16 julho 2012

Brasil e Argentina no Século 21: Protagonistas no Mundo ou Coadjuvantes de Si Mesmos?

Desde a consolidação de Brasil e Argentina como Estados nacionais independentes – a Argentina, num processo que se estende de 1810 a 1826, o Brasil, em 1822 – a relação bilateral assume referência central das inserções internacionais de cada um deles. É certo que hoje incomoda às autoridades e aos empresários brasileiros ter que lidar com a unilateralidade do protecionismo argentino.

Desde a consolidação de Brasil e Argentina como Estados nacionais independentes – a Argentina, num processo que se estende de 1810 a 1826, o Brasil, em 1822 – a relação bilateral assume referência central das inserções internacionais de cada um deles. É certo que hoje incomoda às autoridades e aos empresários brasileiros ter que lidar com a unilateralidade do protecionismo argentino. Mas, há não mais que 30 anos, a situação entre os dois países era bem mais conturbada.

Nesta segunda década do século 21, o tempo histórico da relação bilateral talvez esteja em um de seus mais promissores momentos. Há diálogo fluido entre os governos e entre autoridades em geral. Há cooperação técnica entre as esferas administrativas dos dois países. O empresariado, igualmente, desenvolveu canais estáveis de comunicação, percebe oportunidades, de cunho estrutural ou tópico, e faz aumentar o comércio e os investimentos circulando de parte a parte, apesar das investidas de terceiros países sobre nossos mercados. O turismo se expande e os intercâmbios acadêmicos, científicos, culturais, artísticos e desportivos se intensificam.

O cenário geral favorável, contudo, não permite se estender o otimismo ao plano das questões de comércio. Aqui reside o quisto do relacionamento e do Mercosul, na falta de se divisar soluções negociadas e na tolerância tática quando eclodem disputas. Pela lente da condução das políticas comerciais e dos contenciosos, a densidade do relacionamento parece estar se diluindo e um afastamento se verifica entre Brasil e Argentina. A acentuada assimetria econômica e produtiva entre os dois países faz com que o alcance das medidas intempestivas de resguardo do mercado argentino sejam cada vez mais inócuas no sentido amplo para o Brasil, embora indesejadas para setores e empresas brasileiras diretamente afetados. O Brasil tolera as atitudes da Argentina, calcado na premissa da solidariedade regional e por compreender as mazelas que se acumulam no manejo econômico argentino, além de estar imbuído da responsabilidade de manter um grau mínimo de coesão com seu principal vizinho.

Retaliar é mais custoso, por essa ótica, que aguardar a reacomodação produtiva dos setores afetados. O rearranjo acaba se dando por diversos meios, tais como a aquisição por parte de grupos brasileiros de ativos na Argentina. O dano decorrente da intempestividade das autoridades argentinas é a dilapidação da confiança dos investidores e dos dirigentes governamentais brasileiros – pouco a pouco, instaura-se a convicção de que não é possível levar tais medidas a sério. O triste corolário derivado desse comportamento é que o que já foi, de parte do Brasil, um olhar de respeito e admiração em relação aos antes abonados e cultos vizinhos do sul, hoje, resume-se a um sentimento de tolerância, devido à reduzida significância para a inserção externa do Brasil, e de comiseração.

Após quase 30 anos de relacionamentos pautados em um arcabouço normativo redigido a quatro mãos, que estabeleceu as bases da integração regional, ao mesmo tempo em que assistiu aos cruciais processos de redemocratização e estabilização macroeconômica, o Brasil, neste início de século 21, tem que aprender a lidar com uma Argentina de feição populista, pautada pelo unilateralismo, pela improvisação e pelo voluntarismo de suas autoridades e do setor empresarial alinhado. O que sustenta a relação não é mais a visão compartilhada sobre uma estratégia conjunta de inserção internacional dos anos 1980 e 1990. Impõe-se, hoje, seguir uma sequência de movimentos de acomodação gradual, ditada pela lógica da política doméstica argentina e ajustada por mecanismos de adaptação de parte do Brasil. Trata-se de um novo padrão de relacionamento, distinto do temor recíproco que vigeu dos tempos fundacionais até os anos 1970 e do integracionismo das décadas de 1980 e 1990.

Espelho, espelho meu

Ao longo dos séculos 19, 20 e neste início de século 21, Argentina e Brasil mantiveram a mirada constante um em relação ao outro para definirem e executarem suas grandes estratégias. Até os anos 1970, essa referência era baseada no potencial de conflito, ou seja, Brasil e Argentina representavam mutuamente o inimigo a ser combatido. As doutrinas de Segurança Nacional, lá e cá, brindavam ao vizinho a posição central em qualquer hipótese de ruptura da paz regional e na simulação de exercícios de engajamento das Forças Armadas.

A partir da década de 1970, a visão espelhada de rivalidade e temor dá lugar a mecanismos de aproximação e distensão em todos os campos do relacionamento bilateral. Ocorre uma normalização no plano da ocupação e do uso dos recursos hídricos da Bacia do Prata, tanto nos aspectos de transporte fluvial como de exploração do enorme potencial energético disponível. Sucede uma distensão quanto ao nível de alerta no plano da segurança que, pouco a pouco, é impregnada pela construção da confiança. Hoje, chegamos ao ponto de que autoridades máximas da Defesa dos dois países e operadores militares de alto nível mantêm uma frequência de diálogo e de intercâmbios que evidencia a construção de uma doutrina de segurança, senão comum, ao menos convergente e compartilhada.

A guinada no tom do discurso e das posturas é brusca, radical e virtuosa. Esse ponto de inflexão estabelece não somente um novo contexto regional, mas um exemplo para o mundo de que o entendimento entre rivais históricos é possível, por mais espinhosas que sejam as pendências em aberto.

No sensível âmbito de desenvolvimento, controle e produção de combustíveis obtidos a partir da fissão nuclear e de programas de sua utilização para fins pacíficos e não pacíficos, fica patente o êxito do entendimento. Em meados dos anos 1980, os dois países haviam avançado de modo considerável nas suas capacitações técnico-científicas, estando aptos a enveredar pelo caminho do enriquecimento do urânio em níveis suficientes para a produção de artefatos atômicos. A mudança das orientações ocorridas em ambos os lados da fronteira, com a caminhada da redemocratização e o projeto compartilhado de integração regional alterou a lógica da escalada nuclear.

O processo de distensão nuclear sub-regional é de natureza política e formalmente é iniciado em 17 de maio de 1980, com a assinatura do Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento e a Aplicação dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear. Buscou-se aí criar condições para que se tomasse reciprocamente conhecimento dos dois programas nucleares1. Em 30 de novembro de 1985, Brasil e Argentina firmaram a Declaração de Iguaçu, visanda criar um Grupo de Trabalho Conjunto de Alto Nível, presidido pelos Ministros de Relações Exteriores, a assinar os compromissos de cooperação nuclear pacífica. Em 29 de julho de 1986, formalizou-se a Ata para Integração Brasileiro-Argentina e instituiu-se o Programa de Integração e Cooperação Econômica (Pice). O Pice, de caráter flexível e equilibrado, estabelece o princípio da simetria e prevê tratamentos preferenciais frente a terceiros mercados, adotando a estratégia de integração gradativa por setores industriais, cuja evolução dinâmica formava o próprio corpo do processo integracionista2.

O Pice constitui a marca de consolidação formal e material do processo de integração no Cone Sul. Sua evolução consubstanciou-se no Tratado de Integração Brasil-Argentina de 1988. Na primeira fase do programa foram firmados 12 protocolos escritos, dos quais dez objetivavam trocas de notas comerciais, um previa a cooperação para fabricar porta-aviões e outro estabelecia o sistema de informações imediatas e assistência recíproca em caso de acidentes nucleares e emergências radiológicas.

O aprofundamento da integração nuclear é reforçado por Declarações firmadas entre 1986 a 1988: Brasília, em 10 de dezembro de 1986; Viedma, em 17 de julho de 1987; Iperó, em 8 de abril de 1988; e Ezeiza, em 30 de novembro de 1988. A Declaração de Iperó é considerada o mais expressivo ato político, pois abriu espaço à discussão de um novo Tratado de Tlatelolco, o Tratado para a Proibição de Armas Nucleares na América Latina e o Caribe, incorporando o Organismo para a Proscrição das Armas Nucleares na América Latina e no Caribe (Opanal). Em fevereiro de 1967, as nações da América Latina e do Caribe rascunharam esse tratado para manter essa região do mundo livre de armas nucleares. A Declaração de Iperó buscava estabelecer salvaguardas próprias da integração bilateral nesse campo.

Por meio da Ata de Buenos Aires de julho de 1990, Brasil e Argentina decidiram acelerar a integração com vistas ao mercado comum. Foi antecipado para 31 de dezembro de 1994 o marcodefinitivo dessa consolidação, reduzindo pela metade os prazos estabelecidos no Tratado de 1988. A aceleração da construção da integração regional levou à adesão de novos parceiros, primeiro o Uruguai e depois o Paraguai, culminando com a assinatura do Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991, que estabelece uma zona de livre comércio entre os quatro integrantes.

Fiscalização mútua

A década de 1990 é decisiva no processo de integração nuclear. A Declaração de Fiscalização Mútua, firmada em 28 de novembro de 1990, marca a terceira etapa da cooperação bilateral nuclear entre Brasil e Argentina ao (a) criar o Sistema Comum de Contabilidade e Controle (SCCC); (b) agenciar a entrada em vigor do Tratado de Tlatelolco e atualizar seus termos; e (c) estabelecer o cumprimento das seguintes atividades: 1) intercâmbio das listas descritivas de todas as instalações nucleares e das declarações dos inventários dos materiais atômicos existentes em cada país; 2) realização de inspeções recíprocas nos sistemas centralizados dos registros; e 3) apresentação dos sistemas de registros e relatórios do SCCC à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

A viabilização jurídica da Declaração de Fiscalização Mútua foi formalizada através de um amplo acordo, o Acordo para o Uso Exclusivamente Pacífico da Energia Nuclear, firmado em 18 de julho de 1991, em Guadalajara, México, criando a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), com personalidade jurídica e sede no Rio de Janeiro. Representou a culminação, em termos jurídicos, de um processo de aproximação iniciado pelos então novos regimes democráticos da Argentina e do Brasil, com a Declaração Conjunta sobre Política Nuclear, de Foz de Iguaçu, em 1985.

Junto a esse acordo, em 20 de agosto de 1991, foi firmado um Protocolo Adicional, estabelecendo privilégios e imunidades aos funcionários e inspetores em missão ou serviços da ABACC. O Acordo de 1991 concede às partes o direito inalienável ao desenvolvimento da pesquisa, produção e utilização da energia nuclear com fins pacíficos, preservando os segredos industriais, tecnológicos e comerciais de ambos os países.

Na agenda das obrigações ajustadas na Declaração de Fiscalização Mútua, duas etapas restava vencer: a formalização de um acordo de salvaguardas e a vigência e atualização dos termos do Tratado de Tlatelolco. Com referência à primeira, o Acordo entre a República Federativa do Brasil, a República Argentina, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares e Agência Internacional de Energia Atômica para a Aplicação de Salvaguardas, conhecido como Acordo Quadripartite, foi firmado em 13 de dezembro de 1991, em Viena, na sede da AIEA. Configura-se um acordo global, com salvaguardas não abrangentes, definindo termos técnicos, integrado por um protocolo anexo, completando as disposições contratuais. Os dois Estados vizinhos, em decisão inédita no mundo, constituíram um sistema sui generis de salvaguardas que reverteu o quadro de mais de quatro décadas de política nuclear de se tornarem potências atômicas regionais. Ao firmarem o Acordo Quadripartite, Brasil e Argentina colocaram sob vigilância todas suas instalações e materiais nucleares. A exportação será rigorosamente controlada se superior a um quilo de material atômico, quando deverá ser notificada à AIEA. Entretanto, o acordo prevê o uso do material nuclear para fins de propulsão de submarinos atômicos.

O Cone Sul adotou um modelo próprio e exemplar para a concertação sub-regional do tema nuclear. A maioria dos países adotou os compromissos e controles internacionais em matéria nuclear ao aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Brasil e Argentina iniciaram esse caminho por meio do acordo bilateral e do Acordo Quadripartite para, em seguida, somarem-se ao Tratado de Tlatelolco – que transformou a América Latina e o Caribe numa Zona Livre de Armas Nucleares – e ao TNP O Brasil e a Argentina estiveram também entre os primeiros países a assinar e a ratificar o Tratado para a Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT)3.

Desarmando a bomba prestes a explodir

É fundamental relembrar nossas poucas virtudes, no momento em que as muitas e salientes vicissitudes teimam em ditar o tom das percepções de ambos os lados da fronteira. Fomos capazes, os dois países, de desmantelar avançados programas de desenvolvimento nuclear, que continham razoável potencial desestabilizador. Nossa ação conjunta, a construção por meio de uma sequência encadeada e crescente de atos jurídicos de diversas características ao longo de pouco mais de dez anos, logrou instaurar na América Latina uma zona livre de artefatos nucleares, algo não trivial de ocorrer duranta a Guerra Fria. Estabelecemos o regime conjunto de desarmamento e de controle de maneira própria, conforme nossas próprias conjunturas, resultando em um mecanismo cooperativo de verificação, a ABACC, que, pode-se postular, representa a única instância supranacional existente no espaço do Mercosul. A ABACC segue ativa e vigente, passados mais de 20 anos de sua criação.

Juntos, Brasil e Argentina, controlamos o átomo, mas nos desintegramos no comércio Organizamos o escaninho da energia nuclear em menos de dez anos. Remanescemos incapazes de alinharmo-nos quanto a práticas comerciais em mais de 20 anos do Tratado de Assunção. Demos exemplo ao mundo em um dos mais sensíveis temas a afetar a paz universal. Mostramo-nos ineptos para lidar com os assuntos mais edificantes do comércio, reconhecidamente um condutor de relacionamento e de cooperação entre os povos. É lídimo reconhecer que a intensificação e o aumento dos vínculos econômicos acarretam o surgimento de um maior número de disputas entre os parceiros, mas não é razoável deixar-se enredar pelas desavenças, negligenciar os avanços conquistados e mostrar-se incompetente para engendrar soluções alternativas. Não será por carência de engenhosos negociadores que nos perderemos no cipoal do comércio, como bem o demonstra o tema da energia nuclear.

É aceitável que mais atrito surja conforme se aprofunda e se amplia a integração. Todavia, o que se passa no plano comercial entre Brasil e Argentina, desde o fim dos anos 1990, e, de modo acentuado, desde 2005, beira o inaceitável, do ponto de vista político, e o ilegal, de uma perspectiva jurídica. Operamos sob a égide do Tratado de Assunção, marco constituinte do tratado de livre comércio do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e do Protocolo de Ouro Preto, que estabeleceu a União Aduaneira e a Tarifa Externa Comum. São normas internalizadas nos respectivos ordenamentos jurídicos e, cuja obediência deveria emanar, antes de tudo, dos governos signatários.

Emprego de salvaguardas

Vem desde o tempo do presidente Carlos Menem (1989-1999) a fixação dos governos argentinos de retaliarem o Brasil devido a políticas econômicas de escopo doméstico que reverberam nos vizinhos devido à simples força gravitacional da economia brasileira. A inescapável flexibilização cambial de janeiro de 1999 foi entendida por nossos vizinhos como um ato imperial brasileiro contrário aos interesses deles. Não havia de se esperar a manutenção ad aeternude um sistema de câmbio controlado próximo a uma paridade real com o dólar, o que era uma boa indicação do que deveria ser feito também do outro lado da fronteira. Pressionado pela recessão e pelo desemprego, o governo argentino regulamentou um sistema de salvaguardas aplicável a todos os membros do Mercosul, a Resolução Nº 911. Foi imposta também uma salvaguarda de transição de duração de três anos sobre as importações de fios de algodão e fios combinados originários de Brasil, Paquistão e China, conforme o disposto no artigo 6º do Acordo sobre Têxteis e Vestuário (ATV) da OMC.

A solução dessas duas disputas no plano bilateral não se deu por meio das conversações e do entendimento. A Resolução Nº 911 foi levada ao Tribunal Arbitral do Mercosul e julgada improcedente, sendo extinta no ano 2000. No âmbito da OMC, o Órgão de Supervisão dos Têxteis (OST) considerou o procedimento com relação ao Brasil ilegal, obrigando a Argentina a desistir da salvaguarda. Daí em diante, persiste a busca da Argentina de lançar mão do expediente das salvaguardas, seja propondo interpretações alternativas à normativa do Mercosul que veda o expediente intra-bloco, seja buscando guarida no capítulo pertinente da OMC.

A Argentina passou, então, a postular o emprego das salvaguardas, acionado por gatilhos em função do extravasamento de volumes importados do Brasil e por prazos indefinidos. Em setembro de 2004, a Argentina apresentou uma proposta formal para a implementação do mecanismo de salvaguardas comerciais no Mercosul. Ficaram ausentes, contudo, elementos imprescindíveis para que o mecanismo possa ser empregado: falta exigência de comprovação de prejuízo significativo a produtor nacional e da desnecessidade daquela importação específica para suprir o mercado doméstico. Além disso, a ideia é que sua interposição possa dar-se de modo unilateral, isto é, sem passar pelas instâncias do Mercosul. A excepcionalidade, âmago do conceito de salvaguarda, dá lugar à banalização do emprego desta ferramenta de defesa comercial. Fica, a partir desse ponto, maculado o princípio do livre comércio e da busca de soluções negociadas para dirimir questões comerciais bilaterais ou regionais, além de ferida a regra emanada da OMC.

Surgiram inovações para mitigar o unilateralismo argentino e a ameaça do travamento às exportações brasileiras. Em primeiro lugar, lançou-se mão dos acordos voluntários para restrição de importações. Utilizados em várias partes do mundo, geralmente estimulam setores envolvidos em processos de integração a buscarem fórmulas de redistribuição produtiva que otimizem seus sistemas produtivos. São arranjos que não criam, em tese, consequências jurídicas, mas apenas compromissos entre os envolvidos. Para regular as negociações entre os setores privados de Brasil e de Argentina foi criada, em agosto de 2003, a Comissão Bilateral de Monitoramento de Comércio. Dessa maneira, abriu-se um canal de diálogo entre os empresários dos dois países para a negociação de restrições quantitativas ao comércio em setores que apresentem assimetria. Os primeiros setores que alcançaram acordos foram o têxtil, o calçadista, o vinícola e o de linha branca (refrigeradores e lavadoras de roupa) e linha marrom (fogões).

Em fevereiro de 2006, visando a dar fim à instabilidade dos intercâmbios comerciais derivados do potencial de ação unilateral argentino e à histriônica e desgastante retórica empregada para justificar tais medidas – cognominada de “Guerra das Geladeiras”, que culminou com a ameaça do Brasil de recorrer à OMC contra as medidas adotadas pela Argentina – os dois países negociam um Protocolo Adicional ao Acordo de Complementação Econômica Nº 14 (ACE 14), firmado no Âmbito da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) sobre “Adaptação Competitiva, Integração Produtiva e Expansão Equilibrada e Dinâmica do Comércio”. É criado o célebre Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC), articulado, em tese, a um Programa de Adaptação Competitiva (PAC) da indústria doméstica. A notoriedade do MAC decorre de sua polêmica elaboração e contestada implementação. De fato, mostra-se tão intrincada e complexa a possibilidade de emprego do MAC, que nunca se deu. O MAC nunca foi utilizado.

A criatividade protecionista apresentou um novo capítulo a partir de 2009: o sistema de licenças não automáticas (LNA) de importação. A Argentina adota esse sistema sem prévio aviso, causando grande desconforto a importadores e exportadores. Exige-se a aprovação antecipada do governo para a entrada dos produtos no mercado doméstico. Meses mais tarde, o Brasil passou a lançar mão do mesmo expediente, não com o fito de defender seu mercado, mas sim o de poder utilizar munição para contra-atacar e tentar coibir arbitrariedades – com tímido sucesso. Durante 2010 e 2011, a lista dos produtos para os quais se exigia LNAs cresce, alcançando 600 itens. A sofisticação burocrática engendrou, posteriormente, a exigência de exportar o mesmo valor que for importado. É praticamente a negação do livre-comércio: importe cada empresa, em valor, tudo o que conseguir exportar, em valor equivalente – não importa que isso não tenha nada que ver com a competência produtiva e com a especialização daquela empresa. O controle por meio de licenças não automáticas aprofundou-se em 2012, com a necessidade de pedir autorização prévia para qualquer importação.

Nunca te vi, sempre te amei

Apesar da indisputada primazia de um para o outro, o pensamento estratégico de Argentina e de Brasil não se resume ao estrito olhar bilateral. Desde o nascimento dos dois países, outros atores regionais e de fora do espaço compartilhado sul-americano atraíram, aqui e ali, a atenção dos formuladores das grandes estratégias em ambas as capitais. Houve momentos em que a aproximação tática entre os dois rivais foi determinada pela presença de uma ameaça comum. Uniram-se, por exemplo, no combate à ditadura de Solano López na Guerra do Paraguai, de 1865 a 1870. Durante a Segunda Guerra Mundial, os dois governos mantiveram-se cautelosos quanto a assumirem posições. O Brasil declarou guerra ao Eixo em agosto de 1942, coisa que a Argentina fez somente em 28 de março de 1945. O envolvimento do Brasil junto aos Aliados assegurou, no pós-guerra, algumas vantagens ligadas à transferência de tecnologia e a investimentos de parte dos Estados Unidos para o fomento à industrialização de base.

A Argentina envolveu-se em dois conflitos recentes que escapam à órbita da referência da rivalidade com o Brasil. A crise do Canal de Beagle de 1977-1978 quase culminou no uso da força. A intervenção do Papa resultou exitosa e pôs fim à divergência. A Guerra das Malvinas de 1982 simboliza o estertor da sufocante ditadura militar, representa uma humilhação nacional argentina e estabelece, desde então, o retorno ostensivo de guarnições inglesas ao arquipélago em disputa. A Guerra das Malvinas pode ter sinalizado o retorno de uma aproximação duradoura no campo estratégico entre Brasil e Argentina, pois o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), invocado e adotado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), foi respeitado pelo Brasil, configurando apoio, embora não tenha havido envolvimento ostensivo no conflito, à Argentina. O revolvimento do caso das Malvinas, em 2012, coloca uma vez mais a questão da solidariedade regional como norte do comportamento brasileiro na América do Sul: compreensão e respaldo ao direito soberano do vizinho sobre as ilhas.

Na redescoberta contemporânea de Brasil e Argentina, calcada no eixo econômico-comercial, não têm faltado ameaças comuns. Nos anos 1990, houve a intenção de se estabelecer uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), envolvendo 34 países do continente. Temiam alguns que a Alca conteria, ao evoluir, um elemento diluidor do Mercosul. Ou seja: a expansão do livre-comércio no Hemisfério Ocidental, consolidando regras entre os países-membros e sob a inspiração ideológica da potência hegemônica do pós-Guerra Fria, os Estados Unidos, acarretaria um Mercosul mais frouxo e menos relevante. Argentina e Brasil, negociando por meio do Mercosul, lograram conduzir as tratativas da Alca, a partir da reunião ministerial de Miami de novembro de 2003, a um ponto sem saída e em sua virtual paralisação e fatal travamento.

Concomitantemente à Alca, a Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio, também foi interpretada como um óbice às pretensões de manutenção de controle de políticas desenvolvimentistas por parte dos governos de Brasil e Argentina. Juntos, no G-20 comercial lançado em agosto de 2003, às vésperas da Reunião Ministerial de Cancún, México, alteraram a correlação de forças usual da OMC. No fim das contas, não foi devido à ação de Brasil e Argentina que a Rodada de Doha estancou, mas sim resultado dos impasses entre outros grandes players, tais como Estados Unidos e Índia. E, mais que tudo, da crise econômica global que se avizinhava e foi detonada a partir do terremoto financeiro de setembro de 2008.

Miragem no deserto

Brasil e Argentina lograram desenvolver, ao longo dos últimos 30 anos, percursos de convergência em aspectos dos mais complexos da relação bilateral. O aproveitamento dos recursos hídricos da Bacia do Prata, a aproximação das doutrinas de segurança e dos estamentos de Defesa dos dois países são conquistas notáveis e que embasam avanços em outras áreas. Vale lembrar a cláusula democrática do Mercosul, vigente desde 1998, por meio do Protocolo de Ushuaia, utilizada no Paraguai em 1996 (ainda como um princípio) e em 1999, que institui na região o risco do ônus do escape de parte de um país dos princípios democráticos comuns a todos os signatários. No plano macroeconômico, do controle da inflação e da estabilização monetária, o êxito indisputado do Plano Real no Brasil encontra paralelo limitado no currency board argentino vigente de 1991 a 2001 – sem dúvida eficaz quanto à estabilização monetária enquanto durou – muito mais devido à tardia flexibilização e à ausência de políticas de competitividade, o que desencadeou profunda crise em 2001 e 2002.

O Mercosul, como estratagema de integração regional e plataforma de posicionamento na globalização, logrou resultados promissores nos anos 1990. A falta de dinamismo posterior decorre de diversos fatores, mas mantém-se o potencial de reativação, mediante o estímulo político adequado. O desafio atual para Brasil e Argentina é de natureza nova: trata-se da China. A China altera os padrões de intercâmbio, deslocando comércio tanto intra como extra bloco. Figura entre os três principais parceiros comerciais de todos os países da região. Mostra apetite interminável por nossas matérias-primas agrícolas, minerais e energéticas. Acena, ainda, com um aquilatado interesse por investimentos. Na esteira da crise econômica de 2008 e da retração econômica e política dos países centrais, abre-se uma avenida de oportunidades produtivas e comerciais para o Brasil e para a Argentina, tanto nas Américas como no mundo em desenvolvimento. Lidar com a China é a pedra de toque para os dois parceiros e para o Mercosul; é por meio dela que avaliaremos nossa capacidade de competir e de lidar com a complexidade. Não basta conter o fator desequilibrante chinês no espaço sub-regional; é preciso verificar como a China altera as estruturas de comércio e investimentos também em terceiros mercados, em especial naqueles em que haja possibilidade de maior penetração de Brasil e Argentina.

Pensar e agir no comércio bilateral entre Argentina e Brasil a partir da premissa minimalista do canibalismo mútuo é, mais do que um engano, uma irresponsabilidade. A China é um dado da realidade que deve ser computado à equação sub-regional de modo ao mesmo tempo prudente e pró-ativo. O Brasil possui um espaço de interlocução privilegiado com a China – o Brics –, cujas cúpulas anuais, desde 2009, têm possibilitado a criação, embora lenta, de diálogos entre os cinco membros constituintes – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Os progressos do Brics, como grupo, mostram-se ainda aquém do que o potencial econômico de seus participantes somados poderia prever. Mas, essa evolução pode ser enfocada também pelo viés da frágil amarração política e a complexa identificação de interesses construtivos convergentes a uni-los, o que poderia supor maiores dificuldades de se criar agendas comuns do que o que finalmente aconteceu. Imaginar que os membros do Brics compartilhem como alvo uma abordagem destrutiva e de negação da ordem internacional do pós-Segunda Guerra e de suas instituições representativas, tais como as Nações Unidas e a tríade de Bretton Woods, é algo demasiado reducionista e inconsequente. Há espaço para mais conteúdo nos foros do Brics e cabe ao Brasil aproveitar-se disso para fazer valer seus objetivos coletivos e bilaterais com cada um dos parceiros – trazendo na esteira Argentina e o Mercosul ampliado.

Em tempos de crise, há que aproveitar oportunidades. Vivemos tempos não somente de crise, mas de rearranjo e redistribuição de poder. Os resultados derivados das cúpulas de junho, o G-20 financeiro no México e a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – a Rio+20 –, permitirão avaliar os encaminhamentos da distribuição de poder mundial e modular os posicionamentos de Brasil e Argentina, membros plenos dos dois grupos, quanto a suas inserções internacionais e quanto a seu relacionamento bilateral. Ficará, ao menos, patente a absoluta ineficácia de pensarmos os dois países por si mesmos e nada mais, adotando comportamentos espelhados, como se, dessa maneira, nos fortalecêssemos um em relação ao outro. A potencialidade da atuação conjunta entre Brasil e Argentina é muito maior, ensina a História recente, e aí estão as lições de cooperação em temas complexos como a energia nuclear e a Defesa, além da construção relativamente rápida de um experimento de integração regional, o Mercosul, de comprovada utilidade em diversos âmbitos da agenda bilateral.

Uma tentativa de política comercial comum poderia ser um exercício compartilhado que desvele fatores de competitividade. Pode permitir ainda uma escapatória da armadilha do protecionismo e a ocupação de nichos de mercado disponíveis devido à crise, mas será algo difícil de acontecer, enquanto a lógica perversa do “curto-prazismo” eleitoral subordinar a ampla visão estratégica de desenvolvimento conjugado entre empresariado e Estado-nacional. Essa preocupação em definitivo não aflige a China, que estará pronta, como todo e qualquer país externo, a aproveitar-se de nossas fragilidades. Saibamos, ao menos, ponderar que desguarnecer nossa capacidade de articulação defensiva por contas de disputas intestinas entre nós mesmos não beneficiará nem argentinos, nem brasileiros – apenas beneficiará nossos competidores oportunistas.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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