21 julho 2020

Bioeconomia e a Bolsa de Mercadorias  da Amazônia

  A noção de bioeconomia como base de políticas públicas ambientalmente corretas e inovadoras tem ganhado força nos últimos 10 anos, em especial na União Europeia e, mais recentemente, em diversos setores do governo brasileiro. A noção mais usual de bioeconomia, entretanto, muitas vezes dá margem à construção de modelos de desenvolvimento que não incorporam […]

 
A noção de bioeconomia como base de políticas públicas ambientalmente corretas e inovadoras tem ganhado força nos últimos 10 anos, em especial na União Europeia e, mais recentemente, em diversos setores do governo brasileiro. A noção mais usual de bioeconomia, entretanto, muitas vezes dá margem à construção de modelos de desenvolvimento que não incorporam inovação, ciência e tecnologia nas suas estruturas e que permitem ações não sustentáveis em termos ambientais. A Comissão Europeia define a noção de bioeconomia como um modelo de desenvolvimento que “(…) compreende as partes da economia que utilizam recursos biológicos renováveis – como culturas, florestas, peixes, animais e microrganismos – para produzir alimentos, materiais e energia”, o que não exclui produção extensiva de commodities tradicionais, pesca predatória, e industrialização insustentável, por exemplo. E mais importante, não vincula o termo ao conhecimento da natureza e à inovação necessária para a incorporação do mesmo nos modelos de desenvolvimento sustentável e socialmente justo.
No Estado do Amazonas, assim como em qualquer território de biomas com baixa intervenção humana, o significado de bioeconomia deve ser atrelado à sustentabilidade socioambiental e ao conhecimento do bioma e de seu povo. O conhecimento da sociobiogeodiversidade é elemento fundamental e estruturante da bioeconomia na região amazônica.
Na perspectiva de construção conceitual adequada de bioeconomia na Amazônia, criou-se no governo estadual do Amazonas a narrativa do Biópolis Amazonas.
Entende-se que, no momento político atual, é de extrema relevância a construção de uma narrativa de desenvolvimento sustentável de consenso, com um conceito que embase modelos de desenvolvimento sustentável. Na narrativa estabelecida pelo Biópolis Amazonas, considera-se o conhecimento da natureza como fundamento do desenvolvimento econômico sustentável e entende-se que é necessário ir além do que se conhece hoje ou dos mercados existentes. Vislumbra-se, com esta narrativa, um escopo no qual a incógnita das possibilidades existentes no bioma ainda pode transformar produtos, processos e ações humanas e, por isso, deve ser deixado um espaço em aberto para novas descobertas e inovações.
No estado do Amazonas, o primeiro desafio para se concretizar esta narrativa em construção colaborativa com diversos setores do governo e da sociedade civil é compreender que o bioma amazônico conservado é uma vantagem comparativa e que junto a ele tem-se cinco décadas de modelo de desenvolvimento regional da Zona Franca de Manaus que instituiu o Polo Industrial de Manaus (PIM) como vantagem competitiva. Entende-se que o desafio é de transformar o lastro ambiental em ativos econômicos e financeiros e em política industrial, que promova o desenvolvimento sustentável e responsável, conservando a sociobiogeodiversidade.
Entende-se a sociobiogeodiversidade como uma característica importante na construção de um modelo de desenvolvimento econômico e regional sustentável, pois a equidade na distribuição de riqueza e a conservação do bioma em suas diferentes geograficidades são fundamentais no entendimento dos potenciais que a bioeconomia na Amazônia permite. Além disso, a diversidade geográfica implica diferenciações de produtos, processos e arranjos produtivos. A extensão territorial e sua sociobiogeodiversidade são elementos-chave na narrativa.
A proposta de construção da Bolsa de Mercadorias da Amazônia (BMA) é uma das iniciativas do Estado que faz parte do Programa Biópolis Amazonas. Entende-se que o desenvolvimento econômico, que tem na inovação em bioeconomia sua matriz, implica transformar as formas tradicionais de mercados de produtos da sociobiodiversidade.
Bolsas de Mercadorias da Amazônia – um instrumento financeiro de desenvolvimento sustentável
Historicamente, a bolsa de mercadoria é a base para o desenvolvimento de outros tipos de bolsas, como a de valores e futuros. A comercialização de produtos destinados à alimentação em mercados públicos não é considerada novidade, e acontece desde o século XV. Porém, para entendermos o que a Bolsa de Mercadorias da Amazônia (BMA) representaria, é interessante pensar em bolsas de mercadorias não como “feiras” expandidas, e sim como uma bolsa de valores na qual todas as ações negociadas são produtos físicos. O motivo dessa abordagem constitui os dois pilares mais importantes da BMA: 1) a formação de preços de forma transparente com ampla disseminação, e 2) preços baseados exclusivamente na qualidade do produto e logística, o que não acontece em feiras ou balcão de mercados.
Bolsas de mercadorias, por comercializarem itens físicos, são compostas por uma rede de armazenamento, em que a produção deverá ser entregue e classificada em grades. Essa classificação é crucial para a formação de um preço justo, uma vez que torna as especificações físicas do produto como único fator determinante em sua valorização, independentemente das conexões pessoais-comerciais entre os atores, acesso à informação ou até mesmo escolarização dos produtores rurais/extrativistas.
Na África, bolsas de mercadorias como instrumento financeiro para o desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza estão operacionais desde 2008. O exemplo mais emblemático é o da Bolsa de Mercadorias da Etiópia (ECX). Idealizada e implementada pela economista etíope Eleni Gabre-Madhin, sua inspiração nasceu da ambição em solucionar a incoerência de a Etiópia ser um país com vasta produção de alimentos, mas com ondas esporádicas de fome profundas, matando milhões. Em apenas cinco anos, a ECX comercializou um total de US$ 5 bilhões, com zero inadimplência. Nesse período, dobrou a participação dos agricultores no preço final do café exportado, de 35% para 70%, tirando milhares da pobreza e estabelecendo o país como fornecedor confiável e de qualidade.
Apesar de implementado em países e biomas extremamente diferentes, o caso da ECX serve de inspiração, pois solucionou algumas problemáticas que estão presentes na comercialização de produtos do bioma amazônico, como a baixa participação do produtor/extrativista no preço final do seu produto, devido ao grande número de atravessadores, e a falta de acesso às informações de mercado, por limitações culturais, financeiras e tecnológicas.
Um mercado justo e sustentável para produtos da sociobiogeodiversidade amazônica
 Conceitualmente, a BMA funcionaria como um mercado onde vendedores e compradores se reúnem para negociar os produtos do bioma amazônico, com garantia de qualidade, entrega e pagamento. Isso seria garantido por meio de instrumentos como contratos padronizados, unidades de recebimento e armazenamento de produtos estrategicamente posicionados, além da disseminação em massa dos preços em tempo real.
A BMA é um instrumento financeiro para fins socioambientais com o potencial de operacionalizar a bioeconomia amazônica, fomentar o desenvolvimento sustentável e justo e erradicar a pobreza entre as populações produtoras e extrativistas do bioma amazônico. É um projeto audacioso e inovador para a Amazônia. O sucesso comprovado em outras regiões do planeta, que também tinham estruturas de mercado desiguais e concentradores de riqueza, permite vislumbrar um futuro possível.

A conservação do bioma Amazônico é tema recorrente em debates acerca do meio ambiente e da economia regional e global. Acredita-se no enorme potencial da bioeconomia no Amazonas. Porém, os gargalos e ineficácias dos projetos e iniciativas, que já foram implementados no estado para desenvolver as cadeias produtivas, são latentes. Empoderar os extrativistas/produtores e trazer segurança de fornecimento às indústrias que desejam agregar valor à sociobiodiversidade amazônica continua sendo um enorme desafio.
A distribuição injusta de renda aos extrativistas e produtores e sua dependência financeira dos intermediários e atravessadores, os históricos aviadores, fazem parte das relações comerciais locais há décadas e constituem um dos paradigmas mais difíceis de serem quebrados. Não só porque os sistemas formalizados não foram implementados de maneira inteligente e/ou eficiente, mas porque muitas abordagens consideraram os atravessadores como “vilões”, enquanto para o extrativista ele é o patrão, o solucionador de um problema grave de logística que o estado até hoje não conseguiu resolver. As relações sociais estabelecidas no aviamento persistem: são relações desiguais, concentram renda e riqueza e estabelecem relações socioeconômicas pautadas na violência.
Os elos tradicionais estabelecidos pelas cadeias comerciais de produtos da sociobiogeodiversidade precisam ser rompidos, e entende-se que a BMA, com uma formação de preço impessoal, pautada na informação e na qualidade do produto, é um elemento-chave no processo de modernização e constituição do mercado de produtos da floresta. Não basta um desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável, é necessário equidade e justiça social em todos os elos. A informação é elemento-chave neste processo, e a BMA tem o potencial de organizar, dar transparência e disseminar a informação.
O caso da Bolsa de Mercadorias do Amazonas
 Conceitualmente, instrumentos financeiros organizados, como bolsas de mercadorias, possuem o principal objetivo de aumentar o volume de transações comerciais, o que, consequentemente, estimula a produção e a demanda por produtos negociados. Bolsas regulamentadas também trazem transparência ao mercado e coíbem práticas mercantis ilegais, como conluio, fraude e manipulações que criem condições artificiais de demanda, oferta ou preço. Ao trazer estes elementos, modifica as formas de relações estabelecidas e cria uma outra perspectiva de como a negociação deve ser estruturada.
Nesta perspectiva, a proposta em construção da BMA está ancorada em quatro eixos estruturantes:
1. Disseminação de informações de mercado (TI):
A utilização de bolsas de mercadorias como instrumentos financeiros de transformação socioambiental somente é efetiva se encadear profundas mudanças culturais na maneira de se comercializar os produtos da sociobiogeodiversidade. Para isso, o acesso à informação de mercado, aos preços, é comprovadamente a melhor maneira de quebrar o status quo. Uma vez que os extrativistas e os produtores têm conhecimento do valor da sua mercadoria, recebendo essa informação em tempo real, sua conduta diante das negociações se modificará e o estimulará a continuar produzindo com foco na qualidade.
Tecnologias de informações têm um papel fundamental em materializar esse eixo. A conectividade e o acesso aos dispositivos eletrônicos ainda são um grande gargalo no interior da Amazônia. Esta fragilidade pode prejudicar a disseminação de preços em tempo real. Na realidade, o eixo TI é transversal aos outros, pois viabiliza processos como o software de negociação on-line, a liquidação de contratos em cada unidade de armazenamento, o pagamento bancário ao produtor, os sistemas de rastreamento de produtos e seus indicadores de sustentabilidade, assim como a construção de um banco de dados transparente e consultável com todas essas informações. Formas inovadoras de usos diversos da tecnologia da informação são fundamentais para que se chegue ao desenvolvimento sustentável.
2. Armazenagem e Padronização de Qualidade:
Se alegoricamente designarmos o eixo de TI como o cérebro da BMA, esse eixo certamente seria o equivalente aos ossos e ao sistema circulatório da Bolsa. Sem estruturas físicas de armazenamento posicionadas estrategicamente para receber, classificar e escoar a produção extrativista de forma inteligente, esse projeto não poderá seguir adiante com êxito. Esse eixo também é responsável por determinar a classificação dos produtos do bioma amazônico de forma padronizada, respeitando sua diversidade geográfica, como já acontece há anos com commodities tradicionais. Alguns produtos, como açaí, castanha, guaraná, cacau, entre outros, já possuem algum tipo de padronização estabelecida, porém, padrões relacionados aos princípios bioativos e outras inovações são necessários. A incorporação do conhecimento da natureza no reconhecimento dos produtos da sociobiogeodiversidade é fundamental para a estruturação da BMA.
O reconhecimento da especificidade e da qualidade do produto é uma das maneiras de se assegurar preço justo para todos os extrativistas e produtores que escolham comercializar sua produção por meio da BMA.
3. Instrumentos Financeiros e Contratos Padronizados:
Parcerias com instituições bancárias operacionalmente digitais são essenciais para assegurar o pagamento ao produtor com segurança e destreza. A insegurança gerada por contratos com longos prazos de execução e demora nos pagamentos aos produtores traz incertezas e desestimula extrativistas e produtores a utilizar sistemas formalizados. É neste aspecto que o aviamento como elemento estruturante das relações de mercado persiste na Amazônia, pois o pagamento, na grande parte das vezes, abaixo do preço de mercado, é feito à vista. A garantia do pagamento no dia seguinte à venda foi um dos aspectos mais importantes para o sucesso da Bolsa da Etiópia. Entende-se que este é um aspecto fundamental na estruturação da BMA, um sistema de pagamento transparente, sólido e sem atrasos
4. Rastreabilidade e Sustentabilidade:
Diferentemente das outras bolsas de mercadorias nacionais e internacionais, que lidam majoritariamente com commodities tradicionais, considera-se que a implementação de um instrumento financeiro exclusivo para a comercialização de produtos da sociobiogeodiversidade amazônica deve ter como base um sistema de rastreabilidade e indicadores de sustentabilidade socioambiental. Esse eixo é parte essencial da estruturação da BMA e está em linha não somente com as demandas do mercado, mas também da sociedade e de diversas instituições locais, tanto governamentais como do terceiro setor, que acreditam na bioeconomia amazônica como o caminho para um futuro sustentável para a região. Esse é o eixo com o maior número de iniciativas em andamento pelo terceiro setor, em parceria com o setor privado. Diversos aplicativos já foram desenvolvidos na área de rastreabilidade das cadeias produtivas e de aspectos de sustentabilidade.
Estes quatro eixos permitem a construção teórica da BMA. Entende-se que o desafio que está posto quando se constrói argumentos relativos à efetividade da bioeconomia como matriz econômica para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, perpassando por elaborações de estruturas de mercado transparentes e justas. Neste sentido, deve-se partir de uma narrativa de consenso sobre o desenvolvimento sustentável, tal qual o Biópolis Amazonas propõe, e estruturar ações concretas para viabilizar a bioeconomia amazônica como estrutura de mercado, o que permite incorporar crescimento econômico, desenvolvimento regional, sustentabilidade ambiental e justiça social, papel que a Bolsa de Mercadorias da Amazônia tem a intenção de executar.

NATALIA FERREIRA DE FREITAS - mestre em Gestão Ambiental Corporativa pela Universidade de Jyvaskyla, Finlândia; chefe do Departamento de Política e Inovação Industrial da Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Amazonas. TATIANA SCHOR - professora no Departamento de Geografia, na UFAM; Pesquisadora Produtividade do CNPq; secretária-executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Amazonas.

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