Aspectos Relevantes da Lei Anticorrupção e o Caso Petrobras
Desafios da quarta maior democracia do mundo
Acha-se em vigor no País, desde 29 de janeiro de 2014, a Lei no 12.846 (Lei Anticorrupção), que dispõe sobre a responsabilização objetiva, administrativa e civil, de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
I – Objetivos da Lei Anticorrupção
A Lei se destina a pessoas jurídicas envolvidas em atos de corrupção, independentemente da responsabilização de pessoas físicas, sejam elas agentes públicos ou privados.
Devem, assim, as autoridades públicas competentes, ao tomarem conhecimento de indícios da prática de atos de corrupção, imediatamente investigar e determinar a instauração de processo administrativo, visando apurar objetivamente a ocorrência dos delitos administrativos prescritos na Lei, bem como a aplicação das sanções cabíveis.
Isso é justamente o que já deveria ter sido feito há tempos no caso Petrobras. Embora se discuta atos possivelmente iniciados antes da entrada em vigor da Lei, tais atos de corrupção se enquadram na categoria dos “delitos permanentes ou continuados” e, portanto, plenamente por ela sancionáveis.
No presente caso, o delito principal é o contrato superfaturado e seus aditivos, sendo as propinas pagas a partidos políticos, parlamentares, diretores e funcionários da estatal, e a intermediários, doleiros, apenas o produto do mencionado delito administrativo.
E não há também que se falar da ausência de regulamentação da Lei como fundamento de sua não aplicação ao caso Petrobras. Apenas a adoção facultativa, e não obrigatória, dos procedimentos de compliance é que pressupõe regulamentação. Com exceção desse ponto lateral, a Lei já é aplicável a partir de 29 de janeiro de 2014.
A não instauração de processo administrativo voltado a apurar a ocorrência dos diversos delitos imputados às empresas envolvidas no escândalo de corrupção da Petrobras configura, assim, ato de improbidade das autoridades incumbidas de tal encargo, incidindo tais agentes públicos em crime de prevaricação (artigo 319 do Código Penal).
Do mesmo modo, quaisquer manobras articuladas por autoridades públicas no sentido de impedir a responsabilização administrativa dessas empresas, ainda que não sejam tais autoridades aquelas propriamente competentes pela instauração desses processos administrativos, configuram, igualmente, atos de improbidade.
II – A quebra do Estado de Direito pela presidente da República
Feitas as considerações acima, é forçoso concluir que a conduta da presidente da República, em face do presente escândalo de corrupção na Petrobras, seja ao querer negar vigência à Lei Anticorrupção, seja ao se manifestar favoravelmente ao acobertamento dos crimes praticados pelas empreiteiras e pela própria Petrobras nesse escândalo, leva à caracterização de crime de responsabilidade, na forma do art. 85, VII da Constituição Federal.
Essa conduta, que infringe o Estado de Direito, consta das declarações da presidente da República, em discursos oficiais do início de seu segundo mandato, e entrevistas de imprensa, as quais deixam mais do que clara sua determinação de subtrair à aplicação as disposições da Lei Anticorrupção, não apenas em relação à própria Petrobras, como também a todas as empresas privadas que com ela contrataram, causando gravíssimas lesões ao patrimônio público, e que são objeto de investigações em diversas ações penais em curso perante o Juízo da 13a Vara Criminal da Justiça Federal no Estado do Paraná.
Senão vejamos:
A presidente da República, em seu discurso de diplomação do segundo mandato, na sede do Tribunal Superior Eleitoral, em 18 de dezembro de 20141, referiu-se a atos de improbidade praticados por diversas pessoas jurídicas contra o patrimônio público no contexto da denominada “Operação Lava Jato” da Polícia Federal, junto à Petrobras, tendo proclamado que:
“Temos que punir as pessoas, não destruir as empresas. Temos que saber punir o crime, não prejudicar o país ou sua economia.” (grifamos)
Nesse mesmo sentido, a presidente da República, em seu discurso de posse perante o Congresso Nacional, realizado em 1o de janeiro de 20152, novamente declarou que:
“Como fiz na minha diplomação, quero agora me referir à nossa Petrobras, uma empresa com 86 mil empregados dedicados, honestos e sérios, que teve, lamentavelmente, alguns servidores que não souberam honrá-la, sendo atingidos pelo combate à corrupção.
Temos, assim, que saber apurar e saber punir, sem enfraquecer a Petrobras, nem diminuir a sua importância para o presente e para o futuro. Não podemos permitir que a Petrobras seja alvo de um cerco especulativo de interesses contrariados com a adoção do regime de partilha e da política de conteúdo nacional; partilha e política de conteúdo nacional que asseguraram ao nosso povo o controle sobre nossas riquezas petrolíferas. A Petrobras é maior do que quaisquer crises e, por isso, tem capacidade de superá-las e delas sair mais forte.”
Já no discurso proferido em sua primeira reunião ministerial, em 27 de janeiro de 2015, ocorrida na Granja do Torto3, a presidente da República foi ainda mais contundente:
“Gostaria de falar para vocês agora – podia passar mais rápido, por favor? –, que toda vez que se tentou, no Brasil, toda vez que tentaram, no Brasil, desprestigiar o capital nacional estavam tentando, na verdade… Bom, eu vou preferir ler, sabe? Estavam tentando, na verdade, diminuir a sua independência, diminuir a sua concorrência, e nós não podemos deixar que isso ocorra. Nós devemos punir as pessoas, e não destruir as empresas. As empresas, elas são essenciais para o Brasil. Nós temos que saber punir o crime, nós temos de saber fazer isso sem prejudicar a economia e o emprego do país. Nós temos de fechar as portas para a corrupção. Nós não podemos, de maneira alguma, fechar as portas para o crescimento, o progresso e o emprego.
E queria dizer para vocês que punir, que ser capaz de combater a corrupção não significa, não pode significar a destruição de empresas privadas também. As empresas têm de ser preservadas. As pessoas que foram culpadas é que têm que ser punidas, não as empresas.”
Em entrevista à imprensa, no dia 16 de novembro de 2014, em Brisbane, Austrália, após a Conferência de Cúpula do G-204, a presidente da República já havia declarado:
“Nem todos… aliás, a maioria absoluta, quase, dos membros da Petrobras, dos funcionários, não é corrupta. Agora, tem, foi integrada, tem pessoas que praticaram atos de corrupção dentro da Petrobras. Então, não se pode pegar a Petrobras e condenar a empresa. O que nós temos de condenar são pessoas.” (grifamos)
E, em nova entrevista à imprensa, a primeira concedida após suas férias de Carnaval, afirmou:
“Eu não vou tratar a Petrobras como a Petrobras tendo praticado malfeitos. Quem praticou malfeitos foram funcionários da Petrobras, que vão ter que pagar por isso.” 5
Os efeitos deletérios da atitude da presidente da República, de recusar a aplicação da Lei Anticorrupção, já se fazem sentir na Controladoria Geral da União – CGU, como se vê nas declarações de seus integrantes ao jornal O Globo, de 21 de fevereiro de 20156:
“A Controladoria-Geral da União (CGU) já decidiu, pelo menos com base nos elementos da Operação Lava Jato tornados públicos até agora, que a Petrobras ficará fora das punições previstas na Lei Anticorrupção. O entendimento que prevalece no órgão é que a estatal é vítima do esquema de desvio de recursos e de pagamento de propinas e, portanto, não existiria qualquer razão para o enquadramento da companhia. A lei passou a punir pessoas jurídicas – e não apenas funcionários – por prática de suborno.”
Fundamentada nas declarações públicas da presidente da República, sustenta a Controladoria Geral da União (CGU)7, contrariamente ao disposto na Lei Anticorrupção, que:
“A Petrobras é a empresa lesada, é vítima, não pode ser punida – diz um dos técnicos responsáveis por analisar a aplicação da lei na CGU.”
Resulta claro, do simples confronto (i) dos textos oficiais dos discursos proferidos pela presidente da República, em 18 de dezembro de 2014, em 1o de janeiro de 2015, e em 27 de janeiro de 2015, bem como das entrevistas coletivas que concedeu, com (ii) o texto do artigo 3o, §1o, da Lei Anticorrupção, que a conduta da presidente da República, de impedir a responsabilização das empresas, seja a Petrobras, sejam as que com esta contrataram, para somente punir as pessoas naturais envolvidas, configura o crime de responsabilidade capitulado no artigo 8o, item 7, da Lei no 1.079/1950.
Não pode haver dúvida de que a Lei Anticorrupção se aplica a atos praticados pelas empresas públicas e de economia mista, as fundações e os institutos públicos junto a terceiros, nem de que, para os efeitos da Lei, tais entidades são entes públicos descentralizados, em todos os sentidos e para todos os efeitos, respondendo pela conduta corruptiva que vierem a praticar. Inquestionável, portanto, sua aplicação, tanto à própria Petrobras como a todas as empresas que com esta haviam contratado.
As declarações da presidente da República, acima transcritas, caracterizam a conduta delitiva capitulada no artigo 8o, item 7, da referida Lei no 1.079/1950, posto que, mais do que permitir a infração à Lei Anticorrupção, elas conclamam à sua infração em casos nos quais os gigantescos prejuízos causados à Petrobras foram confessados pela administração da própria Petrobras e reconhecidos pela própria presidente da República nos seus discursos e entrevistas. Vale dizer que a presidente da República reconhece a existência da conduta corruptiva, não apenas da Petrobras, como a de suas cocontratantes, mas nega, de público, que a esta conduta se deva aplicar a Lei Anticorrupção.
A referida Lei no 1.079/1950 é clara, em seu artigo 4o, ao dispor que:
“São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
(…)
IV – A segurança interna do país;”
E o artigo 8o, item 7, da mesma lei, estabelece:
“Art. 8o São crimes contra a segurança interna do país:
(…)
7. permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública.”
Não há que questionar a recepção das disposições da Lei no 1.079/1950 pela Constituição Federal de 1988, posto que esta, em seu artigo 85, reproduz, literalmente, o texto do artigo 4o da Lei no 1079/1950, com exceção do inciso VII, que não está em causa.
Além de cometer explicitamente crime de responsabilidade ao assim agir contra a aplicação de Lei Federal, (art. 85, VII da Constituição Federal), a presidente demonstra a falta de diretriz do seu governo, face à ignorância dos efeitos benéficos da aplicação da Lei Anticorrupção no caso da Petrobras e das empreiteiras e fornecedoras nacionais e multinacionais que, em concurso criminoso, levaram à destruição de valor da estatal e, agora, gradativamente, delas próprias.
Resultado: a vontade da presidente se sobrepõe à Lei e, com isso, fere o Estado de Direito, cometendo crime de responsabilidade. As empresas implicadas já estão sofrendo os efeitos perversos desse limbo jurídico, enquanto o próspero mercado internacional da aquisição de empresas corruptas, liderado pelos norte-americanos, já iniciaram a compra de ativos das empresas brasileiras corruptas, inclusive da própria Petrobras.
III – O sistema mundial de combate à corrupção
A corrupção é objeto de importantes tratados internacionais (Tratado da OCDE, de 1997 – Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, ratificada pelo Brasil em 2000; Convenção Interamericana contra a Corrupção – OEA, de 1996, ratificada pelo Brasil em 2002; e Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de 2003, ratificada pelo Brasil em 2006), sendo combatido esse tipo de crime, no plano interno, em especial pelos Estados Unidos (Foreign Corrupt Practices Act, de 1977, matriz de todos os Tratados) e pelo Reino Unido (Bribery Act inglês, de 2010, que, através do “serious fraud office”, permite a perseguição das empresas corruptas fora do território inglês), jurisdições que dispõem de sistemas rígidos de investigação desses ilícitos internacionais.
Ao firmar os acordos internacionais, os países comprometem-se a processar administrativamente empresas corruptas, não apenas nacionais como também multinacionais.
Ao processar as nacionais e as multinacionais a autoridade local estará colaborando com as autoridades dos países de origem e demais nações vítimas da mesma empresa corrupta, no combate ao delito, instalando em suas jurisdições as providências e os processos respectivos.
Nesse aspecto, há, no plano internacional, uma relativização da territorialidade das leis e de sua aplicação no combate à corrupção, permitindo-se a atração de outra jurisdição estrangeira nas hipóteses em que não se verifique a aplicação da Lei nacional do país em que o ilícito se produz.
Isso é o que ocorreu no caso Alstom, em que, embora esta companhia não tenha praticado corrupção nos Estados Unidos, está sendo processada perante o Departamento de Justiça norte-americano, diante da omissão das autoridades francesas em dar seguimento à investigação de atos de corrupção ligados a obras de metrô em diversos países, tais como Índia, Polônia, Tunísia, Letônia, Malásia, Zâmbia, Hungria e Egito. Além de se submeter à jurisdição do Departamento de Justiça norte-americano, a Alstom tem sido igualmente objeto de investigações perante o Banco Mundial, o Serious Fraud Office inglês, o governo suíço, entre outras autoridades internacionais e de outros países.
É, assim, obrigação do país vítima da corrupção instaurar o quanto antes processos de investigação e punição, sob pena de outras jurisdições o fazerem, notadamente a norte-americana, que, através do Ministério da Justiça, é altamente capacitada.
Esse foi exatamente esse o compromisso assumido pelo Brasil ao firmar os acordos internacionais em que se compromete a processar administrativamente todas as empresas – pessoas jurídicas – nacionais e multinacionais – envolvidas em corrupção pública.
Com efeito, ao dar efetiva vigência à Lei Anticorrupção, instaurando processos administrativos voltados à apuração objetiva de atos de corrupção praticados em seu território, o governo brasileiro estaria – mas não está – atendendo a esse compromisso internacional evitando, de resto, que tais atos sejam investigados e sancionados em outras jurisdições.
IV – O regime internacional de punição das condutas corruptas
Como se sabe, prevalece no direito internacional o princípio de que uma empresa corrupta não pode ser punida duas vezes pelos mesmos fatos. Não poderia, assim, no escândalo da Petrobras, ora em curso, uma mesma empreiteira ou fornecedora da Petrobras ser punida aqui pela Lei Anticorrupção, através de devido processo legal e, ao mesmo tempo ou em seguida, também punida pela jurisdição de outros países. Ora, se um país signatário punir, não pode outro signatário dos Tratados fazê-lo novamente.
Ocorre que o governo brasileiro, através da CGU, até agora não instaurou o devido processo administrativo contra as empreiteiras e contra a Petrobras, obedecendo a ordens da presidente da República.
Ao assim agir, negando a aplicação da Lei Anticorrupção contra a Petrobras, as empreiteiras e fornecedoras, a presidente da República confere legitimidade para que outros países signatários dos Tratados possam puni-las, ainda que os atos de corrupção não tenham sido praticados em seus territórios.
Em vez de ser beneficiarem da omissão do governo brasileiro, a Petrobras, as empreiteiras e fornecedoras acabam sofrendo sanções ainda mais severas, tais como a declaração de sua inidoneidade na esfera internacional e a aplicação de multas pesadas, seja pelo Banco Mundial ou por países signatários dos referidos Tratados ratificados pelo Brasil (OCDE, OEA e ONU).
Nega-se, especialmente o governo brasileiro, a proteger a Petrobras e todas as empreiteiras envolvidas, da jurisdição extraterritorial do governo norte-americano que, através do seu Departamento de Justiça, vai atrair para sua esfera punitiva todas essas empresas, mesmo que não tivessem corruptamente operado nos Estados Unidos.
Ou seja, não sendo devidamente processadas aqui, o que permitiria à Petrobras e às suas contratadas purgarem as suas faltas no plano nacional e internacional, submetem-se ao pagamento de severas multas e sanções que só as prejudica ainda mais.
Por isso, a presidente da República, ao negar a aplicação de nossa Lei Anticorrupção, sob o pretexto de salvar empregos ou o sistema financeiro nacional, está abrindo as portas para que as leis e as sanções dos outros países se abatam pesadamente sobre elas.
V – Uma nova relação jurídico-contratual entre o Poder Público e as empreiteiras e fornecedoras
Diante desse cenário de total insegurança e ausência de qualquer credibilidade nas instituições públicas, é necessário que sejam pensadas, para o futuro, soluções para minimizar os efeitos perversos da corrupção sistêmica disseminada em nosso território.
No que diz respeito aos contratos com o governo – foco principal das discussões desde que se tornaram conhecidos os escândalos recentes do caso Petrobras – a única solução viável é acabar com a interlocução direta entre o Poder Público e as empreiteiras e suas fornecedoras.
Para tanto, é fundamental a utilização obrigatória, em tais contratos de seguros, de garantia de obra (performance bonds), espécie do seguro de garantia (surety bond), de inspiração norte-americana, que, de resto, já vem sendo adotado há décadas pela própria Petrobras com alguns de seus fornecedores.
Tais garantias são plenamente compatíveis com nosso regime de licitações públicas, independendo, assim, de qualquer modificação legislativa. Todas as leis em vigor que tratam da matéria de concorrência, de licitação e de contratação com o Poder Público preveem a constituição de garantia para a contratação e execução dos respectivos contratos, sendo absolutamente desnecessárias novas leis estabelecendo o regime de security bond na modalidade de performance bond.
A única providência necessária é exigir em todos os editais a adoção do regime de garantias nas concorrências públicas em todos os níveis, acima de um determinado valor.
Quando muito, o governo federal poderá expedir um decreto administrativo exigindo que as licitações, conforme preveem as leis concernentes, contenham a cláusula de garantia sob o regime de performance bond para a respectiva obra. Poderá, ainda, esse mesmo decreto administrativo abranger todos os estados e municípios que recebam, direta ou indiretamente, verbas da União para realização de obras públicas.
Nos Estados Unidos, a matéria é tratada no plano federal pelo Federal Miller Act Bonds, que, nas versões vigentes de 1984 e de 2010, regula a absoluta obrigatoriedade de que todo o contrato de construção firmado entre ente público federal e pessoa jurídica privada seja, sem exceção, segurado pelo regime de performance bonds.
Por essa lei federal norte-americana, será o ente público quem declara o montante que deve constar da apólice, incluindo o valor da obra, seus encargos, os impostos e taxas correspondentes, o valor dos licenciamentos, o valor das multas de mora e compensatórias, etc.
Todos os Estados americanos, prefeituras e condados têm leis no mesmo sentido, todas nos termos do Federal Miller Act Bonds e, em geral, chamadas Little Miller Act Bonds.
Essas leis, tanto a federal como as estaduais, municipais e distritais (condados), exigem a celebração da apólice de garantia, mediante performance bond, para todas as obras a partir do valor de US$ 10 mil nos municípios e de US$ 100 mil na esfera federal, abrangendo todo contrato de obras, garantindo sua execução em boa-fé, rigorosamente de acordo com projeto, especificações, prazos e demais condições contratadas.
De um modo geral, o seguro de garantia de obra (performance bond) garante o ente público contra quaisquer riscos de inadimplência do contrato firmado com a empreiteira contratada, tanto no que concerne ao preço quanto à qualidade e aos prazos. Fica, assim, o ente público totalmente imune aos riscos e às incertezas da execução do contrato, bem como a renegociações que possam ser questionadas posteriormente.
Tais riscos são transferidos à seguradora, passando esta, e não o ente público, a fiscalizar as empreiteiras e a avaliar junto a estas situações que possam ensejar o descumprimento de prazos, de qualidade e de condições inicialmente pactuados no contrato.
Cessam aqui as interlocuções diretas dos entes públicos com as empreiteiras, interlocução essa que leva aos criminosos arranjos de corrupção.
A apólice de garantia envolve três pessoas: o ente público contratante da obra ou do fornecimento, a pessoa jurídica privada contratada para a execução das obras e a seguradora.
O beneficiário da apólice é o ente público contratante. O garantidor é a companhia de seguro que paga ao beneficiário (ente público). Se a seguradora for obrigada a pagar ao ente público o valor da apólice em virtude do descumprimento pela pessoa jurídica privada contratada, esta deverá ressarcir inteiramente a companhia de seguros, conforme contrato de ressarcimento pleno, firmado no momento da emissão da apólice.
A apólice de garantia de obra ou fornecimento é inteiramente diversa da apólice de seguro convencional. A apólice convencional é firmada entre duas partes apenas – a seguradora e o segurado –, com respeito a fatos desconhecidos ou eventos com data desconhecida, ou seja, tendo em vista sempre fatos futuros e/ou incertos.
Já a apólice de performance bond é firmada, conforme mencionado, entre três partes – a seguradora, o ente público (segurado) que contrata e a pessoa jurídica privada contratada pelo ente público –, assumindo a companhia de seguros a obrigação de responder perante o ente público contratante pelo descumprimento das obrigações por parte da pessoa jurídica contratada para a realização da obra (general contractor).
Trata-se, neste caso, de acontecimento presente e conhecido que depende unicamente do cumprimento (performance) do contrato perante o ente público contratante.
No caso de inadimplemento do contrato, a seguradora fornece ao ente público os recursos necessários para prosseguir com as obras cuja execução foi inadimplida, devendo também cobrir as multas de mora e as contratuais estabelecidas no contrato.
A pessoa jurídica contratada, que será sempre considerada o “general contractor”, com todas as obrigações daí decorrentes, não poderá arguir exceção de inadimplemento por nenhuma das subcontratadas, ainda que estas constem do próprio contrato de obras e sejam, assim, do conhecimento e da aceitação do ente público contratante.
O valor do ressarcimento ao ente público será fixado na apólice, devendo sempre corresponder ao total do valor da obra contratado entre o ente público e a pessoa jurídica privada, incluindo-se aí todos os valores adicionais, como o valor dos impostos, encargos previdenciários, etc.
No caso de descumprimento do contrato, a seguradora será notificada a pagar esse montante, o qual, evidentemente, poderá ser menor nas hipóteses em que o descumprimento corresponder apenas a uma parte da obra.
Contrato de indenização
A apólice contendo esse valor global e abrangente, a ser coberto pela companhia de seguros no caso de inadimplência da empreiteira contratada, será firmada simultaneamente com outro contrato de indenização a favor da seguradora, celebrado pela referida empreiteira, pelas demais pessoas jurídicas do grupo empresarial e seus administradores, e que terá por objeto a indenização ou o reembolso dos valores pagos pela segurada ao ente público, por ocasião da inadimplência total ou parcial da obra.
O contrato de indenização firmado entre a empreiteira e a companhia de seguros deverá conter uma cláusula de solidariedade entre a empreiteira, seus principais diretores, controladoras e controladas diretas e indiretas. Esse contrato integrará a apólice, para que, desse modo, seja de pleno conhecimento das três partes envolvidas.
Por outro lado, quando da ocorrência do inadimplemento contratual pela empreiteira, o ente público deverá estar cumprindo rigorosamente com as suas obrigações contratuais, nos estritos termos constantes da apólice do performance bond.
Para o acionamento do seguro, o ente público deverá notificar o contratado do inadimplemento, e da consequente rescisão contratual, com cessação do seu direito de continuar executando a obra, notificando, na mesma ocasião, a seguradora do ocorrido.
Poderá ser estipulada na apólice do seguro que, diante do inadimplemento da empreiteira, deverá a seguradora simplesmente ressarcir os prejuízos sofridos pelo ente público sem, contudo, assumir qualquer compromisso pelo término da obra.
Por outro lado, considerando o percentual da obra inadimplida que deva ser completada, poderá ser estipulado que a seguradora deverá financiar o próprio contratante inadimplente para a complementação da obra, desde que dentro dos prazos contratados.
E, ainda, poderá a seguradora ir além e se comprometer a atuar junto ao ente público no que concerne à execução complementar da obra. Neste caso, conforme a apólice, poderá ser dada a faculdade à seguradora de ela própria assumir a execução do restante do contrato ou, então, de selecionar outra construtora para tanto, obrigando-se o ente público a pagar o restante do valor do contrato inadimplido à seguradora ou diretamente ao contratante selecionado.
Isto posto, por permitir a quebra da interlocução direta do ente público com as empreiteiras e, assim, restringir as manobras de renegociação de contratos de obras e de fornecimento e seus consequentes superfaturamentos, o seguro de garantia constitui fundamental ferramenta para a desestruturação dos vários sistemas de corrupção hoje disseminados em nosso país.
1 Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-da-presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-solenidade-de-diplomacao-no-tribunal-superior-eleitoral-brasilia-df
2 Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-da-presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-compromisso-constitucional-perante-o-congresso-nacional-1
3 Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-da-presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-abertura-da-reuniao-ministerial-granja-do-torto
4 Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/entrevistas/entrevistas/entrevista-concedida-pela-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-apos-sessao-plenaria-da-cupula-do-g20-brisbane-australia
5 Disponível no jornal “O Globo”, ed. de 21/02/2015, p.6.
6 Disponível no jornal “O Globo”, ed. de 21/02/2015, p.4.
7 Disponível no jornal “O Globo”, ed. de 21/02/2015, p.4.
É jurista. Ph.D. em Direito da Universidade de São Paulo. Ex-professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; consultor jurídico da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA); presidente do Tribunal de Ética dos Advogados do Brasil em São Paulo; relator do projeto de Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil; membro da International Faculty for Corporate and Capital Market Law and Securities Regulation da Universidade de Filadélfia; árbitro em vários centros de arbitragem; e sócio de Modesto Carvalhosa Advogados. Tem vários livros publicados, entre eles: Infraestrutura e Eficiência e Ética, em colaboração com Affonso Celso Pastores; Comentários à Lei das Sociedades Anônimas – Editora Saraiva – volumes I, II, III and IV, books I and II, revisados e atualizados de 1977 a 2014; Considerações sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas – Lei n. 12.846, de 2013 – Editora RT – 2014; Acordo de Acionistas - Editora Saraiva – 2011 – 2a edição – 2014; Direito Econômico – Obras completas de Modesto Carvalhosa – Editora RT – 2013; Estudos de Direito Empresarial – em colaboração com Nelson Eizirik – Editora Saraiva 2010; Livro Negro da Corrupção – Ed. Paz e Terra 1995.
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