernizante do Mercosul recuperou foco e propósito ao bloco, o que possibilitou a conclusão expedita das negociações para um acordo de cooperação com a União Europeia e com a Associação Europeia de Livre Comércio (Efta). O mercado de valores mobiliários apresenta valorização acumulada de 20%, apesar da volatilidade externa.
O fator de poder estratégico-militar se mostra mais saliente e agrega capacidade de ação externa ao Brasil. Há subfatores de natureza civil e militar. O uso civil do aparato militar  ocorre de duas maneiras. A primeira, por meio da atribuição de governabilidade e de governança à gestão. Jair Bolsonaro, de formação militar, montou sua equipe com presença de diversos colegas de farda em postos-chave. O corpus militari na direção federal agrega previsibilidade e competência à gestão, com oficiais reconhecidos pela preparação intelectual e pela competência executiva. A segunda maneira de presença militar em assuntos civis deriva do efeito demonstração da mobilização para o cumprimento de tarefas, tais como obras de infraestrutura viária, policiamento e operações de garantia da lei e da ordem (GLO) e enfrentamento de tragédias da natureza, dentre elas o combate a incêndios silvestres.
Os fatores estratégicos externos envolvem o aumento do poder dissuasório e o avanço tecnológico. Algumas iniciativas de impacto amadureceram neste começo de gestão. O acordo que permitirá o uso compartilhado das instalações de Alcântara abre toda uma gama de possibilidades tecnológicas nos assuntos espaciais e de uso de satélites. A maturação de dois projetos aeronáuticos – o caça multiuso F-39 Gripen E/F e o cargueiro multimissão KC390 – elevam a competência da ciência aeronáutica brasileira. A participação brasileira na questão venezuelana denota a maturidade da condução das Forças Armadas, seja pela atuação flexibilizadora no Grupo de Lima, seja pela eficácia da Operação Acolhida, de recepção aos imigrantes venezuelanos na fronteira com o Brasil.
O fator de poder político é o aspecto a ser melhorado da projeção externa.  Bolsonaro recebeu o país prejudicado por um déficit reputacional associado à revelação da volumosa penetração da corrupção nas estruturas de Estado, no sistema político e em parte do setor produtivo. A prisão de um ex-presidente da República popular no exterior aumenta essa dificuldade. A atividade verbal do candidato Bolsonaro e sua loquacidade nas redes sociais contribuem ao aprofundamento da polarização interna e de interrogações externas. Para o interlocutor externo, tanto o conteúdo quanto a imprevisibilidade e a incerteza causam dano equivalente no estabelecimento da confiança política e econômica. O episódio das queimadas na Amazônia ilustra este fato e serve ao propósito do esquema analítico proposto neste artigo.
Aplicação da análise da política externa: as queimadas da Amazônia
Ao longo das últimas três décadas, o Brasil consolidou-se como uma potência ambiental global. Possui ativos estratégicos de bioma, energéticos e hídricos de impacto planetário. Desde a Rio-92, o Brasil tornou-se um articulador central nas tratativas de meio ambiente, propondo regramentos e afiançando acordos. Amealharam-se repertório e competência público-privada típicas de um green power, uma potência verde, um primus inter pares na legislação, no patrimônio, no domínio tecnológico e no entendimento social da questão ambiental, apesar de remanescerem falhas de implementação devido à escassez de recursos e às dimensões do país.
A reação inicial do governo Bolsonaro às acusações externas de negligência no combate a incêndios na Amazônia transformou um incômodo sazonal localizado numa acelerada deterioração reputacional. Em poucos dias, a credibilidade do Brasil na área ambiental e sua capacidade de gerir um ativo estratégico, fornecedor de bem público global, relacionado ao clima planetário, foi revertida. O Brasil passou a ser percebido como um rogue state ambiental, na iminência de acionar uma arma de destruição em massa de lenta detonação e de alcance planetário, por meio da queima da selva equatorial.
A escalada verbal com o presidente da França, por exemplo, foi uma opção tática contraproducente. A acusação de aumento indiscriminado do desmatamento por meio de incêndios foi baseada em dados questionáveis. A razão de Estado e a boa técnica profissional recomendariam a redução das tensões e o restabelecimento da verdade baseada em evidência científica. O episódio foi conduzido, contudo, de modo a reforçar a legitimidade do governo e reforçar os valores de campanha, insinuando uma conspiração globalista-comunista com outros propósitos: internacionalizar a Amazônia, bloquear o acordo UE-Mercosul e desestabilizar o governo.
O direcionamento da política externa para fins eleitorais é característica das democracias do século XXI. No processo decisório e na implementação da política externa, tanto em Lula quanto em Bolsonaro, prepondera a manutenção da hegemonia política, com o uso da bandeira do nacionalismo e de valores associados, sobre a razão de Estado. Rompem com um modelo republicano vigente até o final do século XX e estabelecem um novo padrão de conduta do Brasil no mundo. Interpretar as políticas externas deste novo período exige o emprego de técnicas adequadas. Apreciá-las sob as referências dos períodos anteriores constitui um equívoco analítico e redundará em erros de interpretação.


Referências
JAK
OBSEN, K. Análise de Política Externa Brasileira: continuidade, mudanças e rupturas no Governo Lula. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2016.
LAF
ER, C. A identidade internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira: Passado, Presente e Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2009.
SOA
RES DE LIMA, M.R. Tradição e inovação na política externa brasileira – Working Paper n.3, Plataforma Democrática, Julho 2010.
SPE
KTOR, M. Diplomacia da ruptura, in Abranches, S. et alli, Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje, Ed. Companhia das Letras, 2019.


ALBERTO PFEIFER é coordenador do Grupo de Análise de Estratégia Internacional, da Escola de Segurança Multidimensional e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, é doutor pela USP, mestre pela Fletcher School e colaborador do Instituto de Estudos Avançados da USP

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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