01 outubro 2014

As Instituições e o Mal-Estar na Sociedade

As centenas de milhares de pessoas que foram às ruas das cidades brasileiras, em junho de 2013, trouxeram à tona a insatisfação com os governantes que já existia de forma latente, provavelmente agravadas pelas frustrações causadas pela paralisação da economia, o aumento da inflação e a má qualidade dos serviços públicos.

As centenas de milhares de pessoas que foram às ruas das cidades brasileiras, em junho de 2013, trouxeram à tona a insatisfação com os governantes que já existia de forma latente, provavelmente agravadas pelas frustrações causadas pela paralisação da economia, o aumento da inflação e a má qualidade dos serviços públicos. Aos poucos, o número de pessoas nas ruas foi se reduzindo e, em 2014, as manifestações passaram a ser feitas por grupos menores e mais organizados, como o Movimento dos Trabalhadores sem Teto, em São Paulo, na tradição das ocupações de fazendas e edifícios públicos do Movimento dos Sem Terra; organizações estudantis, na ocupação de universidades; sindicatos do setor de serviços públicos, como professores, policiais, metroviários e lixeiros; e grupos anarquistas como os “black blocs”, que buscam deliberadamente criar situações de confrontação com a polícia para desmoralizá-la. Nesta mistura de grupos e motivações, entraram também grupos criminosos como os que, no Rio de Janeiro, se mobilizaram para destruir as políticas de pacificação das favelas das UPPs, a pretexto de protestar contra a violência policial. Um dos efeitos desta radicalização foi atingir milhões de pessoas que, além de sofrerem os efeitos das dificuldades econômicas e da precariedade dos serviços públicos, passaram a ter também suas vidas afetadas no dia a dia pelos transportes públicos interrompidos, as ruas interditadas e as escolas fechadas. Em sua maioria, elas deixaram de ir às ruas protestar e reagiram com indiferença ao movimento de “Não vai Ter Copa”, que pretendia ser a culminação de um ano de protestos.
Em maio de 2014, um grupo de professores universitários publicou um manifesto público “pelo direito de manifestação, pelo direito de ir e vir”, que assinalava, entre outras coisas, que “mentes autoritárias, com profundo desprezo pelo direito alheio, terão sempre justificativas para essas ações na suposta justiça das causas que defendem ou na relevância das denúncias que propagam. As causas podem até ser justas, mas a alteração no tempo e na ordem da vida das pessoas não pode se tornar algo banal, corriqueiro. Um efeito dessa avalanche de manifestações que não titubeiam em afetar profundamente a vida das pessoas nas cidades é o descrédito e o desgaste de qualquer manifestação. Isso não é democracia, mas prepara sua destruição”. E concluía: “Exigimos que nossos direitos constitucionais sejam garantidos. Não aceitamos vê-los usurpados por pequenos ou grandes grupos que têm direito de se manifestar, mas não de impor seus pontos de vista. O direito de manifestação, assim como o de greve, precisa ser preservado e mantido dentro de seus limites legais. Conclamamos à reação contra a escalada antidemocrática das manifestações que não respeitam os direitos elementares dos cidadãos”1.
Sistema representativo
O manifesto repercutiu na internet e na imprensa, recebeu mais de 500 assinaturas de pessoas expressivas, mas encontrou também resistência entre pessoas que não teriam por que discordar da afirmação de que “o direito de manifestação, assim como o de greve, precisa ser preservado e mantido dentro de seus limites legais”. As dúvidas e as objeções que foram levantadas ajudam a entender, pelo menos em parte, porque estes comportamentos são tolerados. Para alguns, o problema era que o texto se colocava ao lado da lei e da ordem, sem reconhecer a justeza das causas de muitas manifestações. Para outros, a objeção foi de que o texto não era equilibrado, porque criticava os abusos das manifestações, mas não os abusos da polícia. Comum aos dois tipos de objeção era uma crença implícita na superioridade moral e ética dos manifestantes em relação às instituições públicas e o receio de aparecer como defendendo os princípios da prevalência da lei como se fosse uma posição reacionária, e não, simplesmente, um componente central das sociedades democráticas. Havia, ainda, os que adotavam argumento utilitário: esse tipo de manifestação seria legítimo porque manifestações “comportadas” não chamam atenção suficiente. Por fim, havia os que justificavam barbárie com barbárie: erros e desrespeito por parte de governantes e agentes da lei justificariam comportamentos equivalentes por parte de manifestantes. Esta atitude de defesa ou aceitação implícita das manifestações violentas, bastante generalizada em certos meios intelectuais, é também muito presente entre os políticos, que temem ser vistos como contrários às reivindicações populares.
Esta ambivalência deve ser vista no contexto mais geral da crise do sistema representativo brasileiro e do papel que as organizações sociais têm nele ocupado. No papel, o Brasil tem um sistema político representativo em que instituições, como os partidos políticos, o legislativo, os tribunais e o executivo, da Presidência aos prefeitos, são eleitos ou nomeados segundo regras claras e governam em nome da maioria, garantindo, ainda, os direitos individuais e das minorias, que são essenciais nos regimes democráticos. Na prática, é uma democracia frágil, em que as pessoas não se sentem adequadamente representadas pelos eleitos, os governantes frequentemente colocam seus interesses privados acima do interesse público e os direitos legais são abusados pelos ricos e extremamente escassos para o cidadão comum. É também uma democracia ineficiente, em que os governantes e suas burocracias funcionam mal, desperdiçam recursos, se submetem com facilidade a pressões de grupos de interesse e da opinião pública e negociam cargos e privilégios para se manter no poder. Para alguns cientistas políticos, não poderia ser de outra forma: o mundo é assim mesmo, cheio de imperfeições, e nosso “presidencialismo de coalizão” funcionaria bem e seria tão normal quanto o de qualquer outra democracia moderna. Mas, a população não pensa assim e sai à rua para protestar.
Se as instituições democráticas não funcionam bem, o que colocar em seu lugar? A vitória do PT nas eleições de 2002 trouxe consigo uma ideia aparentemente nova, que seria a de colocar as instituições governamentais sob a influência, controle ou, no extremo, substituí-las totalmente pelo que se chamou de “sociedade organizada”. No limite, o povo decidiria em praça pública o orçamento das prefeituras; as associações de professores e a UNE controlariam o Ministério e as secretarias de educação; os sindicatos definiriam as regras e os valores do mercado de trabalho; os índios controlariam a Funai; o MST, o Ministério da Reforma Agrária; os ambientalistas, a política de meio ambiente; o movimento negro, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial; e uma multiplicidade de conselhos estaduais e municipais – de alimentação escolar, saúde, bolsa família, assistência social, educação – controlariam o funcionamento dos governos no nível federal, dos estados e dos municípios. Os empresários também seriam contemplados, pela participação em um grande Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Os partidos políticos e as agências públicas tradicionais (prefeituras, secretarias, ministérios) seriam, aos poucos, ocupados ou substituídos por movimentos sociais que, tal como os sindicatos, passariam a receber subsídios diretos e indiretos do governo.
A ideia da importância política das organizações sociais é bem antiga e data, pelo menos, do estudo clássico de Alexis de Tocqueville sobre a democracia nos Estados Unidos no século XIX, que teria como uma de suas principais características a presença de “organizações intermediárias” da sociedade civil – igrejas, organizações profissionais, organizações voluntárias –, que fariam a ponte entre os indivíduos e o Estado e dariam consistência e legitimidade ao governo democrático.
Na trilha de Tocqueville, existe uma grande linha de estudos e pesquisas sobre o tema, tratando de identificar as características da “cultura cívica” ou do “capital social” nas sociedades contemporâneas e as consequências de sua existência ou sua falta. Esta é, também, a tradição intelectual do corporativismo, favorecido pela Igreja Católica tradicional e que foi importada da Itália pelo Estado Novo, nos anos 1930. Independentemente da questão mais ampla do papel histórico destas organizações, o fato é que os lobbies, ONGs e grupos de pressão que existem nas sociedades de hoje têm pouco a ver com as associações comunitárias tradicionais de 100 anos atrás, cujo virtual desaparecimento nos Estados Unidos é o tema do livro clássico de Putnam, “Bowling Alone”, lamentado por Francis Fukuyama e analisado em todas suas implicações por Theda Skocpol (Almond e Verba 1963; Fukuyama 2000; Putnam 2001; Skocpol 2003; Tocqueville 1981). Se, na tradição de Tocqueville, a sociedade civil é vista como o cimento que dá a sustentação à democracia, em sua versão perversa, o apelo às “forças organizadas” da sociedade e da nação serve de fundamento para o fascismo em suas diferentes manifestações, desde a Itália e Alemanha até, mais perto de nós, o peronismo na Argentina, o “bolivarianismo” venezuelano e o próprio varguismo.
Qual tem sido o resultado desta tentativa de trazer os movimentos e organizações sociais para dentro do governo? Isto tornou-o mais ou menos democrático? Melhorou a qualidade das políticas públicas? Fez com que elas se tornassem socialmente mais justas, atendendo prioritariamente às populações mais necessitadas?
Conselhos municipais
Não temos respostas claras para estas questões, mas existem muitas informações sobre estas experiências que permitem chegar a algumas aproximações. Dados do Cadastro Nacional Central de Empresas, mantido pelo IBGE, permitiram que fosse elaborada uma estatística detalhada das entidades sem fins lucrativos no Brasil, das quais fazem parte as fundações e organizações não governamentais (IBGE e Ipea 2012). Em 2010, havia no Brasil 557 mil unidades locais de entidades sem fins lucrativos, das quais (excluindo condomínios, cartórios, conselhos e outras organizações criadas por lei) 291 mil eram Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil), empregando 2,1 milhões de pessoas. Não se trata de uma novidade – 60% foram criadas antes do ano 2000 – mas suas características vêm se modificando. Resumindo os principais resultados encontrados, diz o estudo que “uma análise geral das atividades desenvolvidas por essas instituições revela sua enorme diversidade, entre as quais se destacam as entidades voltadas à defesa de direitos e interesses dos cidadãos (30,1%) e as religiosas (28,5%). Atuando nas áreas tradicionais de políticas públicas de saúde, educação e pesquisa e assistência social, encontram-se apenas 18,6% dessas entidades. A idade média das Fasfil é de 14,4 anos e grande parte delas (40,8%) foi criada no período de 2001 a 2010. No grupo de entidades mais antigas, criadas antes dos anos 1980, predominam as entidades de religião (39,5%) e cultura e recreação (19,6%). Entre as mais novas, criadas nos primeiros dez anos deste milênio, destacam-se as entidades de defesa de direitos e interesses dos cidadãos (30,6%) e, novamente, as de religião, num patamar bem mais reduzido (27,0%)” (p.75).
A este fenômeno de crescimento das organizações de defesa de direitos deve-se somar o grande número de conselhos e órgãos participativos criados por lei. Segundo dados da Base de Informações Municipais do IBGE de 2013, 85% das cidades brasileiras contam com conselho municipal de educação, 99,5% têm conselho municipal de saúde, e 68% têm conselho municipal de meio ambiente. Além disto, existem conselhos de direitos da mulher, de controle de acompanhamento social do Fundeb, conselhos escolares, conselhos de alimentação escolar e conselhos de transporte escolar, entre outros.
Sobre os efeitos destas formas de participação social no desempenho das agências de governo, um caso muito estudado é o da experiência de orçamento participativo de Porto Alegre, iniciada ainda na década de 1990 e que serviu de modelo para muitas outras experiências em outras partes. Diversos estudos mostram alguns resultados significativos desta experiência, sobretudo do ponto de vista político, ao envolver parte da comunidade em decisões de questões de seu interesse mais imediato e também na redistribuição de uma pequena parcela de recursos do município conforme as demandas da população de baixa renda da cidade. Mostram também as limitações municipais, tanto para lidar com os problemas mais complexos da administração local, como o de regularização fundiária, como para sua generalização, tanto para outros municípios sem a mesma tradição de organizações sociais, como Porto Alegre, como para a esfera estadual. Outros estudos, no entanto, indicam que as expectativas originais deste tipo de arranjo foram, em geral, exageradas (Avritzer e Navarro 2003; Baierle 2009; Cohen e Fung 2004; Cornwall 2007; Fedozzi 2001; Frey 2003; Wampler e Avritzer 2004). Um estudo sobre o impacto dos Conselhos Municipais de Educação, em 2010, em Minas Gerais, não mostra relação significativa entre a sua existência e os resultados dos alunos nas avaliações de desempenho (Schwartzman e Barbosa 2010). Ter ou não ter conselhos municipais parece ser, sobretudo, uma formalidade, e de qualquer forma não se traduz em melhores resultados para a população.
Peleguismo e corrupção
Uma característica central destas instituições é que elas dependem de financiamentos de governo ou grupos e fundações privadas nacionais ou estrangeiras, já que não dispõem de contribuições das pessoas que pretendem representar. O financiamento público de organizações não governamentais no Brasil data pelo menos da organização dos sindicatos pelo Estado Novo, na década de 30, através do Imposto Sindical, assim como das transferências para as instituições patronais do “Sistema S”. Esta situação de dependência tira a autonomia das organizações sociais e abre espaço para a corrupção, conhecida no passado como “peleguismo”, que se manifesta hoje em múltiplas esferas, tal como visto recentemente nos escândalos que envolveram os ministérios do Trabalho e dos Esportes, entre outros. Analisando a questão na América Latina, Sorj e Martuccelli escrevem que “as ONGs, este novo fenômeno de representação sem delegação – ou melhor, de autodelegação sem representação –, permitem canalizar as energias criativas dos ativistas sociais para novas formas de organização separadas do público, cujas necessidades pretendem representar” (Sorj e Martuccelli 2008 p. 132). Mais amplamente, uma pesquisa de 2001 sobre movimentos populares no Chile e no Brasil, realizada pelo Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social, mostrou que, à medida que essas organizações de movimentos sociais se tornam dependentes do governo ou do financiamento internacional para sua sobrevivência, elas tendem a entrar em declínio:
“As organizações de base podem simplesmente prestar serviços sociais para o Estado (saúde e reforma educacional no Chile) ou ser divididas e desmobilizadas por disputas burocráticas internas (reforma da saúde no Brasil). Em todos os casos, um maior envolvimento com as agências estatais deixou as organizações expostas aos controles clientelistas e ao caciquismo político. As organizações de base em toda a América Latina agora não podem sobreviver sem financiamento estatal. Mas, o preço é muitas vezes a perda de sua capacidade de manter uma postura crítica ou promover projetos alternativos de desenvolvimento. Com ou sem o Estado, elas estão cada vez mais preocupadas com sua própria sobrevivência financeira, muitas vezes em detrimento das clientelas às quais se destinam a servir. Muitas organizações desaparecem, e líderes de base saem para trabalhar em outra coisa.” (Foweraker 2001)
A pouca eficácia destas formas participativas não impediu que elas recebessem apoio governamental crescente nos últimos anos, dada a prevalência de critérios políticos e ideológicos sobre critérios de eficácia ou desempenho. Dados da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) mostram que, entre 1999 e 2010, os recursos da União transferidos a organizações não governamentais passou de R$ 2,224 milhões a R$ 4,106 milhões. Nesse período, a porcentagem das 200 organizações associadas à Abong, que dependiam em mais de 40% do governo federal, passou de 16,7% para 37,4% entre 2000 e 2007 (Ojeda 2012).
Política de participação social
Um problema fundamental com este modelo foi que ele supunha que não haveria conflitos destes movimentos entre si e com os governos que os estavam estimulando e financiando; o único inimigo seria uma “elite” abstrata, e caberia ao governo, junto com os movimentos e o “povo”, combater e derrotar em sucessivas eleições. Na prática, sempre existiram tensões entre o governo federal e os movimentos de ambientalistas, por exemplo, ou de trabalhadores rurais, que foram contidos em grande medida por concessões graduais e cooptação de suas lideranças. Mas, esta acomodação passou a se tornar mais difícil na medida em que os recursos à disposição do governo começaram a diminuir e as frustrações, e as demandas se tornaram mais radicais.
As manifestações que começaram a ganhar corpo em 2013, e que continuaram em ondas sucessivas de greves e protestos em todas as principais cidades brasileiras, pareciam indicar o início de uma nova fase. A iniciativa, agora, teria passado para algumas das organizações criadas no período anterior, lideradas por suas alas mais radicais; mas, sobretudo, por grupos e movimentos sociais que teriam se formado espontaneamente, pela mágica das redes sociais e da internet. Diante do movimento das ruas, uma primeira reação de governos e de líderes de organizações sociais mais estabelecidas foi de reconhecer a justeza das reivindicações e tentar cooptar os movimentos, indo também para as ruas e tentando atender prontamente às reivindicações. Isto não deu certo, no entanto, em parte pela hostilidade de muitos manifestantes aos partidos políticos e aos movimentos sociais organizados, e em parte pelo radicalismo e natureza difusa de muitas das demandas. A segunda reação foi o retraimento, com governos e organizações sociais temendo ser identificados como membros das “elites” e contrárias ao “povo” e às suas causas. Um dos resultados foi a erosão da legitimidade e a paralisia das autoridades públicas e de lideranças políticas, quando confrontadas com invasões de propriedade, ocupações de prédios e obras públicas, greves ilegais, bloqueios das vias públicas e depredações que se sucedem e se ampliam.
É neste contexto que deve ser visto o Decreto 8.243 da Presidência da República, de 23 de maio de 2014 – poucos meses antes, portanto, das eleições presidenciais –, que “institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) e dá outras providências”. O decreto, em seu artigo 2o, identifica dez “instâncias e mecanismos de participação social” (sociedade civil – o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações; conselho de políticas públicas, comissão de políticas públicas, conferência nacional, ouvidoria pública federal, mesa de diálogo, fórum interconselhos, audiência pública; consulta pública; e ambiente virtual de participação social) e, no seu artigo 5o, estabelece que “os órgãos e as entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas”, criando, para isto, um complicado “Sistema Nacional de Participação Social” vinculado à Secretaria Geral da Presidência da República cujo titular, Gilberto Carvalho, é o responsável, dentro do governo, pelas articulações políticas com os movimentos sociais e a “sociedade organizada”.
O decreto gerou grande controvérsia, tendo sido interpretado, por um lado, como uma medida importante para consolidar as experiências de participação social no governo, e, por outro, como uma tentativa de substituir a democracia representativa vigente por um sistema participativo de inspiração chavista e bolivariana, com todos os seus problemas. Sem ir aos extremos, não há dúvida de que o decreto é um esforço de restabelecer a inspiração original do modelo de política participativa, buscado desde o início do primeiro governo Lula, na esperança de que ele pudesse trazer de volta os dividendos políticos do passado, com impacto nas próximas eleições. Não parece provável, no entanto, que esta medida consiga reverter os desgastes sofridos por estas organizações ao longo dos últimos anos.
Não há dúvida de que o sistema representativo brasileiro precisa ser profundamente alterado, em aspectos como o sistema eleitoral, o sistema partidário e o financiamento de campanhas. Não há dúvidas também de que as democracias modernas devem incluir formas adequadas de participação da sociedade, por mecanismos múltiplos que vão das consultas aos referendos, passando por diversas formas de vinculação entre a administração pública em seus diversos níveis e a sociedade civil em seus diferentes formatos, mantendo os espaços abertos para manifestações e mobilizações em torno de temas que não estejam sendo atendidos devidamente pelas políticas vigentes.
Impossível satisfazer todas as demandas
Dito isto, é importante ter em mente que não é possível satisfazer ao mesmo tempo todas as demandas e todos os grupos da sociedade – salários altos, financiamentos baratos para carros e casas, educação de qualidade e gratuita, atendimento médico de alta qualidade e gratuito para todos, transportes públicos gratuitos, proteção ao meio ambiente, excelentes aposentadorias e pensões – tudo conforme o padrão Fifa. Além das limitações de recursos, muitas destas demandas são contraditórias e necessitam ser arbitradas. Cabe às lideranças políticas e aos governos mostrar que estão empenhados em fazer o melhor dentro dos limites possíveis e, para isto, necessitam da legitimidade que só um sistema representativo bem constituído e fundado em um ordenamento legal respeitado podem proporcionar.
Referências
Almond, Gabriel Abraham, e Sidney Verba. 1963. The civic culture; political attitudes and democracy in five nations. Princeton, N.J.,: Princeton University Press.
Avritzer, Leonardo, e Zando Navarro. 2003. O Orçamento Participativo e a Teoria Democrática – Um Balanço Crítico. São Paulo: Cortez.
Baierle, S. 2009. “The Porto Alegre Thermidor: Brazil’s’ Participatory Budget’ at the crossroads.” Socialist Register 39(39).
Cohen, J., e A. Fung. 2004. “Radical democracy.” Swiss Journal of Political Science 10(4):23-34.
Cornwall, Andrea. 2007. “Deliberating Democracy: Scenes from a Brazilian Municipal Health Council.” in Working paper. Sussex, Brighton: Institute of Development Studies.
Fedozzi, Luciano. 2001. “Práticas Inovadoras de Gestão Urbana: o paradigma participativo.” Revista Paranaense de Desenvolvimento (1000):93-107.
Foweraker, Joe. 2001. “Grassroots Movements, Political Activism and Social Development in Latin America A Comparison of Chile and Brazil.” in Civil Society and Social Movements Programme Paper Number 4. New York: United Nations Research Institute for Social Development.
Frey, K. 2003. “Building a local public sphere on the internet to strengthen local democracy: the experience of Curitiba/Brazil.”
Fukuyama, Francis. 2000. Social capital and civil society. Washington, DC: International Monetary Fund, IMF Institute.
IBGE, e IPEA. 2012. As Fundações Privadas e Associações sem fins Lucrativos no Brasil – 2010. Rio de Janeiro: IBGE.
Ojeda, Igor. 2012. “A Complexa Relação entre Estado e ONGs.” Desafios do Desenvolvimemto (IPEA) 9(71).
Putnam, Robert D. 2001. Bowling alone: the collapse and revival of American community. New York: Touchstone.
Schwartzman, Simon, e Maria Ligia de Oliveira Barbosa. 2010. “Desempenho escolar e características e ações dos municípios em Minas Gerais.” Rio de Janeiro: IETS.
Skocpol, Theda. 2003. Diminished democracy : from membership to management in American civic life. Norman: University of Oklahoma Press.
Sorj, Bernardo, e Danilo Martuccelli. 2008. O Desafio Latinoamericano: coesão social e democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Tocqueville, Alexis de. 1981. Democracy in America. New York: Modern Library.
Wampler, B., e L. Avritzer. 2004. “Participatory publics: civil society and new institutions in democratic Brazil.” Comparative Politics:291-312.
1 Disponível em http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR72309 (acessado em 22/06/2014).

Simon Schwartzmann é cientista político, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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