09 outubro 2024

Big Techs e o futuro da informação – o que realmente está em jogo?

As grandes empresas de tecnologia, as chamadas Big Techs, vêm promovendo revoluções em vários campos. Google, Apple, Meta (Facebook), Amazon e Microsoft são algumas das empresas que dominam o mercado global e transformaram, de maneira definitiva, os padrões de consumo, comunicação, as práticas de trabalho e de acesso à informação, entre muitas outras.

Ao mesmo tempo, ao gerar um volume de riqueza e poder sem precedentes, as Big Techs demandam um olhar mais atento para questões ligadas à ética, práticas de mercado, impactos sociais e econômicos e segurança de dados.

Do ponto de vista político, seu protagonismo em relação a vários temas da agenda pública dos países é cada vez mais evidente, deixando claro que se trata de um contexto em que há um grande desequilíbrio entre interesses privados e públicos.

Muito além dos conceitos de inovação e desenvolvimento, o debate sobre tecnologia, hoje, envolve temas como desinformação, questões de saúde mental, privacidade, sustentabilidade dos meios de comunicação, interferência em processos políticos, entre outros.

Para uma economia emergente como a brasileira, a tecnologia também traz questões fundamentais relacionadas ao desenvolvimento do país e sua capacidade de inovação. Temos um mercado digital em expansão e mesmo com desigualdades importantes de acesso, uma população cada vez mais conectada.

A tendência ao monopólio tem sido apontada como um dos principais problemas relacionados a essas empresas de tecnologia. A concentração deste mercado permite que as maiores exerçam um controle desproporcional sobre a indústria, com o risco de sufocar a concorrência e limitar a inovação. Pequenas empresas enfrentam dificuldades para competir, tornando o mercado da tecnologia menos dinâmico e diverso.

Atualmente, por exemplo, o Google enfrenta uma ação antitruste movida pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O governo norte-americano argumenta que o “Google domina o mercado de publicidade digital e alavancou seu poder de mercado para sufocar a inovação e a concorrência”. A Alphabet, empresa mãe do Google, faturou mais de US$ 200 bilhões em 2023 com a venda de anúncios exibidos para usuários da Internet.

Essa não é a primeira ação enfrentada pela empresa. Em todas elas, o caráter de dominância de mercado, que aparece tanto na publicidade quanto na busca, é a principal motivação.

Regulação mundo afora

Em paralelo às ações judiciais, vemos também uma onda de tentativas de regulação ao redor do mundo. Em muitos países onde esse debate acontece, a compensação dos produtores de conteúdo ganhou centralidade.

Países como Austrália e Canadá aprovaram legislações relacionadas ao tema.

O News Media Bargaining Code da Austrália aposta na ideia de que para compensar as disparidades entre os publishers de notícias e as plataformas digitais é preciso haver uma remuneração justa do conteúdo jornalístico que é veiculado pelas plataformas. Para tanto, as organizações de mídia devem ter condições para negociar efetivamente e coletivamente com as plataformas, apoiadas por um processo de arbitragem caso um acordo não seja encontrado.

No caso do Canadá, o Online news act teve como objetivo ajudar as organizações de mídia a alcançar acordos comerciais justos com as maiores plataformas on-line. Também nesse caso foi adotado um princípio da remuneração justa. A legislação buscou garantir que as plataformas de mídia social paguem por conteúdo de notícias e outros tipos de material gerado por criadores. Além disso, buscaram também proteger os direitos dos criadores, garantindo que tenham controle sobre como seu conteúdo é utilizado e monetizado.

A aprovação desse tipo de legislação em geral é resultado de processos que envolveram longas negociações e mostraram o poder das plataformas para resistir à regulação e a sua disposição para retaliação[1]. Essas iniciativas refletem uma tendência global pela busca de uma melhor compensação financeira e proteção para criadores de conteúdo em um ambiente digital, que faz uso desses conteúdos para gerar sua própria receita.

No Brasil, diversos projetos de lei estão sendo discutidos com o objetivo de regular as Big Techs.

O Projeto de Lei (PL) 2630/2020, a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, apelidado de “PL das Fake News”, tinha entre seus principais temas o combate à disseminação de desinformação nas redes sociais e nos serviços de mensagens. Estabelecia obrigações para plataformas digitais em relação à moderação de conteúdo, incluindo a rastreabilidade. O PL tratava também da remuneração dos produtores de conteúdo: “os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores produzidos em quaisquer formatos, que inclua texto, vídeo, áudio ou imagem, ensejarão remuneração às empresas jornalísticas”.

O projeto quase foi votado em algumas oportunidades e em 2023 acabou saindo do horizonte do Congresso, em grande parte resultado do lobby das plataformas que reuniu, entre outras coisas, pressão em grupos específicos no Congresso e anúncio contra o PL no próprio buscador, no caso do Google. 

Atualmente, se discute o PL 2.338/2024, em tramitação no Senado brasileiro. O projeto busca estabelecer um marco regulatório para a inteligência artificial no país. Entre os principais pontos estão parâmetros éticos para desenvolvimento de tecnologias de IA, como a transparência, a não discriminação e o respeito à privacidade; critérios para estabelecer responsabilização por danos ou prejuízos causados por essas tecnologias; avaliações de risco sobre segurança e confiabilidade dos sistemas de IA; proteção de dados, alinhado à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD); fomento à pesquisa e inovação tecnológica no Brasil.

O PL também aborda o tema dos direitos autorais e da produção de conteúdos protegidos, considerando, entre outras coisas, o jornalismo. Por que a regulação nesse caso é ainda mais relevante?

Remodelação da indústria da mídia

A IA generativa e os LLMs (large language models) são um marco da tecnologia e irão remodelar a indústria de mídia. A IA, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma grande oportunidade, também pode impactar de maneira ainda mais aguda uma indústria que há tempos enfrenta uma crise profunda. Em qualquer um dos casos, podemos assumir que no futuro próximo veremos uma mudança drástica em relação à produção, distribuição e acesso a notícias.

Em todo o mundo, empresas e organizações de mídia enfrentam múltiplos desafios e frentes diversas: modelos de negócios antigos, mudanças no comportamento do consumidor, uma crise de confiança, contextos políticos conturbados, sua relação com a tecnologia, entre muitos outros. A consequência é um ecossistema frágil, que tem sua força e sua independência em risco.

Embora a tecnologia sempre tenha ocupado um lugar importante na formação e desenvolvimento das empresas de mídia, a relação atual entre as grandes plataformas tecnológicas e o ecossistema jornalístico é caracterizada por uma dependência estrutural e está se tornando cada vez mais um tema de preocupação.

A relação entre as grandes plataformas tecnológicas e o ecossistema jornalístico tornou-se não só complexa, mas também definida por uma grande assimetria de poder. De um lado, estão algumas das empresas mais poderosas do mundo e, do outro, uma indústria que luta para sobreviver, perdeu relevância econômica e capacidade de inovação. Os modelos de distribuição, crescimento e receitas tradicionais, baseados, sobretudo, na publicidade, já não funcionam mais. Para além de casos específicos de sucesso, o jornalismo ao redor do mundo enfrenta uma grande crise de sustentabilidade.

Esta assimetria é ainda mais proeminente nos mercados do Sul global; que, apesar de serem mercados extremamente relevantes para as plataformas, não figuram com protagonismo na agenda dos diálogos e das negociações que moldam esta relação entre Big Techs e ecossistema de notícias. 

O mercado de mídia brasileiro pode ser descrito como tradicional e concentrado. Poucos veículos concentram a maior parte da audiência de quem consome notícia. Tal configuração traz consequências evidentes para o debate público do país. Nos últimos 15 anos, diversas organizações e empresas de mídia exclusivamente digitais foram criadas, começando a transformar esse cenário. No entanto, a competitividade e a sustentabilidade ainda são desafios relevantes para a maioria desses meios digitais. A tecnologia e as plataformas digitais desempenharam um papel importante nesta diversificação de mercado. No entanto, nos últimos anos, as grandes empresas tecnológicas se tornaram uma ameaça à existência de organizações de notícias e à pluralidade do ecossistema de notícias digitais. As Big Techs estabeleceram regras e padrões pouco transparentes que, hoje, definem como o conteúdo jornalístico é distribuído, remunerado e moderado. Como resultado, tornaram-se os grandes mediadores da relação entre veículos e sua audiência e, consequentemente, fundamentais para a vida de uma organização de notícias, grande ou pequena. 

Programas de remuneração de publishers como o Facebook Journalism Project e o Google News Showcase são exemplos contundentes nesse sentido. Ambos consistem na transferência de recursos financeiros para meios de comunicação selecionados na forma de ‘licenciamento’ ou ‘apoio’. Não há, contudo, transparência em relação aos critérios de seleção dos participantes ou sobre os valores dos recursos concedidos. Como resultado, temos atores privados (as plataformas) e interesses privados definindo a forma como o mercado de informação é moldado.

Tecnologia é parte intrínseca ao jornalismo

A inteligência artificial apresenta os mesmos dilemas de forma ainda mais aguda. Afinal, o que alimenta os modelos de inteligência artificial? Existe um consenso hoje de que o conteúdo jornalístico vem fornecendo material de alta qualidade e em grande volume para treinar e manter os modelos informados e capazes de oferecer respostas satisfatórias. Novamente, os publishers assistem ao uso de seu conteúdo pelas plataformas de tecnologia sem a proteção e a remuneração adequadas. Atualmente, há um número de acordos de licenciamento de conteúdos sendo assinados entre empresas e IA e empresas de mídia. Ao mesmo tempo, importantes agências de notícias estão processando empresas de IA por uso supostamente não autorizado do seu conteúdo.  Em geral, os acordos são estabelecidos com veículos grandes. Também são os veículos grandes que têm a capacidade de enfrentar as plataformas judicialmente.

Temos a oportunidade de utilizar as lições aprendidas até agora e estabelecer um curso diferente de comunicação entre os meios de comunicação e as plataformas, os esforços de regulação e o processo de elaboração de políticas.

A integração da IA com mecanismos de busca mudará a forma como o público se envolve com as notícias. Há um risco concreto de que os veículos observem uma perda drástica de audiência e, portanto, de receita. Neste contexto, surgem algumas questões: como os veículos serão compensados ​​pela utilização do seu conteúdo pelos LLMs? Caso os veículos decidam bloquear o acesso aos seus conteúdos, haverá retaliação que impactará a sua competitividade e valor de mercado? A rastreabilidade do uso de conteúdo protegido por direitos autorais pode ser implementada e aplicada? Podem as organizações de comunicação social desenvolver os seus próprios critérios de licenciamento e remuneração?

Essas respostas e alternativas ainda precisam ser desenvolvidas. A experiência tem demonstrado, no entanto, que ser ativo no desenvolvimento e na defesa de soluções que respondam e fortaleçam o jornalismo independente e de interesse público não está igualmente disponível para todos os atores desse ecossistema nem para todos os mercados.

Assim, se nada for feito do ponto de vista da regulação e da política pública para remodelar a relação entre as empresas e organizações de mídia e as plataformas de tecnologia, dentro de muito pouco tempo corremos o risco de ter um cenário onde os mercados de comunicação estarão ainda mais concentrados e ainda mais, se não inteiramente, dependentes de grandes plataformas tecnológicas.

A IA também traz um novo cenário em relação à regulação. A regulamentação das grandes tecnologias provou ser um grande desafio para os governos em todo o mundo por vários motivos. O lobby intenso das plataformas, as disputas envolvendo as diferentes indústrias, o uso instrumental de contextos políticos como escudos (a consolidação da narrativa de que qualquer forma de regulação é igual à censura e se opõe a uma Internet livre, por exemplo) são alguns deles. No caso da IA, o desafio é ainda maior, especialmente nos mercados emergentes. Ao discutirem a regulamentação da IA, os governos querem garantir que seus países serão um centro de tecnologia e inovação e preservarão a competitividade. O equilíbrio entre regulamentação e abertura à inovação cria atritos e pode resultar numa legislação mais branda. 

A tecnologia é uma parte intrínseca ao jornalismo. Mas, não define o que é jornalismo. Os publishers têm o direito de proteger o seu conteúdo e o direito de escolher como irão interagir com as novas tecnologias sem serem retaliados. Tais direitos precisam ser garantidos a veículos grandes, pequenos, locais, nacionais. Só assim teremos um ecossistema de mídia forte, plural, sustentável e realmente independente.  


[1] Para mais informações sobre as legislações sobre regulação no mundo, ver Enabling a sustainable news environment: a framework for media finance legislation.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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