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Interesse Nacional
05 abril 2024

Brasil apoiará a criação do tribunal internacional anticorrupção?

Leopoldo Pagotto, mestre e doutor em direito econômico-financeiro pela USP, é membro do Advisory Committee para redação do acordo sobre a corte internacional anticorrupção da Integrity Initiatives International, e consultor externo da FGV Ethics. Sócio do Freitas Leite Advogados

Conversações sobre a criação do tribunal internacional anticorrupção (TIA) têm sido gestadas e, em 2025, adquirirão maior materialidade. Neste contexto, o Brasil deve começar a ponderar sobre sua adesão à iniciativa. Ainda é desconhecido o conteúdo da proposta do TIA, mas, mesmo assim, politicamente, é possível tecer considerações sobre as vantagens para a política externa brasileira endossar a proposta. Este artigo se propõe a analisar as vantagens para o Brasil de sua adesão à ideia do TIA, dividindo-se em cinco partes:

A origem da ideia do TIA;
Os contornos do TIA;
Do unilateralismo ao multilateralismo;
O Brasil no multilateralismo anticorrupção; e
Como o Brasil deve se portar frente ao TIA.

A origem da ideia do TIA

A ideia de criação do TIA surgiu despretensiosamente. Apresentada em 2014 pelo juiz norte-americano Mark Wolf no artigo ‘The Case for an international anti-corruption court’, a proposta justificou-se na necessidade de: garantir o enforcement das leis criminais que proíbem a grande corrupção; e corroer a cultura generalizada de impunidade dos crimes de corrupção. Para Wolf, a inadequação e a ineficácia dos esforços nacionais e internacionais para combater a grande corrupção demonstram a necessidade de uma nova abordagem pela comunidade internacional. A proposta de Wolf gradativamente ganhou o apoio de várias entidades e personalidades relacionadas ao combate à corrupção, dentre os quais o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a Transparency International, a Human Rights Watch e importantes líderes mundiais. Wolf também apresentou a ideia no St. Petersburg International Legal Forum em 2012 e, em 2014, debateu o assunto no World Forum on Governance. Em 2016, Wolf se une ao juiz sul-africano Richard Goldstone e a outras personalidades preocupadas com o tema para criar a ‘Integrity Initiatives International’ (III). Desde então, o III propugna a criação do TIA. Conforme defendem Wolf, Goldstone e Robert Rotberg, não existe uma instituição internacional voltada para a persecução dos cleptocratas pela prática de crimes de corrupção quando os países os quais governam não querem ou não podem fazê-lo. O TIA ocuparia um papel importante no preenchimento dessa lacuna no cenário internacional, como meio adequado para a efetivação da punição dos cleptocratas e seus colaboradores, de dissuasão do comportamento de terceiros e de ‘reocupar, repatriar e reaproveitar’ os ganhos ilícitos em proveito das vítimas.

Nesse contexto, o TIA seria responsável por:

1. Propiciar um fórum para processar e punir de forma justa e eficaz os cleptocratas e toda a sua rede de facilitadores;
2. Deter a futura grande corrupção, ao estabelecer uma concreta e efetiva ameaça de persecução aos cleptocratas e seus aliados;

3. Recuperar, repatriar e/ou reaproveitar os ganhos ilícitos em proveito das vítimas por meio de ordens de restituição e de ações civis; e
4. Disponibilizar investigadores, promotores e juízes para aconselhamento e/ou assessoramento aos países pares que estão se esforçando para aprimorar as suas normas anticorrupção.

A necessidade de combate da grande corrupção vem sendo amplamente disseminada, o que colabora para acelerar o andamento da criação do TIA. Prova disso é a declaração em apoio à criação do TIA (Declaration in Support of the Creation of an International Anti-Corruption Court), publicada em junho de 2021 pelo III. Referida declaração foi assinada, desde então, por mais de 260 personalidades de mais de 75 países, incluindo 43 ex-chefes de Estado ou de Governo e 32 ganhadores do prêmio Nobel. Além dessa declaração, a Colômbia já endossou o TIA. Nas eleições do Canadá, ambos partidos apoiaram a criação do TIA e, após a formação do governo, o ministro de Relações Exteriores foi instruído a fortalecer parcerias internacionais para estabelecimento dessa corte. Na Holanda, o ministro de Relações Exteriores criou uma coalisão para estabelecer o TIA como medida de política externa. O TIA também é apoiado por muitas Ongs e por ativistas na Venezuela, Zâmbia, Líbano, Malta e Rússia, dentre outros países.

Em novembro de 2022, a Holanda, o Canadá e o Equador organizaram uma mesa redonda em Haia a fim de discutir ideias para o fortalecimento do cenário internacional anticorrupção, defendendo a criação do TIA aos representantes governamentais de 40 países ali presentes.

Os contornos do TIA

O TIA parte da premissa de que existe uma lacuna no sistema criminal internacional que precisa ser sanada. O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi concebido como resposta aos genocídios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, focando-se em punir aqueles tipos de crimes. À época, as consequências da corrupção ainda eram desconhecidas pela sociedade – basta lembrar que havia economistas que a defendiam para fomentar o crescimento econômico. Apenas a partir dos anos 2000, a corrupção passa a ser unanimemente considerada como gravosa para o desenvolvimento.

No momento, o principal desafio para o apoio à ideia do TIA consiste, precisamente, na falta de seus contornos claros. De fato, inexiste uma proposta formalmente escrita, ainda que esteja em discussão. Mesmo assim, alguns dos contornos já podem ser identificados.

Primeiro, a criação do TIA necessariamente deverá ser baseada no princípio da subsidiariedade, ou seja, pressupõe-se que ela só entraria em ação quando as autoridades nacionais forem incapazes ou relutantes de investigar e processar casos de corrupção de forma eficaz. Isto significa que os Estados membros teriam a responsabilidade primária de investigar e processar casos de corrupção em seus próprios territórios, de modo que o TIA só entraria em cena quando essa responsabilidade não fosse cumprida adequadamente.

O princípio da subsidiariedade busca equilibrar a soberania dos Estados com a necessidade de uma resposta internacional coordenada para lidar com a corrupção transnacional. Seria aplicado de forma flexível, levando-se em consideração a capacidade e a vontade das autoridades nacionais de lidar com a corrupção de forma eficaz. O TIA poderia oferecer assistência técnica e capacitação às autoridades nacionais para fortalecer suas capacidades de combate à corrupção e garantir que a intervenção internacional seja necessária apenas em casos excepcionais.

O caráter subsidiário do TIA ficaria evidente por sua atuação contra a chamada ‘Grand Corruption’, caracterizada como o abuso do poder da alta liderança estatal que beneficia poucos em detrimento da maioria, causando prejuízo sério e disseminado para a sociedade atingida. Em realidade, os estados falidos são geridos por uma cleptocracia que não enxerga a diferença entre o público e o privado, apropriando-se dos recursos que deveriam ser utilizados para a melhoria das condições de vida da sua população.

Além disso, o TIA seria composto por juízes independentes e imparciais, nomeados com base em critérios de competência, integridade e experiência jurídica. À semelhança do que já acontece com o TPI, os juízes seriam selecionados entre os Estados membros por meio de um processo transparente e participativo, garantindo uma representação equitativa de diferentes regiões e sistemas legais. Embora seu caráter deva ser precipuamente criminal, é possível imaginar que o TIA possa possuir uma câmara cível. Tais garantias são muito importantes para minimizar as críticas sobre politização da atuação do TIA.

Do unilateralismo ao multilateralismo

Pelas suas características, a corrupção é uma matéria que deveria estar restrita às fronteiras nacionais. Esse cenário começou a se modificar em 1977, quando os Estados Unidos aprovaram legislação de repressão à corrupção cometida por empresas norte-americanas no exterior, o ‘Foreign Corruption Practice Act’ (FCPA). Adotava-se a extraterritorialidade pura e simples, uma abordagem um tanto unilateral para endereçar a corrupção. Por causa disso, a corrupção apareceu como um tema de destaque nos foros internacionais nos anos 1990.

Por pressão norte-americana e pelo reconhecimento de que o FCPA era um mecanismo efetivo de combate à corrupção, legislações similares à do FCPA foram adotadas no Reino Unido, no Brasil, na Holanda, na França e na Alemanha – este processo ainda hoje se encontra em evolução.

Paralelamente, aumentou a necessidade de coordenação, de modo que atribuir as mudanças apenas aos interesses norte-americanos seria míope. A transnacionalidade da corrupção exige uma resposta coordenada internacionalmente. Para combater a criminalidade transnacional, a ONU organizou a Declaração de Nápoles, assinada por 138 países, inclusive o Brasil, em 1995.

A ideia da criação do TIA surge de um reconhecimento crescente sobre a necessidade de uma abordagem coordenada e multilateral para enfrentar a corrupção em escala global. A solução multilateral, consistente na resolução de questões globais por meio da cooperação entre os países membros das organizações internacionais, parece ser uma resposta adequada aos desafios presentes.

No contexto do multilateralismo, a criação do TPI estabeleceu um precedente importante para a possibilidade de instituir mecanismos judiciais internacionais para lidar com questões transnacionais complexas, tendo encontrado grande ceticismo durante as negociações que levaram à sua criação – mesmo assim, tem logrado atingir suas finalidades em certa medida. Embora o TPI tenha um foco distinto do TIA, sua existência demonstra a viabilidade e a importância de instituições judiciais internacionais na busca pela justiça.

Atualmente, há uma combinação de elementos unilaterais, bilaterais e multilaterais no sistema global de combate à corrupção. Decisões contraditórias são frequentes, mas, mesmo assim, os países têm avançado – vide os inúmeros casos transnacionais de corrupção, nos quais promotores e juízes de várias jurisdições chegaram a um acordo sobre a punição de transnacionais (vide caso Odebrecht, que celebrou um acordo negociado simultaneamente no Brasil, nos Estados Unidos e na Suíça). A cooperação internacional atingiu patamares jamais vistos em termos criminais e administrativos e, em certa medida, até exige que haja uma certa articulação.

Alguns poderiam argumentar que já existem ferramentas que permitem a um país processar a corrupção que acontece em outro – o FCPA é a legislação mais efetiva neste quesito, imitada por inúmeras nações (vide a britânica Bribery Act, o francês Sapin II e a brasileira Lei anticorrupção). Todavia, estas leis punem o lado da oferta da propina, ou seja, as empresas que pagam as propinas. Elas não podem alcançar o lado da demanda da propina, os cleptocratas nos estados. Logo, o TIA endereçaria esta lacuna no sistema internacional de combate à corrupção, à medida que reprimiria o lado da demanda da corrupção.

O Brasil no multilateralismo anticorrupção

O TIA criaria um foro adicional para o exercício do multilateralismo entre os Estados.

O histórico da diplomacia brasileira mostra que o multilateralismo sempre foi a estratégia usada para diluir as deficiências nacionais em temas econômicos e militares, dificultando ações unilaterais por parte das grandes potências. A política externa brasileira reflete a compreensão do Estado brasileiro de que muitos dos desafios enfrentados pela comunidade internacional, incluindo a corrupção, são de natureza global e requerem uma abordagem coletiva para serem enfrentados de forma eficaz. A preferência pelo multilateralismo explica o porquê de o país ser signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), da Convenção Antissuborno da OCDE e da Convenção Interamericana contra a Corrupção da OEA.

A posição da diplomacia brasileira sobre o combate à corrupção também possui um outro tipo de motivação. Sabidamente, o Brasil é um país atingido pela corrupção e que, por isso, o Erário nacional sofre grandes perdas. Ainda que a adesão do Brasil ao multilateralismo em matéria anticorrupção se apresente como um tema complexo e multifacetado, os interesses nacionais constituem um fator adicional de ganho concreto para as contas públicas. Proteger o patrimônio público é bastante facilitado se houver cooperação internacional eficaz.

Desta maneira, o Brasil já tem colaborado com outros Estados membros de organizações internacionais para fortalecer as instituições de combate à corrupção e promover a troca de informações e melhores práticas nessa área. Este trabalho pode fortalecer o Estado de direito e a democracia em nível global, pois esses são elementos essenciais para prevenir e combater a corrupção.

Como o Brasil deve se portar frente ao TIA

Em 2023, o presidente Lula declarou que Vladimir Putin não seria preso se viesse ao Brasil, a despeito de o TPI ter expedido um mandado de prisão por crimes de guerra. Em seguida, insistiu no tema: “Quero muito estudar essa questão deste tribunal penal, porque os Estados Unidos não são signatários dele, a Rússia não é signatária dele. Então, eu quero saber por que o Brasil é signatário de um tribunal que os EUA não aceitam. Por que somos inferiores e temos de aceitar uma coisa?”.

Esta declaração constitui uma ruptura com a tradição brasileira de privilegiar o multilateralismo, em especial os mecanismos criados como o TPI. Como o Brasil é um dos 123 signatários do Tratado de Roma que criou o TPI, é obrigado a cumprir suas ordens. Aliás, Vladimir Putin não teria viajado para a reunião dos BRICs na África do Sul pelo mesmo motivo.

Em princípio, avançar na criação de um sistema semelhante ao TPI focado no combate à corrupção não contaria com o apoio do Estado brasileiro. Todavia, esta posição é inconsistente com o histórico da diplomacia brasileira.

A posição brasileira sobre o TIA deve ser pragmática, fortalecendo as instituições nacionais, a cooperação internacional e a preservação da soberania dos Estados. Esta postura reflete não apenas o compromisso contra a corrupção, mas também uma visão equilibrada do multilateralismo e da governança global. Neste contexto, destacam-se dois argumentos que sustentam a posição brasileira, seguidos por um contraponto que examina as possíveis limitações do TIA.

Primeiro, a posição brasileira favorável à criação do TIA está alinhada com o reconhecimento da necessidade de fortalecer as instituições nacionais para combater eficazmente a corrupção, o que tem sido uma posição brasileira em foros internacionais. O TIA poderia complementar os esforços nacionais, oferecendo um mecanismo adicional para investigar, processar e punir indivíduos envolvidos em atividades corruptas que afetam mais de um país.

Segundo, apoiar o TIA também reflete o reconhecimento da importância da cooperação internacional para enfrentar desafios globais. O TIA poderia facilitar essa cooperação, oferecendo um fórum centralizado em que os países poderiam compartilhar informações, evidências e recursos para investigar e processar casos de corrupção que tenham ramificações internacionais.

A posição brasileira em relação à criação do TIA deve refletir os compromissos constitucionais de luta contra a corrupção, de cooperação internacional e de preservação da soberania dos Estados. O Brasil pode e deve desempenhar um papel de liderança nesta campanha. Desde a redemocratização, o país tem abraçado a luta contra a corrupção e a defesa dos direitos humanos como motes orientadores. A adesão a esta legítima iniciativa alinhará o Brasil com as nações defensoras da ética, dos direitos humanos e da democracia novamente.   

Referências bibliográficas


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_______; GOLDSTONE, Richard; ROTBERG, Robert I. The Progressing proposal for an international anti-corruption court. Cambridge, Mass.: American Academy of Arts and Sciences, 2022. Disponível em: <https://www.amacad.org/sites/default/files/publication/downloads/2022_international-anticorruption-court.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2024.

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WOLF, GOLDSTONE; ROTBERG. Op. cit., p. 14.


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JAPIASSÚ, C E A. A corrupção em uma perspectiva internacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 64, p. 29-56, jan./fev. 2007.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

LEOPOLDO PAGOTTO é sócio do Freitas Leite Advogados, membro do Advisory Committee para redação do acordo sobre a Corte Internacional Anticorrupção da Integrity Initiatives International, consultor externo da FGV Ethics, mestre e doutor em direito econômico-financeiro pela USP

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