Balanço da atuação do Brasil no Conselho de Segurança da ONU
Carlos Alberto Franco França é diplomata, advogado e foi ministro das Relações Exteriores do Brasil. Graduou-se em Relações Internacionais (1986) e em Direito (1990) pela Universidade de Brasília.
O Brasil iniciou sua participação no Conselho de Segurança quando as restrições impostas pela Covid-19 começavam a arrefecer. A retomada das atividades presenciais exigiu novo impulso para retomar a dinâmica de reuniões e, sobretudo, de discussões espontâneas entre as delegações. O que parecia ser um momento virtuoso de retomada do diálogo e deliberações pós-pandemia foi afetado drasticamente pelo conflito na Ucrânia, que acentuou divisões pré-existentes e disputas geopolíticas entre os membros permanentes.
Em dezembro de 2022, o Brasil conclui o primeiro ano de seu 11o mandato como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). O momento constitui oportunidade para refletir sobre os avanços e os desafios da atuação brasileira no CSNU, órgão central do sistema multilateral para temas de paz e segurança internacional.
A primeira seção do texto tratará dos atributos que qualificam o Brasil para uma atuação independente e equilibrada neste 11o mandato, incluindo a campanha à eleição pela Assembleia-Geral em 2021. Na sequência, é abordada a presidência brasileira do CSNU, em julho de 2022. Seção específica tratará do conflito na Ucrânia, por seus efeitos sistêmicos na geopolítica internacional e na dinâmica de trabalho do Conselho. Por fim, à luz da atuação brasileira, será analisada a necessidade de reforma do órgão, de maneira a torná-lo mais legítimo e representativo das realidades políticas do século XXI.
Os atributos históricos do Brasil e as prioridades para o mandato 2022–2023
Nos 77 anos das Nações Unidas, o Brasil cumpriu dez mandatos como membro não permanente do Conselho de Segurança (1946-47, 1951-52, 1954-55, 1963-64, 1967-68, 1988-89, 1993-94, 1998-99, 2004-05 e 2010-11). É o país em desenvolvimento que mais vezes serviu no Conselho, seguido da Índia, que termina seu 8o mandato neste mês de dezembro.
A primeira participação do Brasil no Conselho de Segurança remonta a 1946. Membro fundador da ONU, o país fez parte da primeira configuração do Conselho, naquela época sediado em Londres, e foi o segundo país a exercer sua presidência rotativa. No contexto dos efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial, coube ao representante brasileiro, Embaixador Cyro Freitas-Valle, conduzir os trabalhos daquele recém-criado mecanismo de segurança coletiva[1].
O país continuou a contribuir para o órgão nas décadas seguintes, mas se ausentou entre 1968 e 1988, período que coincidiu com virtual paralisia do Conselho em razão das disputas da Guerra Fria. Desde seu retorno ao CSNU, em 1988, o Brasil tem sido presença constante como membro eleito.
O Brasil tem contribuído para as missões de paz da ONU desde a primeira operação de manutenção da paz, em 1956, em Suez (UNEF I), tendo inclusive exercido o comando do contingente militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) por 13 anos. Ao longo de mais de seis décadas, foram desdobrados para situações de conflito cerca de 55.000 militares, policiais e civis brasileiros sob a bandeira das Nações Unidas. Hoje, além de contarmos com nacionais atuando em diversas partes do mundo, um oficial general brasileiro comanda, desde 2018, a Missão da ONU para a Estabilização na República Democrática do Congo (Monusco).
A preparação para a campanha brasileira à 11a eleição ensejou importante reflexão no Itamaraty sobre as prioridades brasileiras para o presente mandato. Foram estabelecidas sete diretrizes: a) Prevenir e Pacificar; b) Manutenção Eficiente da Paz; c) Resposta Humanitária e Promoção de Direitos Humanos; d) Promoção da Agenda de Mulheres, Paz e Segurança; e) Coordenação com a Comissão de Consolidação da Paz; f) Articulação com Organizações Regionais; e g) Por um Conselho de Segurança mais Representativo.[2]
Tendo esses princípios como plataforma de campanha, o Brasil obteve 181 votos dentre os 193 membros da Assembleia Geral da ONU, bem mais do que os 2/3 necessários para a eleição.
A Presidência Brasileira do Conselho de Segurança
Com base no esquema de rodízio mensal, o Brasil presidiu o Conselho de Segurança em julho de 2022 e valeu-se da oportunidade para realizar debates e eventos em linha com as prioridades do mandato. Estive pessoalmente em Nova York, em 12 de julho, para presidir o debate aberto intitulado “Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas: o papel fundamental das comunicações estratégicas para a manutenção eficiente da paz”. Tratava-se de tema inédito nas discussões no Conselho de Segurança.
O debate aberto contou com a participação do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres; do comandante do componente militar da Monusco, o general brasileiro Marcos de Sá Affonso da Costa; e da diretora de pesquisa do International Peace Institute (IPI), Jenna Russo. Além de todos os membros do Conselho, participaram das discussões mais de 20 outros estados membros da ONU.
Um dos tópicos recorrentes foi a preocupação dos estados-membros com os efeitos da disseminação de notícias falsas e de campanhas de desinformação sobre o desempenho das missões de paz e sobre a segurança dos capacetes azuis. Mencionaram-se situações especialmente desafiadoras enfrentadas pelas missões da ONU no Mali (Minusma), República Centro-Africana (Minusca) e República Democrática do Congo (Monusco).
A comunicação estratégica a respeito dos meios e objetivos das operações de manutenção da paz influencia fortemente o êxito dessas missões, com efeitos multiplicadores em diversas áreas, como proteção de civis; respeito aos direitos humanos; avanço da agenda de Mulheres, Paz e Segurança; e criação de ambiente seguro para os capacetes azuis.
Por iniciativa brasileira, o Conselho aprovou Declaração Presidencial sobre comunicação estratégica em operações de manutenção da paz, primeiro documento do Conselho a tratar especificamente desse tema. Desde a aprovação da Declaração, em julho de 2022, atribuições específicas nessa área têm sido incluídas nos mandatos das operações de paz aprovados pelo CSNU.
O Brasil também organizou, em julho, debate aberto sobre Crianças e Conflitos Armados. O evento foi presidido pelo secretário-geral das Relações Exteriores, embaixador Fernando Simas Magalhães, e contou com a participação de mais de 70 estados-membros. Participaram como briefers a representante especial do SGNU para Crianças e Conflitos Armados, Virginia Gamba; a diretora-executiva do Unicef, Catherine Russell; e o representante da ONG Similar Ground, Patrick Kumi.
O debate evidenciou amplo apoio político ao aperfeiçoamento de estratégias para a reintegração de crianças afetadas por conflitos armados e revelou a disposição de diversos países para explorar sinergias entre a agenda de Crianças e Conflitos Armados, a Comissão de Consolidação da Paz e o Fundo para Consolidação da Paz (PBF).
Também em linha com as prioridades do mandato, a presidência brasileira do CSNU organizou reunião conjunta do Conselho com a Comissão de Consolidação da Paz (PBC) para aprofundar a cooperação entre os dois órgãos.
Quanto à agenda regular do Conselho, aprovaram-se sete resoluções durante a presidência brasileira, com destaque para temas de particular sensibilidade, como o apoio ao Acordo de Hodeidah no Iêmen, a renovação do mecanismo de passagem de ajuda humanitária na Síria e a renovação do mandato do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH). Em todos esses casos, a presidência brasileira atuou no sentido de aproximar posições divergentes, sobretudo entre os membros permanentes, em prol de resultados concretos nas deliberações do órgão.
Tanto na organização dos briefings quanto dos debates abertos, o Brasil cumpriu seu compromisso de trazer diversidade de perspectivas, em especial com a participação de briefers mulheres e representantes da sociedade civil.
O Conflito na Ucrânia e os efeitos sistêmicos na atuação do Conselho de Segurança
Pouco mais de um mês após o início do mandato brasileiro, eclodiu, em fevereiro, o conflito na Ucrânia, agravando as disputas geopolíticas entre os membros permanentes do Conselho, notadamente entre os membros da OTAN – EUA, Reino Unido e França –, de um lado, e Rússia e China, de outro.
O clima de divisão e desconfiança entre os P5 já se vinha deteriorando pelo menos desde 2011, quando foi aprovada a Resolução 1973, pela qual o Conselho autorizava o uso de “todos os meios necessários para proteger civis” na Líbia. Na ocasião, Rússia e China, além do Brasil, optaram por abster-se na votação. Membros da OTAN e alguns aliados utilizaram essa resolução como carta branca para uma intervenção militar mais ampla, o que não condizia com o espírito da decisão do CSNU. A intervenção na Líbia não colaborou para resolver a situação institucional no país nem para proteger civis, e seus efeitos políticos, sociais e econômicos são sentidos até hoje.
O conflito na Ucrânia elevou as tensões geopolíticas a novo patamar. Ao envolver diretamente as ações de um membro permanente – que colocaram em xeque a arquitetura de segurança estabelecida no continente europeu desde o final da Guerra Fria –, seguiram-se reações de outros membros permanentes. Os efeitos para o CSNU foram imediatos e duradouros.
Dias após o início da operação militar, ainda em fevereiro, a Rússia vetou projeto de resolução apresentado pelos Estados Unidos no Conselho que condenava, em duros termos, as ações russas na Ucrânia; caracterizava-as como violação da paz e segurança internacionais; e exigia sua retirada imediata do território ucraniano.
O CSNU não logrou, desde então, adotar sequer uma resolução sobre o conflito. As tentativas esbarraram em vetos ou na ausência de apoio consistente dos membros. Não foram incomuns as críticas apresentadas pelo Brasil ao uso de procedimentos confusos e à falta de transparência e inclusão nos processos negociadores no CSNU.
O Conselho tem quase semanalmente realizado debates abertos e “briefings” sobre diferentes aspectos do conflito, mediante solicitação tanto do bloco ocidental quanto da Rússia. A maioria parece, infelizmente, destinada a gerar efeito acusatório e midiático em vez de criar espaço de negociação na busca de solução duradoura.
O Brasil tem pautado sua atuação no tratamento do conflito na Ucrânia pela busca da preservação de vidas humanas, pela defesa do respeito ao direito internacional humanitário e aos direitos humanos e pela preservação do papel do CSNU. Assim como muitos dos membros eleitos do Conselho, o Brasil tem evitado alinhamentos automáticos e buscado impulsionar o órgão a cumprir a responsabilidade de fomentar o diálogo entre as partes.
Para além da perda de vidas humanas, do impacto humanitário e da destruição de infraestrutura, o conflito tem consequências que reverberam ao redor do mundo. A desorganização das cadeias de suprimento de grãos, fertilizantes e energia, por exemplo, tem afetado a disponibilidade e o acesso a tais insumos. É também alarmante o risco de espraiamento regional do conflito, bem como o de escalada militar pelo envolvimento, ainda que indireto, de outras potências nucleares.
Diante da polarização do Conselho, o Brasil manteve postura independente, equilibrada, pragmática e aberta à construção do diálogo como única saída para a crise política e militar. Lamentavelmente, a dinâmica do próprio Conselho de Segurança, quer por sua constituição, quer pelo poder de veto dos membros permanentes, tem gerado a reiteração de posições maximalistas, e não o encaminhamento para uma solução ao conflito, como se esperaria do mais alto órgão responsável pela paz mundial.
A defesa da centralidade da Agenda de Paz e Segurança Internacionais
O Brasil deu, neste primeiro ano, atenção particular aos dossiês da América Latina e do Caribe na agenda do Conselho. Com relação ao Haiti, país que enfrenta grave crise multidimensional, atuamos para elevar a importância do tema na agenda do CSNU e reforçar o mandato da missão da ONU no país. No que se refere ao monitoramento do Acordo Final de Paz na Colômbia, o Brasil buscou assegurar seu fiel cumprimento por todas as partes e auxiliar as autoridades na implementação dos capítulos étnicos e de desenvolvimento rural.
Outra prioridade da atuação do Brasil tem sido garantir que o foco de atuação do Conselho não se afaste das questões que lhe cabem primariamente na manutenção da paz e da segurança internacionais, evitando, inclusive, que o CSNU usurpe a competência de outros órgãos do Sistema ONU, que dispõem de melhores ferramentas e de representação mais democrática para tratar adequadamente de determinados temas.
Esse é o caso da mudança do clima, que alguns membros do Conselho desejam ver associada a questões de segurança. Parecer científico do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já confirmou serem fracas as evidências de que a mudança do clima seja fator central na eclosão de conflitos. Embora os efeitos climáticos possam agravar situações de vulnerabilidade, suas causas profundas devem-se a outros fatores, como a pobreza e o subdesenvolvimento.
O Brasil entende que o tratamento multilateral da questão climática deve permanecer nos foros apropriados, como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e seu Acordo de Paris. Operações de manutenção da paz, missões políticas especiais e sanções aprovadas pelo CSNU são instrumentos inadequados para lidar com os desafios climáticos.
O déficit de representatividade e a necessidade de reforma do Conselho de Segurança
As dificuldades que o Conselho de Segurança tem enfrentado evidenciam a urgência de sua reforma, em termos de composição e métodos de trabalho, de modo a torná-lo mais legítimo em suas discussões e mais representativo em suas decisões. É inaceitável que regiões inteiras sejam alijadas dos processos decisórios centrais do CSNU, com a ausência completa da África e da América Latina e Caribe entre os membros permanentes, além da sub-representação da Ásia.
O Brasil continua a defender uma reforma abrangente da ONU, inclusive do Conselho de Segurança. A atuação responsável e equilibrada como membro do Conselho em 2022 prova que o país é um dos candidatos mais qualificados em todo o mundo, não só pelo nosso peso geográfico, econômico e político, mas também pela nossa capacidade autônoma de avaliação, decisão e ação. No exercício do seu mandato, o Brasil reafirma suas sólidas credenciais para ocupar assento permanente no Conselho de Segurança no cada vez mais urgente processo de reforma da ONU. n
[1].
Garcia, Eugênio Vargas. O Sexto Membro Permanente: O Brasil e a Criação da ONU. Contraponto, 2012, p277.
[2].
O detalhamento de cada uma das prioridades pode ser encontrado em https://www.gov.br/mre/pt-br/Brasil-CSNU/7-prioridades-do-brasil/as-7-prioridades-do-brasil-no-conselho-de-seguranca-2013-2022-2023, visualizado em 8/10/22
Carlos Alberto Franco França é diplomata, advogado e atual ministro das Relações Exteriores do Brasil. Graduou-se em Relações Internacionais (1986) e em Direito (1990) pela Universidade de Brasília.
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