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Interesse Nacional
31 março 2021

Biden equilibra retórica e realpolitik na política externa

Os primeiros movimentos do novo governo norte-americano em sua política externa confirmaram expectativas de analistas: uma guinada retórica em relação às más práticas do mandarinato de Donald Trump, mas com mudanças reais bem mais cautelosas. Os motores da história operam em rotação mais lenta do que os do mundo hiperconectado das redes sociais, e o presidente Joe Biden até aqui mostrou ter plena compreensão da necessidade de trabalhar com os dois diapasões.

“A América está de volta. A diplomacia está de volta ao centro de nossa política externa”, disse Biden em seu primeiro discurso sobre o tema, numa visita ao Departamento de Estado em 4 de fevereiro, pouco depois de sua posse. É um truísmo, mas o mundo de espelhos partidos deixado pelos quatro anos de Trump parece exigir que obviedade e bom senso sejam reafirmados.

Ao apontar seu colega de duas décadas Antony Blinken, um profissional do ramo, para chefiar a diplomacia, Biden asseverou ao mundo que os dias do apoplético Mike Pompeo em cima de seu palanque ficaram para trás. Suas primeiras medidas foram condizentes com o que pregara na campanha: o retorno dos Estados Unidos ao sistema internacional.

Após os anos Trump, em que qualquer organismo multilateral era qualificado como uma sucursal do Leviatã globalista, os EUA estão de volta aos Acordos de Paris e interromperam sua saída da Organização Mundial da Saúde (OMS). Não que sejam institutos impolutos: muito há de se criticar pela vista grossa feita pela OMS ao manejo inicial da pandemia da Covid-19 pela China, por exemplo. Isso dito, é preferível que a maior economia do planeta esteja minimamente integrada a esforços globais no combate ao vírus do que longe deles.

Biden terá de retomar uma discussão interrompida largamente por Trump acerca do papel dos EUA no mundo. Desde que a ordem pós-Guerra Fria, que supunha uma unipolaridade centrada em Washington, foi desmantelada com os desafios do jihadismo e a ascensão da China, os americanos se deparam com um dilema existencial. Grosso modo, como se manter como a principal potência econômica e militar do planeta aceitando uma realidade multipolar cada vez mais dinâmica?

A resposta de Trump foi bater em retirada sempre que possível, e introduzir na Casa Branca o nacionalismo de cepa autoritária que caracteriza seus seguidores mundo afora, de Viktor Orbán e Rodrigo Duterte a Bolsonaro. Não foi, por certo, um movimento inexorável. Trump recuou diversas vezes, mas o dano que ele fez ao círculo de alianças dos EUA é histórico.

De forma lógica, Biden de saída procurou a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), principal elo geopolítico entre Washington e seus aliados europeus. Trump havia basicamente chamado a aliança criada em 1949 de obsoleta, o que não é um erro em si, mas nunca apresentou algum arranjo alternativo.
Biden também não parece ter algo na manga, mas ao menos não comprou hostilidade imediata dos europeus, particularmente os assustados membros orientais do clube. Ao contrário, falou do fantasma que os assombra em voz bem alta. Reafirmou em um telefonema franco com o russo Vladimir Putin seu descontentamento com as práticas do Kremlin e, em seu discurso de fevereiro, afirmou que não deixaria mais a Rússia envenenar oponentes ou interferir em eleições sem objeções.

Jogou para a plateia, claro, dado que na prática não há exatamente mais o que os EUA possam fazer: a elite política russa está sob sanções ocidentais desde que Putin anexou a Crimeia em 2014 e, se não está feliz, não parece facilmente impressionável com retórica.

Mais importante, Biden cedeu a Putin e aceitou a renovação do importante acordo de controle de armas nucleares estratégicas New Start, que caducaria por obra de Trump em 5 de fevereiro. O americano ganhou tempo para lidar com questões mais urgentes, como a pandemia, mas a tática embute uma temeridade. Ao longo de seu governo, Trump tomou medidas que aproximaram o mundo de um conflito nuclear, ainda que acidental. Diplomatas e especialistas pedem a restauração de instrumentos de controle mais objetivos. Mas Biden não parece muito preocupado. Seu secretário da Defesa, Lloyd Austin, não é conhecido como um especialista na área nuclear. E o Departamento de Energia, que tem 75% de seu orçamento dedicado ao complexo de armas atômicas americanas, está na mão de uma aficionada em veículos elétricos, Jennifer Granholm.

Brasil em cena
Isso aponta outra vertente importante para entender a política externa de Biden, exatamente aquela que diz mais respeito ao Brasil. O presidente americano montou um time com alta densidade política para lidar com a mudança climática, compreendida como a maior ameaça global. Indicou um czar para a área, o ex-secretário de Estado John Kerry, democrata de quatro costados.

Durante a campanha eleitoral, Biden entrou em choque com Bolsonaro, um devoto do trumpismo com fortes tintas de negacionismo quando o assunto é o desmatamento das florestas brasileiras. Em um debate com Trump, Biden sugeriu que o Brasil poderia sofrer economicamente se continuasse a destruir suas matas, e Bolsonaro o acusou de interferência externa. Houve lances burlescos, como a “live” na internet na qual Bolsonaro disse para o chanceler Ernesto Araújo que, finda a diplomacia com os EUA, seria hora de usar “a pólvora”.

Noves fora o fato de que o gasto militar brasileiro, US$ 22,1 bilhões segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (Londres) aferiu em 2020, cobririam apenas 11 dias do dispêndio americano com defesa, a própria ideia de confronto foi objeto de chacota.

O histórico de azedume mútuo também incluiu a compra, por parte do presidente brasileiro e de seus apoiadores, da ideia de Trump de que a eleição fora roubada do republicano em novembro passado. Não que Biden estivesse preocupado, mas simbolicamente Bolsonaro só o cumprimentou pela vitória no dia em que tomou posse. Nenhuma palavra tampouco foi dada condenando a sedição promovida por Trump, que estimulou seus apoiadores a invadirem o Capitólio no dia da confirmação da vitória do oponente, em 6 de janeiro.
Isso tudo desenhava um quadro de dificuldades para o Brasil, mas Biden tem fama de pragmático. Ele operou, do lado americano e na condição de vice de Barack Obama, a reaproximação dos EUA com o governo de Dilma Rousseff (PT) após o episódio em que mandatária brasileira foi espionada pela Agência de Segurança Nacional.
Assim, no dia 17 de fevereiro, Kerry teve sua primeira conversa virtual com dois expoentes do bolsonarismo mais ideológico, os ministros Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente). Pouco transpareceu do encontro, mas os relatos disponíveis dão conta de uma abertura de canal – bastante coisa, dada a expectativa e a história pregressa.

O Brasil, afinal de contas, exerce alguma atratividade para os EUA, nem que seja como anteparo à penetração chinesa na América Latina. E aí o jogo é favorável a Pequim, apesar de toda a animosidade provocada por Bolsonaro e pelos seus, ao menos até perceberem que vacinas contra Covid-19 são centrais para a saída da crise atual e que elas são feitas a partir de insumos chineses.

Em 2001, a China respondia por 2,8% das transações comerciais brasileiras. Em 2020, liderou o ranking com 27,6%. Na mão inversa, os EUA viram sua fatia cair de 23,8% para 12,4% no mesmo período.
Mesmo a pressão norte-americana para que a China ficasse fora do fornecimento de infraestrutura para as futuras redes de tecnologia 5G no Brasil, que frutificou sob os auspícios da “relação especial” entre Trump e Bolsonaro, agora parece cair no vazio. De todo modo, isso é apenas um aspecto lateral do item mais importante, para Biden e para o mundo, de sua agenda externa: a relação com os chineses.

Guerra do Peloponeso
A agressividade de Trump ante o regime capitaneado de forma cada vez mais autocrática por Xi Jinping foi notória. Não houve campo das relações internacionais em que Washington não buscou antagonizar-se a Pequim, o que obedecia a uma lógica: a ditadura comunista chinesa é percebida como uma Atenas do século 21, desafiando o poder constituído da Esparta encarnada na América. Como no século 5º antes de Cristo, contudo, há modos diversos de lidar com a realidade. Por sorte, não se desceu ainda a uma nova Guerra do Peloponeso no mar do Sul da China, apesar dos esforços razoáveis de ambos os lados em permitir um acidente que levasse a isso.

A Guerra Fria 2.0 preconizada por Trump abarcava aspectos comerciais, como a guerra tarifária que até aqui não deu frutos apesar das promessas de trégua, a questão tecnológica do já citado 5G, e questões de princípio como a autonomia reprimida de Hong Kong. Mas também envolvia uma dimensão militar, com o aumento crescente da disputa sobre o supracitado trecho do Pacífico Ocidental e no estreito de Taiwan.

Trump chegou muito perto de atravessar o que os chineses consideram a linha vermelha com Taipé, enviando diversas altas autoridades para negociar com o governo da ilha que Pequim vê como uma província rebelde pronta para ser retomada.

Nada indica que Biden irá fazer mais do que moderar o linguajar com o que chamou de “seu mais sério competidor”. Em 10 de fevereiro, ele passou duas horas ao telefone com Xi e divulgou ter abordado pontos de divergência em práticas econômicas, na questão de Hong Kong e acerca da repressão chinesa contra a minoria muçulmana do leste do país.

Trump havia deixado o último item como uma bomba na mesa que passou à Biden, pois antes de deixar o cargo acusou formalmente a China de genocídio dos uigures.

O democrata não mudou de opinião. E enviou logo depois de assumir, em 20 de janeiro, dois grupos de porta-aviões, a maior expressão da inigualável capacidade de projeção de poder dos EUA, para treinar no mar do sul da China em fevereiro. Pequim, que considera 85% daquelas águas vitais para suas rotas comerciais como território seu, reagiu com um mês inteiro de exercícios aeronavais na região.
Fiel à política de morde-e-assopra adotada com Putin, no dia em que ligou para Xi, o presidente americano criou uma força-tarefa no Pentágono que terá de apresentar, em quatro meses, uma avaliação sobre os reais riscos militares envolvendo a China e os interesses americanos.
Biden também ordenou mobilizações ostensivas em regiões de atrito com a Rússia de Putin, país que não é um rival econômico, mas que mantém o único arsenal nuclear comparável ao dos americanos no mundo.
Especialistas temem que, em algum momento, forças das três nações acabem se esbarrando no Pacífico, no Báltico ou no mar Negro. Não é irrealismo: em novembro, um navio de guerra russo quase abalroou um outro norte-americano perto de Vladivostok.
Tudo isso, é bom ressalvar, faz parte de uma apresentação aos adversários. Inícios de presidências são momentos em que os novos ocupantes da Casa Branca passam por testes de estresse por parte de rivais.


Cadeias produtivas
Não será estranho se nos próximos meses o ditador Kim Jong-un fizer alguma demonstração de poderio militar da Coreia do Norte, país que está num certo limbo desde que as negociações de paz com Trump para tentar normalizar o status quo com sua vizinha ao sul estagnaram-se.
Biden também montou uma comissão para apresentar um plano de revisão das cadeias produtivas do país, em especial as de semicondutores. A indústria automobilística americana está sob forte pressão pela falta mundial de chips, uma decorrência da pandemia. Além disso, eles são majoritariamente produzidos em Taiwan, na mira fácil de mísseis chineses, e equipam os sofisticados sistemas militares americanos.
Outro campo em que os primeiros momentos da presidência de Biden chamaram a atenção foi o sempre atribulado Oriente Médio.

Aqui o desafio é interessante, dado que o novo balanço de poder na região seja talvez o único feito concreto da gestão Trump, que não foi unicamente destrutivo no campo externo.
Naturalmente, avaliar isso como positivo ou negativo depende do prisma pelo qual se olha: a série de acordos de paz entre Israel e países árabes ocorre às expensas de atores mais fracos, como os palestinos ou os habitantes do Saara Ocidental.

Mas é inescapável que a aliança embrionária montada entre o Estado judeu e Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos muda o jogo no Oriente Médio e Norte da África. O alvo óbvio é o Irã, o regime dos aiatolás xiitas que rivaliza com a Arábia Saudita, centro do ramo majoritário do Islã, o sunismo, o papel de maior influência na região.

A partir das revoltas colocadas sob o guarda-chuva da dita Primavera Árabe, no começo dos anos 2010, o status quo na região foi abalado em favor de Teerã. O país persa, que tem na disputa com os EUA uma “raison d’être”, acelerou tanto seu programa nuclear quanto o de mísseis balísticos. Isso é inaceitável para Israel, ciente do desejo iraniano de obliterá-lo. Assim, uma antes improvável aliança se desenhou com Riad e Tel Aviv como polos, sob as bênçãos da Casa Branca de Trump. Nunca um presidente americano fora tão pró-Israel, e o novo desenho colocado antecipa uma normalização de relações entre israelenses e sauditas, cristalizando uma frente militar poderosa contra Teerã.

Só que Biden sempre foi um crítico da Arábia Saudita, em especial com a ascensão do príncipe herdeiro Mohammad bin Salman. O democrata então decidiu estabelecer riscas na areia: decretou o fim do apoio americano à guerra contra rebeldes xiitas no Iêmen, promovida por Riad, e fez divulgar um polêmico relatório do serviço de inteligência americano que responsabiliza o príncipe pela brutal morte de um jornalista dissidente.

Tal movimento tem seu preço: o oportunista Putin já aproveitou para reforçar sua oferta de venda de armas sofisticadas russas para a Arábia Saudita, como já fizera com sucesso na Turquia – gerando grande crise entre aquele membro da Otan e os EUA.

A relação com o Irã segue como ponto contencioso. Em janeiro de 2019, quase houve uma guerra com os EUA devido ao assassinato do principal general iraniano por ordem de Trump. Antes, em 2018, o presidente havia retirado seu país do acordo nuclear costurado por Obama, o ex-chefe de Biden, para evitar que o Irã tivesse a bomba.

De fato, o arranjo apenas adiava a questão, tanto que bastou os EUA saírem dele para o regime em Teerã acelerar a produção de material físsil, que pode ser enriquecido até grau de uso militar. Na campanha, o hoje presidente disse que gostaria de retomar as conversas, mas enquanto as sanções econômicas instaladas por Trump estiverem em vigor, o caminho estará bloqueado.

Como se vê, o cardápio de temas sensíveis apresentado a Biden é extenso. Assim que estiver ultrapassada a fase de dizer que tudo está diferente agora, o limite de seu comprometimento será colocado à prova.

Sempre é bom lembrar que, fora os freios e contrapesos típicos da democracia americana, o poder presidencial no país é circunscrito também por eventos exógenos. A Guerra da Coreia (1950), a Baía dos Porcos (1961) e o 11 de Setembro (2001) definiram presidências que nem sonhavam em lidar com tais problemas em sua largada. A própria imprevisibilidade da pandemia lança uma nota cautelar disso a Biden – e, por extensão, a todos os países.

Igor Gielow é repórter especial da Folha de S.Paulo. No jornal desde 1992, foi correspondente internacional com passagens por Líbano, Argélia, Israel, Iraque, Paquistão e Afeganistão. Exerceu funções de editor, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasília; é autor do romance Ariana, publicado pela Record em 2015.

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