08 janeiro 2020

Brasil e Argentina: Para Onde Vai a Relação?

Em fins do primeiro semestre de 2019, o Mercosul pareceu acordar do estado de letargia em que estava submergido desde o início do milênio. Após mais de 20 anos de tratativas, com algumas interrupções, a União Europeia (EU) e o Mercosul anunciaram, em fins de junho, o término das negociações de um acordo de livre comércio entre os dois blocos. Dois meses depois, foi anunciada a conclusão das negociações de um acordo com os países da AELC – Associação Europeia de Livre Comércio (bloco constituído por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein). Em seguida, o Mercosul informou que as negociações com Canadá, Coreia do Sul e Cingapura encontravam-se em estágio bastante avançado. As perspectivas de revitalização do Mercosul e das relações bilaterais se tornaram críveis pela primeira vez em 20 anos.

  1. Introdução

Em fins do primeiro semestre de 2019, o Mercosul pareceu acordar do estado de letargia em que estava submergido desde o início do milênio. Após mais de 20 anos de tratativas, com algumas interrupções, a União Europeia (EU) e o Mercosul anunciaram, em fins de junho, o término das negociações de um acordo de livre comércio entre os dois blocos. Dois meses depois, foi anunciada a conclusão das negociações de um acordo com os países da AELC – Associação Europeia de Livre Comércio (bloco constituído por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein). Em seguida, o Mercosul informou que as negociações com Canadá, Coreia do Sul e Cingapura encontravam-se em estágio bastante avançado. As perspectivas de revitalização do Mercosul e das relações bilaterais se tornaram críveis pela primeira vez em 20 anos.
Além da relevância dos mercados contemplados, esses acordos apontam para avanços em temas da agenda interna do bloco. Os desdobramentos nesse sentido foram quase imediatos. Em início de setembro, Brasil e Argentina renovaram o seu Acordo Automotivo, mas desta vez fixaram um prazo para a efetiva liberalização dos fluxos do setor, responsáveis por quase 50% das trocas comerciais entre os países. Se é verdade que a data fixada para a plena vigência do livre comércio manteve-se no futuro distante (2029), não foram, por outro lado, estabelecidas quaisquer condicionalidades.
De sua parte, o Brasil começou a reduzir de forma autônoma diversas tarifas de produtos incluídos na sua lista de exceção e a ampliar o número de ex-tarifários, sempre com o objetivo de diminuir sua proteção tarifária. Ainda mais importante: a cargo da Presidência Pro Tempore do bloco no segundo semestre de 2019, o Brasil anunciou a intenção de acordar com os sócios uma proposta abrangente de reformulação da Tarifa Externa Comum com a redução gradual da média tarifária do bloco de 13,6% a praticamente metade, num prazo de quatro anos, com cronogramas mais dilatados para um número limitado de setores sensíveis. Tais anúncios tornaram-se críveis a ponto de gerar críticas em segmentos industriais de ambos os países.
Trata-se de um caminho sem volta? Para responder a essa pergunta, mais importante que avaliar as resistências no Parlamento europeu à aprovação do acordo com o Mercosul, é analisar as relações entre Brasil e Argentina, a partir da vitória eleitoral de Alberto Fernández. Desde o início do Mercosul, nunca houve tanta animosidade entre os governos dos dois países. Se de um lado há incentivos para a cooperação e o pragmatismo no tratamento das diferenças e dos obstáculos, de outro existe espaço para uma escalada de confrontos e até para rupturas.

  1. A densidade dos vínculos econômicos

Os vínculos econômicos (comércio e investimentos) entre Brasil e Argentina são densos e relevantes para ambos os países, não obstante as assimetrias na relação bilateral. O Brasil é o principal destino e também o principal fornecedor da Argentina, com participações muito expressivas tanto na exportação (18%) como na importação (24%) do país vizinho.
O inverso é menos verdadeiro. No entanto, o mercado argentino é crítico para a indústria brasileira. Não há exagero em dizer que o setor automotivo brasileiro é “Argentina-dependente” (o sócio regional tem respondido usualmente por 70% ou mais das vendas externas do setor).
A Argentina não é um mercado facilmente substituível. Embora o Brasil tenha feito esforços para diversificar suas exportações automobilísticas, subscrevendo acordos ou ampliando cotas com outros parceiros latino-americanos (México e Colômbia), os resultados têm sido pouco expressivos.
O país vizinho ocupa também lugar destacado no investimento brasileiro no exterior. Em pesquisa recente baseada em amostra incluindo as 69 empresas brasileiras mais internacionalizadas, a Argentina aparece em segundo lugar, com 29 subsidiárias ou franquias, atrás apenas dos EUA. O Brasil é o quarto maior investidor estrangeiro na Argentina, atrás dos EUA, Espanha e França, nessa ordem.
Não há dúvida, portanto, sobre a importância das relações econômicas bilaterais. Num quadro de aumento global do protecionismo e crescimento lento do comércio internacional, há um forte incentivo à cooperação, ao pragmatismo, ao tratamento flexível dos contenciosos e, em última instância, ao uso de boa dose de “paciência estratégica” de ambos os lados.
 

  1. O peso das divergências

A despeito da importância dos vínculos econômicos, Brasil e Argentina enfrentarão um “núcleo duro” de divergência no encaminhamento da política comercial do Mercosul. A divergência é real e expressa o peso político e social maior de interesses e ideologias ligados à proteção do mercado doméstico na Argentina. No Brasil, é politicamente mais forte e socialmente mais disseminada a constatação de que se esgotou o modelo de integração baseado em mercado protegido, comércio administrado para parcela expressiva do intercâmbio bilateral e baixo número de acordos comerciais com terceiros mercados pouco relevantes. E é maior a confiança de que o país se beneficiará de um modelo de integração mais aberto. Não é de hoje que predomina na elite empresarial brasileira a noção de que o Mercosul produz rendimentos marginais decrescentes.
Mas, enquanto Macri foi presidente, os governos de ambos os países compartilhavam o diagnóstico de que o modelo de integração se havia esgotado e de que já não era mais possível simplesmente postergar o enfrentamento do núcleo duro de problemas do bloco. Diplomacias experimentadas tinham melhores condições para lidar com os conflitos da relação bilateral porque dispunham do espaço político para tanto. Hoje, o quadro é outro. As divergências sobre o futuro do bloco não se restringem ao tempo das reformas necessárias para alterar o modelo de integração. Há divergências de concepção. Porém, não significa que o Mercosul esteja condenado à ruptura.
 

  1. Momentos políticos opostos

No Brasil, temos um governo ingressando em seu segundo ano de mandato, com uma agenda econômica liberal, que até aqui tem encontrado apoio do Congresso e do setor empresarial e quase nenhuma resistência da oposição. O apoio a essa agenda vem crescendo desde o fim do ciclo político de 13 anos (2003-2016) em que o PT dominou a política nacional. Desde então, sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda se enfraqueceram. A forma dramática pela qual terminou o ciclo político petista (a mais longa recessão da história brasileira, em meio ao choque da Lava Jato) produziu uma mudança aparentemente duradoura nas preferências do setor empresarial em favor de uma agenda econômica liberal. Essa mudança se traduz em apoio efetivo às reformas internas (fiscal, creditícia, trabalhista, etc.) e em disposição favorável à abertura gradual da economia.
A Argentina está em outro ponto do ciclo político, para dizer o mínimo. A vitória de Alberto Fernández marca o fim da curta experiência “liberal” de Maurício Macri. Outro contraste importante é que a economia brasileira está em recuperação, embora lenta, com inflação e juros em mínimas históricas e uma agenda de reformas em andamento. Já a Argentina se encontra em recessão desde o início de 2018, num quadro de profundos desequilíbrios macroeconômicos. Alberto Fernandez assumirá consumido pelas urgências do curto prazo e pela complexa gestão política de uma coalizão de forças sobre a qual sua liderança não é inconteste e na qual predominam interesses e ideologias ligados à proteção da economia, em particular da indústria.
Em plena campanha, o presidente eleito Alberto Fernández fez duras críticas ao acordo com a UE. Ele tem procurado o apoio de sindicatos patronais e de trabalhadores para construir “pactos sociais” com vistas a controlar uma inflação que beira os 60% anuais. Para isso, precisará fazer concessões: a proteção a interesses industriais e às pequenas empresas será uma delas.  Não menos importante, o novo presidente tem convicção e fé exportadora, mas não liberalizante.
O novo presidente argentino terá a difícil tarefa de conciliar a resposta a expectativas de reativação da economia e atendimento a demandas sociais com a renovação do acordo com o FMI, essencial para uma renegociação relativamente ordenada da sua dívida externa, sem a qual a aceleração da inflação será inexorável. Nessa difícil travessia, a Argentina precisa do apoio dos Estados Unidos, principal sócio do FMI, e do Brasil, principal destino de suas exportações. Ainda que bem-sucedida, a travessia tomará pelo menos dois anos, período no qual o governo estará consumido pelo manejo da conjuntura econômica e a política de curto prazo.
Em tese, haverá tempo suficiente para se ajustar aos termos dos acordos comerciais negociados com a UE e com a AELC. A ratificação de ambos tomará pelo menos dois anos e os respectivos cronogramas de liberalização são graduais. Começarão a “doer” após o terceiro ou quarto ano da sua entrada em vigência.
Na mesma linha de raciocínio, na próxima reunião de Cúpula do Mercosul, na qual a Argentina ainda será representada por Maurício Macri, é provável que sejam acordadas diretrizes gerais para a reforma da tarifa comum, mas não um cronograma definitivo. Existem resistências não apenas na Argentina, mas também no próprio Brasil, cujos setores industriais já vêm pressionando por maior participação na definição do timing das medidas unilaterais redutoras da proteção e, particularmente, na escolha dos setores sensíveis a ser contemplados com prazos mais dilatados.
Além disso, o andamento da agenda de reformas no Brasil não são favas contadas. São previsíveis as dificuldades na aprovação de reformas que requerem alta capacidade de coordenação política para formação de maiorias congressuais. A tributária, em particular, para a qual é necessário arbitrar simultaneamente conflitos setoriais e federativos. Quão maiores as dificuldades no andamento da agenda de reformas, maiores as resistências à abertura da economia.
 

  1. O Mercosul na geopolítica da região

O Mercosul é muito mais do que um acordo entre Brasil e Argentina e os sócios menores. É um acordo estratégico e geopolítico que tem marcado a história do Cone Sul nos últimos 35 anos. Os primeiros passos foram dados no início dos anos 1980, ainda durante a vigência de regimes militares em ambos os países, mas se consolidou com a emergência da democracia. Hipóteses de conflito, que condicionaram durante anos a concentração de contingentes militares em áreas de fronteira e impuseram até mesmo restrições à ampliação de infraestrutura física de comunicação entre os dois maiores países da América do Sul, foram substituídas por políticas de cooperação e consenso, com destaque para os acordos na área nuclear, e um processo crescente de confidence building. A substituição de uma lógica baseada em cenários de ameaça e confrontação por outra baseada na cooperação institucionalizada resultou no estreitamento de vínculos políticos, culturais e sociais e em múltiplos acordos em matéria de educação, saúde pública, previdência social e tecnologia, antes inexistentes.
O Mercosul, paradoxalmente, é mais e menos do que uma União Aduaneira. Menos porque são muitas as perfurações da Tarifa Externa Comum e os entraves não tarifários ainda existentes nas relações comerciais entre os membros do bloco. Mais porque os vínculos estabelecidos entre Brasil e Argentina ultrapassam a esfera econômica. Significa dizer que uma eventual saída brasileira do bloco tem o potencial de mobilizar setores contrários, civis e militares, politizando a questão para fora dos limites da decisão do Executivo. Sinal disso é a iniciativa do senador Humberto Costa (PT-PE) que, em novembro, apresentou projeto de decreto legislativo condicionando eventual saída do bloco à aprovação do Congresso.
A importância da relação estratégica entre Brasil e Argentina é um enorme incentivo à cooperação e a uma resolução, sem estridências, de eventuais divergências e conflitos.
O Brasil, porém, mudou o discurso da sua política externa a partir do governo Bolsonaro. Embora recente, a mudança aponta para uma redução do peso estratégico do vínculo do Brasil com a Argentina. Põe em questão pelo menos 40 anos de contínua prioridade diplomática atribuída pelo Brasil ao vínculo com a Argentina, como peça-chave da afirmação de uma liderança regional benigna, preocupada com a estabilidade política da região. Com alta voltagem retórica, o discurso da política externa atual reflete as afinidades político-ideológicas do governo de turno. Durante a eleição e mesmo após a vitória de Fernandez, o governo brasileiro não poupou palavras para estigmatizar o presidente eleito, fato sem precedente na história dos dois países.
Alberto Fernández tampouco tem feito segredo de suas preferências políticas. Durante a campanha, visitou Lula em Curitiba e juntou-se à campanha pela “libertação” do ex-presidente. Desde a eleição, assumiu protagonismo na cena externa latino-americana, buscando projetar sua liderança em círculos políticos à esquerda do espectro político. Teve participação destacada em reunião do Grupo de Puebla, foro de reflexão constituído, em larga medida, por personalidades que hoje estão na oposição em seus respectivos países.
A ambos os presidentes interessou até aqui investir no acirramento retórico e na polarização política. Se para Fernández isso o ajuda a acumular capital simbólico junto à ala da coalizão peronista mais alinhada com Cristina Kirchner, para Bolsonaro reforça um elemento central de sua narrativa: há uma orquestração da esquerda latino-americana para voltar ao poder na região, e só ele poderá detê-la.
Essa retórica não desaparecerá, mas tende a ceder lugar ao pragmatismo. O equilíbrio, porém, será instável. A diplomacia transbordou para as mídias sociais, e a política externa se tornou ingrediente da polarização política doméstica. E não há volta atrás.

  1. A título de conclusão: um pragmatismo instável

No caso da Argentina, os fatores que estimulam o pragmatismo são óbvios, dada a profundidade da crise em que se encontra o país. Para o novo governo, é vital desenvolver uma relação fluida com os EUA, principal acionista do FMI, contar também com o apoio de países da UE e manter um bom relacionamento com o Brasil, principal mercado de exportação da Argentina. A recuperação da economia brasileira está em curso e nosso país é essencial para alavancar as vendas externas de importantes setores industriais argentinos.
A recuperação da economia argentina também interessa ao Brasil, em particular à indústria. Entre as causas da lenta retomada da economia brasileira em 2019, está a recessão na Argentina, que afeta duramente as exportações industriais brasileiras.
Há ainda um fator político de peso a estimular o pragmatismo de parte do governo brasileiro. Se para Fernández o objetivo principal é viabilizar o seu governo em meio a uma crise que pode engolfá-lo ainda no início de seu mandato, para Bolsonaro a prioridade é construir bases de apoio com vistas à sua reeleição. O peso da Argentina na geração de renda e emprego no Brasil é suficientemente importante para que o presidente da República não acrescente dificuldades ao país vizinho. Os eventuais ganhos com sua base mais ideológica de apoio seriam de longe suplantados pela perda junto a setores de empresários e trabalhadores diretamente afetados pelas relações econômicas com o país vizinho. Esses setores estão localizados nas regiões Sul e Sudeste, e têm capacidade de expressão pública e mobilização política em torno dos seus interesses. Bolsonaro é um político atento aos humores da sociedade. O recuo recente na decisão de enviar a reforma administrativa ao Congresso ainda este ano é indicativo claro de que, a despeito da retórica inflamada, pondera a respeito dos riscos de ampliação da base social dos que se opõem ao seu governo, tanto mais agora, que Lula está em liberdade e o protesto social põe em xeque vários governos de centro-direita na região.
A paciência estratégica do Brasil poderá ser produto não da convicção quanto à  importância do Mercosul, mas do cálculo político de um presidente interessado em se reeleger. A provável desaceleração da agenda de reformas no Congresso tampouco deixará de afetar a disposição do empresariado quanto ao ritmo da abertura da economia. Por fim, não se deve subestimar o peso da corporação militar em decisões que ultrapassam a esfera da economia. Na visão das Forças Armadas, a Argentina é mais do que um parceiro comercial.
O fato de que o mais provável seja a permanência do Brasil não significa que o futuro do Mercosul esteja assegurado.  Mas, o futuro terá de esperar.


Ricardo Markwald é economista graduado pela Universidad de Buenos Aires e com mestrado na PUC-RJ. É diretor geral da Funcex (Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior) e editor da RBCE – Revista Brasileira de Comércio Exterior. Sergio Fausto é cientista político, diretor geral da Fundação FHC, codiretor do projeto Plataforma Democrática e editor do Journal of Democracy em português. Foi assessor dos ministérios da Fazenda, Desenvolvimento e Comércio Exterior e Planejamento e Orçamento entre 1996 e 2002.

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