05 abril 2019

Brasil: Oportunidades e Riscos

O Brasil vive um momento delicado de sua política externa. Se for conduzida com lucidez e habilidade, ela pode representar um grande impulso rumo aos objetivos do país de desenvolvimento, prosperidade, estabilidade e prestígio internacional. Em contrapartida, se não houver clareza de objetivos e prudência, o potencial destrutivo no longo prazo de movimentos desastrados pode ser igualmente significativo. Os cenários regional e global estão repletos de oportunidades e riscos.
No nosso entorno, a situação mais premente e alarmante é obviamente a da Venezuela. O regime chavista parece ter embarcado em uma viagem sem volta rumo ao próprio aniquilamento, carregando consigo suas finanças públicas e as reservas internacionais, o sistema de abastecimento de alimentos e medicamentos e o fornecimento de energia elétrica e combustíveis.
Como maior vizinho e líder regional, o Brasil pode desempenhar um papel que não só contribua para uma transição menos traumática, como abra espaço para uma parceria política e econômica extremamente vantajosa para ambos os países em um eventual governo pós-chavista.
Este é um ano decisivo também para o vizinho mais importante do Brasil. O governo argentino não teve êxito na execução de sua política econômica: apesar dos esforços de gestão e de reformas, a inflação não foi debelada, os gastos públicos não se reduziram na proporção necessária, o déficit nas contas externas fugiu ao controle e as reservas em divisas caíram para um nível temerário, obrigando a equipe econômica a pedir socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI), o que reforçou a imagem de vulnerabilidade e improvisação.
Essas dificuldades enfraquecem a posição do grupo do presidente Mauricio Macri nas eleições de outubro. Sua sorte é que a líder da oposição, Cristina Kirchner, enfrenta vários processos por corrupção e obstrução de Justiça, que também a colocam na defensiva. Desse embate dependem o futuro das reformas, a reordenação da economia argentina e a continuidade de uma parceria muito importante para o Brasil, nos campos político e comercial.
Seguindo na lista dos países que enfrentam problemas na região, a estabilidade política do Peru continua ameaçada pela atuação da líder da oposição, Keiko Fujimori, que controla a maioria do Parlamento unicameral. Presa por corrupção, Keiko já demonstrou sua influência, ao precipitar a renúncia do presidente Pedro Pablo Kuczynski (conhecido como PPK), depois de ele ter indultado seu pai, Alberto Fujimori, como parte de um acordo com seu irmão, o também deputado Kenji Fujimori. O atual presidente, Martín Vizcarra, mantém a política econômica ortodoxa de PPK e de seus antecessores, que permitiu ao Peru atravessar com relativo êxito a queda dos preços das commodities, das quais é bastante dependente, como os demais países andinos.
Brasil e suas relações com os vizinhos
Na América Central, a Nicarágua enfrenta turbulências causadas pela reação popular ao projeto de permanência de poder do presidente Daniel Ortega, que governou entre a revolução de 1979, por ele liderada, em 1990, voltando ao cargo em 2007. El Salvador, Honduras e Guatemala sofrem com a epidemia de violência das gangues que disputam território para a exploração do narcotráfico e a extorsão da população. O fracasso na reconstrução do Haiti depois do terremoto de 2010 e a precariedade nas condições de vida, somadas à corrupção e à má gestão, estão levando a protestos contra o governo do presidente Jovenel Moïse.
O México de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) também não suscita grande otimismo. Nos últimos 30 anos, as políticas liberais industrializaram o país, propiciaram a criação de multinacionais mexicanas, atraíram investimentos para o petróleo e o levaram a uma relativa prosperidade. O novo presidente mexicano, um populista de esquerda, tende a abandonar essas políticas, sem necessariamente cumprir seus objetivos de reduzir a desigualdade e a violência do crime organizado. Com a chegada de AMLO ao poder, o Brasil perdeu um importante aliado nas pressões regionais contra a Venezuela. Não se sabe ao certo qual será o impacto sobre as intensas relações comerciais entre os dois países, com a ascensão de dois presidentes com perfis ideológicos opostos.
Por outro lado, cinco países sul-americanos e um centro-americano devem figurar na pauta brasileira do estreitamento das parcerias pelos bons momentos que atravessam: Paraguai, Uruguai, Chile, Equador, Colômbia e Costa Rica.
Assim como o Peru, o Paraguai vem de uma sequência de governos, sejam eles tachados de direita ou de esquerda, que têm mantido um compromisso com a responsabilidade fiscal e a criação de um ambiente favorável à livre iniciativa. Ao contrário do que o observador à distância possa imaginar, nem mesmo o ex-bispo Fernando Lugo interrompeu essa sequência, apesar de seu discurso populista de esquerda. Seu impeachment, em 2012, que teve como pretexto seu apoio ao movimento dos sem-terra no país, significou a retomada dos governos assumidamente liberais.
O Paraguai vem passando por um processo de industrialização, com a transferência de fábricas de empresas brasileiras para o país vizinho, em busca de impostos, encargos trabalhistas e salários mais baixos e câmbio mais favorável. Observadas as diferenças de escala, o Paraguai pode se transformar, para o Brasil, no que o México tem sido para os Estados Unidos: um parque industrial fornecedor de componentes mais baratos, que contribui para a competitividade da indústria americana — ou, no caso, da brasileira. O Paraguai continua representando fontes de dores de cabeça, por seu papel no contrabando de cigarros e outros produtos e pelo trânsito de drogas e armas na fronteira com o Brasil. Cabe ao governo brasileiro adotar uma política bilateral destinada a potencializar a complementaridade das duas indústrias e a inibir essas atividades ilegais.
O Uruguai vem de uma sequência de governos que, embora sejam identificados como de centro-esquerda ou mesmo de esquerda, também têm mantido compromisso com a condução ortodoxa da economia. O garante desse compromisso tem sido o ministro da Economia e Finanças, Danilo Astori, que já havia ocupado o cargo entre 2005 e 2008 e foi vice-presidente no mandato anterior. O Uruguai tem aproveitado sua posição geográfica e participação no Mercosul para se especializar em serviços e logística. Apesar do reduzido tamanho de sua economia, é um parceiro que pode agregar mais, se o Brasil souber explorar as potencialidades dessa sua nova especialização.
O Chile tem trafegado entre a centro-esquerda e a direita, sem perder o rumo na política econômica, por mais que a ex-presidente Michele Bachelet tenha se aproximado dos comunistas em seu segundo mandato. O país tem experiências de longa maturação em setores críticos para o Brasil, como o comércio exterior, com destaque para o seu êxito na promoção do vinho chileno e a reforma da previdência, centrada na criação de contas individuais de capitalização.
O presidente Jair Bolsonaro identificou corretamente o interesse nacional em aproximar o Brasil do Chile. Seria desejável, no entanto, que essa aproximação não ficasse ancorada na identificação ideológica entre Bolsonaro e Sebastián Piñera. Essa identificação pode ser um incentivo inicial, mas a parceria com o Chile precisa assumir um alcance estratégico, para além dos governos de turno.
O presidente do Equador, Lenín Moreno, tem sido uma surpresa positiva. Ele foi eleito com as credenciais de vice de Rafael Correa, um populista de esquerda da escola de Hugo Chávez, embora menos desastrado que seu ex-aliado venezuelano. Entretanto, Moreno rompeu com Correa e tem permitido que o Ministério Público e a Justiça executem o equivalente equatoriano a uma operação Lava Jato, que já levou à condenação e à prisão do vice-presidente Jorge Glas, acusado de receber propina da Odebrecht. A Justiça pediu a prisão preventiva de Correa, exilado na Bélgica. As investigações provocaram conflitos até no interior do Ministério Público, e, até agora, os procuradores que conduzem as investigações têm vencido as resistências. Moreno tem uma visão mais liberal da economia do que Correa.
Identificação ideológica: um risco?
A Colômbia tem um longo histórico de compromisso com a democracia, a livre iniciativa e a independência do Banco Central. Esses pilares foram reforçados com a recente conclusão do acordo de paz com a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs). Embora seja um crítico do que considera um excesso de benevolência com os guerrilheiros, o novo presidente Iván Duque não tem agido no sentido de sabotá-lo. Desse modo, sua presença no governo acaba por garantir a consolidação do acordo, ao desfazer as percepções de risco de ruptura.
Como ficou demonstrado na recente ação conjunta de oferta de ajuda humanitária para a Venezuela, combinada com a rejeição a uma intervenção militar para apear os chavistas do poder, a Colômbia apresenta um enorme potencial de sintonia política e parceria com o Brasil. O desafio, assim como no caso do Chile, é não circunscrever essa parceria a uma identificação ideológica momentânea, que pode impulsionar a aproximação no curto prazo mas comprometer a sua solidez e durabilidade no médio e no longo prazos.
A Costa Rica também vem de um longo período de adoção de políticas econômicas e comerciais acertadas, que trouxeram prosperidade e estabilidade ao país. A polarização e contaminação da última eleição presidencial por um tema moral –  o direito de casamento entre pessoas do mesmo sexo–  não chegaram a interromper esse círculo virtuoso. Aos 38 anos, Carlos Alvarado Quesada, o candidato apoiado pelo governo, tornou-se no ano passado o presidente mais jovem da história do país e promete levar adiante as conquistas, tanto no campo econômico quanto social. Parte do ministério de Bolsonaro talvez se identificasse mais com a pregação moralista do pastor Fabricio Alvarado, derrotado nas urnas. Mas, o interesse econômico e político do Brasil o coloca ao lado da continuidade das políticas na Costa Rica.
Ampliando o foco para o cenário global, os Estados Unidos continuam com indicadores econômicos robustos. Em vez da recessão que chegou a ser prevista, o cenário aponta para uma desaceleração, com a geração de empregos diminuindo, mas ainda no azul. Os salários cresceram 3,4% no ano passado, o melhor resultado desde 2009. Os problemas americanos são hoje essencialmente políticos. O presidente Donald Trump enfrenta uma maioria democrata na Câmara dos Deputados, disposta a tornar essa segunda metade de seu mandato a mais tortuosa possível. Os democratas devem usar o controle das comissões de Supervisão, Justiça e Inteligência para reunir evidências contra o presidente nas investigações em curso sobre suas relações com a Rússia e também sobre a composição de sua fortuna, já que Trump não divulgou sua declaração de imposto de renda, rompendo uma tradição. Mas, os democratas terão cautela para não dar a impressão de que querem desencadear um processo de impeachment antes de ter evidências suficientemente sólidas.
Essa situação coloca o presidente Trump na defensiva e tende a tornar seu comportamento ainda mais impulsivo e imprevisível. Nesse contexto, a aproximação entre os governos brasileiro e americano, embora em princípio bem-vinda, deve ser realizada com a máxima cautela. O Brasil já entrou no radar do presidente americano duas vezes, em sua cruzada para aumentar as exportações e diminuir as importações dos EUA. Trump incluiu o aço e o alumínio brasileiros nas sobretaxas de 25% e 10%, respectivamente, junto com os de outros países, para em seguida suspender a medida. E já se queixou do protecionismo brasileiro.
O instinto mercantilista do presidente americano, combinado com a situação política delicada que ele enfrenta, recomenda uma abordagem técnica e pragmática da agenda bilateral. Três itens bastante concretos e específicos na ordem do dia são: a reversão da rejeição de Trump  ao ingresso do Brasil na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); o Acordo de Salvaguarda Tecnológica, que permitirá a utilização comercial do Centro de Lançamentos de Satélites de Alcântara; e o acordo para evitar a bitributação.
Por mais tentador que possa parecer ao presidente Bolsonaro engajar-se numa aproximação com contornos e objetivos mal delineados, em razão do incentivo narcísico de aparecer como um “amigo” do homem mais poderoso do planeta, é importante lembrar que os interesses nacionais não serão bem servidos por uma aliança incondicional. A pauta global americana, em questões como as disputas com a China, a aliança com Israel e com a Arábia Saudita, a hostilidade contra o Irã e assim por diante, não guarda nenhuma relação com os interesses do Brasil.
A China é o maior parceiro comercial do Brasil e seus investimentos têm sido importantes para a modernização da infraestrutura do país. O governo brasileiro não pode subordinar sua estratégia de relação com a China a uma aliança com os EUA. Existem interesses comuns, não só com os americanos, mas também com os europeus. A China viola leis comerciais e de propriedade intelectual, o que prejudica também o Brasil. Mas, as pressões para que a China reveja essas práticas devem continuar sendo feitas pelos canais apropriados, como os processos na Organização Mundial de Comércio (OMC).
Uma guerra comercial como a que os EUA vêm travando com a China, por meio do aumento de tarifas de importação, não interessa ao Brasil. É bastante duvidoso que interesse até aos americanos, cuja indústria depende dos componentes chineses, e cuja agricultura sofre com a queda nas exportações para a China.
Bolsonaro já fez uma incursão nesse terreno minado. Em março do ano passado, o então deputado federal e pré-candidato a presidente visitou Taiwan e declarou, em um vídeo: “Só o fato de nós termos feito uma viagem para Israel, Estados Unidos, Japão, Coreia e Taiwan, nós estamos mostrando de quem nós queremos ser amigos; juntar com gente boa, gente que pensa no seu país, fazendo essas parcerias e fazendo com que os nossos povos sejam felizes”. Durante a campanha, Bolsonaro denunciou os chineses por “comprar o Brasil”, em vez de “comprar no Brasil”, ecoando a retórica de Trump.
Bolsonaro e a China
Já entre o primeiro e o segundo turnos, no entanto, funcionários chineses foram recebidos por assessores de Bolsonaro. No início de março, ao entregar suas credenciais a Bolsonaro, o novo embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, transmitiu-lhe o convite do presidente Xi Jinping para visitar o país. Bolsonaro não só confirmou a viagem para este ano, como adiantou que a relação com a China “vai melhorar com toda a certeza”, e arrematou: “Nós queremos nos aproximar do mundo todo, ampliar nossos negócios, abrir nossas fronteiras, e assim será o nosso governo. Essa foi a diretriz dada a todos os nossos ministros”.
A atitude causa alívio e é semelhante à adotada em relação à transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém. A simples cogitação, no período da campanha, levou o Egito a cancelar uma visita ao país do então chanceler Aloysio Nunes Ferreira, junto com uma delegação de empresários brasileiros. Várias advertências foram feitas, de que o comércio com os países árabes, que são grandes consumidores de carne brasileira, seria prejudicado pela eventual medida, já adotada pelo governo Trump. Bolsonaro não falou mais no assunto, embora o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu tenha afirmado que o presidente brasileiro reiterou a promessa em sua reunião nas vésperas da posse.
A crença no livre comércio e no livre trânsito de pessoas e de capitais, que inspirou a criação da União Europeia (UE), está em xeque. O Brexit, as manifestações dos coletes amarelos na França, o enfraquecimento da União Democrata Cristã (CDU) e do Partido Social Democrata (SPD) na Alemanha e a vitória da Liga e do Movimento 5 Estrelas na Itália são demonstrações da falta de apoio às teses liberais que justificam em grande medida a formação da UE. É nesse contexto, que também coloca os principais dirigentes europeus na defensiva e os incentiva a adotar posturas protecionistas, que o Mercosul tenta concluir o acordo de livre comércio com o bloco europeu, cujas negociações se arrastam há duas décadas.
Há uma clara identificação entre o governo Bolsonaro e o que o chanceler Ernesto Araújo chamou em seu discurso de posse de “a nova Itália”, bem como os dirigentes nacionalistas da Hungria e da Polônia. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, assim como o chanceler polonês, Jacek Czaputowicz, vieram para a posse. De maneira que, do ponto de vista das simpatias ideológicas, o atual governo brasileiro se alinharia com a corrente europeia contrária à integração. Por sinal, tradicionalmente, a Polônia tem imposto uma das maiores resistências a um acordo com o Mercosul, ao lado da França, em função do interesse de ambas de manter os subsídios agrícolas e o protecionismo comercial associados à Política Agrícola Comum (PAC).
Essas visões contrariam o interesse brasileiro em ampliar o acesso de seus produtos agrícolas ao mercado europeu. É bem verdade que, quando se trata de negociação comercial, os interesses nacionais falam mais alto que as identificações ideológicas. A chegada à presidência de Emmanuel Macron, considerado um liberal, não removeu as resistências francesas às concessões ao Mercosul. O importante para o Brasil é não perder a clareza acerca de seu objetivo: assegurar o acesso ao mercado europeu, em troca da retirada das barreiras que protegem a indústria, os serviços e os contratos públicos brasileiros.
Essa retirada fere os interesses de setores muito bem organizados e influentes, que se beneficiam do alto grau de fechamento da economia brasileira. O ganho para o país em competitividade e modernização resultante da eventual abertura desses setores é grande, porém difuso, enquanto a perda, para as empresas, é concentrada, tanto quanto a sua capacidade de pressão política. Enfrentar essa resistência requererá ao ministro Paulo Guedes, da Economia, um esforço tão grande ou maior do que a reforma da Previdência. O impeachment do ex-presidente Fernando Collor teve como pretexto a enorme escala da corrupção — que era real e grave —, como incentivo a sua incapacidade de satisfazer ao Congresso e como gatilho o seu programa de abertura comercial, que já havia atingido em cheio o setor agrícola e se dirigia então para a indústria e serviços. De maneira que esse será um dos maiores desafios do governo Bolsonaro, se ele de fato se propuser a enfrentá-lo, como tem prometido Guedes, e como desejam aqueles que compreendem a sua importância central para o desenvolvimento do país.
Essa perspectiva deve nortear também a revisão do Mercosul. Sua enorme lista de exceções de produtos sujeitos a tarifa zero, as amarras impostas pela união alfandegária, que impedem a realização de acordos bilaterais, e a complexidade das negociações com a UE têm atendido aos interesses protecionistas no Brasil e na Argentina. A revisão das regras do bloco deve ter como objetivo, de um lado, universalizar o alcance do livre comércio entre os seus integrantes e, de outro, permitir que eles possam negociar individualmente acordos fora do Mercosul.
Macri tem demonstrado disposição de caminhar nessa direção, chegando a queixar-se, numa carta vazada na imprensa, da falta de progresso com o então presidente Michel Temer. Em sua vinda a Brasília depois da posse de Bolsonaro, o presidente argentino confirmou essa disposição. Pela linguagem que adotou ao sair do encontro, Bolsonaro pareceu sintonizado com Macri nesse objetivo: “O Mercosul precisa valorizar sua tradição original de abertura comercial, redução de barreiras e eliminação de burocracias. O propósito é construir um Mercosul enxuto que continue a fazer sentido e ter relevância”.
Comunicado divulgado depois pelo Itamaraty afirma: “Os presidentes decidiram trabalhar durante suas consecutivas presidências pro-tempore, em 2019, para rever a tarifa externa comum, melhorar o acesso a mercados e avançar em facilitação de comércio e convergência regulatória. No plano externo, acordaram impulsionar as negociações mais promissoras já em curso e avaliar o início de novas negociações com outros parceiros”.
Isso não se faz da noite para o dia, mas seria interessante aproveitar a janela de oportunidade oferecida pelo mandato de Macri, que chega ao fim em 10 de dezembro, para avançar o máximo possível nesse processo.
Assim como o Mercosul, a OMC precisa de reforma, mas os interesses brasileiros serão prejudicados se ela perder relevância. A alternativa às regras internacionais e aos organismos multilaterais encarregados de colocá-las em prática é a solução dos conflitos pela força econômica e militar. Embora seja uma das dez maiores economias do mundo, o Brasil não se sairia bem em disputas baseadas na lei do mais forte com os Estados Unidos, a China e os principais países europeus, tanto no campo comercial quanto militar. Um mundo regido pelo direito internacional interessa a potências médias como o Brasil, além de ser mais coerente com os valores e objetivos, acalentados pela maioria dos brasileiros, da democracia liberal, paz, prosperidade, estabilidade e justiça.
Ainda no campo das estratégias comerciais, o Brasil faria bem em se aproximar da Parceria Transpacífico (TPP), que demonstrou sua força ao evitar ser abortada pela retirada americana, decidida por Trump. Rebatizada TPP-11, pelo número de países que reúne, suas economias somam US$13,5 trilhões, e os habitantes representam 14% da população mundial. Além de seu peso quantitativo, a TPP é importante como modelo de acordo, porque abrange não só o comércio, mas também regras de investimentos, propriedade intelectual, serviços, normas trabalhistas e ambientais.
O México é um de seus signatários. Os outros membros da Aliança do Pacífico — Chile, Peru e Colômbia — também se preparam para ingressar na TPP. O Mercosul, em conjunto, ou o Brasil, individualmente, deve se aproximar da Aliança, pela importância do bloco em si, e também como porta de entrada para o TPP, que lhe daria acesso a um vasto mercado e a um modelo de acordo que atende às preocupações contemporâneas.
 Herança complicada
O Brasil perdeu prestígio neste início de século, em razão de uma série de erros, inconsistências na política externa e, finalmente, uma campanha deliberada para minar a confiança em suas instituições democráticas.
Esse processo teve início com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Lula, seu assessor especial para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, e seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, pretenderam aumentar a projeção do Brasil no mundo por meio de um proativismo em temas internacionais nos quais o país não tem tradição de envolvimento; do estreitamento das relações com os países latino-americanos, africanos e árabes; e um aumento brutal no número de representações diplomáticas. Às 150 embaixadas e consulados existentes, foram acrescentadas outras 77. O corpo diplomático também foi ampliado em cerca de 400 novos postos. Sem ter sido credenciado como mediador pelos Estados Unidos e pelos países europeus, Lula se engajou, sem sucesso, na promoção de um acordo nuclear para o Irã, em parceria com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. A oferta iraniana foi considerada inaceitável pela Casa Branca e serviu apenas de oportunidade para o então presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, mostrar a seu público interno que gozava de prestígio internacional, além de expor o simplismo e a ingenuidade do governo brasileiro.
O voluntarismo do período de Lula deu lugar ao indisfarçado desinteresse de sua sucessora, Dilma Rousseff, pela política externa. Premida pela queda na entrada de divisas e na arrecadação, causada pelo fim do superciclo das commodities, Rousseff retirou verbas do Itamaraty. A penúria de recursos, associada ao inchaço da estrutura, levou o ministério a cortar gastos, a tal ponto que muitas embaixadas passaram a atrasar o pagamento de salários de funcionários locais, aluguel e contas de luz.
A situação foi regularizada depois da nomeação para o cargo de chanceler do senador José Serra, que usou seu prestígio político para garantir verbas de emergência para a pasta, enquanto fazia um levantamento para redimensionar a sua estrutura. O impeachment de Rousseff, no entanto, desencadeou uma campanha, por parte da esquerda brasileira,  para denunciar um “golpe”. Muitas pessoas no mundo aderiram a essa tese, que ganhou espaço em artigos de opinião em jornais importantes, como The New York Times e The Guardian. Sua ressonância chegou ao ponto de o papa Francisco recusar o convite para participar da celebração dos 300 anos de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil.
Ao impeachment se seguiram a condenação e prisão de Lula, pré-candidato presidencial favorito, segundo as pesquisas. O episódio voltou a ser usado pela esquerda para lançar dúvida sobre as instituições democráticas brasileiras. O então presidente Temer, cuja credibilidade foi enfraquecida pela gravação de um diálogo comprometedor com o empresário Joesley Batista, não teve força suficiente para rebater esses ataques. As dúvidas lançadas sobre a legitimidade do governo explicam o baixo número de visitas de autoridades estrangeiras ao Brasil nesse período. O então secretário de Estado Rex Tillerson e o vice-presidente Mike Pence vieram aos países vizinhos, mas não ao Brasil.
Embora não haja dúvidas sobre a legitimidade da eleição de Bolsonaro, declarações, atitudes e o histórico do novo presidente têm sido usados para questionar suas credenciais democráticas. O presidente é frequentemente apresentado em reportagens, mesmo em veículos liberais, como a revista inglesa The Economist, como alguém que defendeu a ditadura militar e a tortura, além de ter feito declarações machistas e homofóbicas.
Já de saída, portanto, o governo Bolsonaro carrega dois tipos de passivos: aqueles criados pelos governos anteriores e por ele próprio. Só uma política externa baseada em princípios claros e guiada de forma pragmática pelos interesses nacionais será capaz de limpar essa imagem negativa.
Bolsonaro falou em “desideologizar” a política externa. Isso seria muito bem-vindo. A forma de fazê-lo seria retomar o fio das tradições do Itamaraty, baseadas em princípios como o da não ingerência nos assuntos de outros países, a promoção dos interesses nacionais, do multilateralismo e das regras internacionais.
A retórica do presidente e de seu chanceler, Ernesto Araújo, não aponta nessa direção. Pelo contrário. Bolsonaro é caracterizado por uma linguagem direta, que deixa claras suas preferências e rejeições, e isso se estende a suas declarações no terreno da política externa. Seu público admira sua espontaneidade e sinceridade, mas ambas não são muito condizentes com as sensibilidades envolvidas nas relações com outros países. Araújo professa uma doutrina nacionalista, antimarxista, antiglobalista e pró-Trump que pode ser qualificada de qualquer coisa, menos de não ideológica.
Algumas ideias ventiladas pelo novo governo estão carregadas de ideologia. Uma delas já foi posta em prática, de forma impulsiva: a saída do Pacto Global para a Migração. O então chanceler Aloysio Nunes Ferreira foi surpreendido com a notícia da decisão ao descer da tribuna da conferência de criação do pacto, em Marrakech, onde acabara de discursar em sua defesa. Diferentemente da interpretação do governo Bolsonaro, o pacto não invade a soberania dos países: a adoção das medidas é voluntária. Além disso, o pacto representa uma proteção a mais para milhões de brasileiros que vivem em outros países. O fluxo de migração do Brasil é muito maior para fora do que para dentro. Trata-se de um claro exemplo de importação, sem filtros, de uma pauta dos países desenvolvidos, desconexa da realidade brasileira.
Bolsonaro não voltou a falar em retirar o Brasil do Acordo de Mudança Climática de Paris. Isso representaria a perda de um dos ativos brasileiros em matéria de prestígio internacional. Desde a Rio-92, o Brasil tem se firmado como referência nessa área. Seu papel de destaque na elaboração de metas e métricas para acordos internacionais tem servido para compensar a imagem negativa criada pelo desmatamento na Amazônia. Os esforços para conter esse desmatamento também vinham sendo reconhecidos. Agora, o contrário se dá, com as múltiplas declarações de integrantes do governo Bolsonaro, incluindo o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, colocando em dúvida os compromissos com a preservação ambiental.
“Poder moderador”
No primeiro grande teste para as políticas externa e de defesa do novo governo, Araújo demonstrou o desejo de ver o Brasil forçar a entrada da ajuda humanitária na Venezuela. A ideia foi rejeitada pelos militares, que, assim como em outras áreas do governo, assumiram o papel de “poder moderador”. Bolsonaro reconheceu o presidente interino proclamado pela Assembleia Nacional, Juan Guaidó, e mobilizou o Exército brasileiro para colocar a ajuda humanitária disponível na fronteira, contra o desejo do governo de Nicolás Maduro. Entretanto, rejeitou, juntamente com os outros países da região, a ideia de uma intervenção militar na Venezuela, que os Estados Unidos e o próprio Guaidó insistem em manter entre “as opções sobre a mesa”.
Ao receber Guaidó em Brasília, Bolsonaro circunscreveu o engajamento brasileiro: “Nós não pouparemos esforços, dentro obviamente da legalidade, da nossa Constituição e de nossas tradições, para que a democracia seja restabelecida na Venezuela”. A declaração vai no sentido de retomar a linha do Itamaraty. Não é da tradição brasileira reconhecer um governo que não controla o território, mas mais de 50 países o fizeram, incluindo as principais potências europeias e vizinhos do Brasil. É preciso reconhecer que a situação venezuelana é atípica.
A intenção de se manter fiel às tradições da diplomacia brasileira precisa vir acompanhada do apoio institucional ao Itamaraty. É ele que tem a competência técnica para executar a política externa e as negociações comerciais. “Executar” é diferente de “conduzir”, e, obviamente, essa execução deve ser feita em coordenação com os ministérios da Economia, do Desenvolvimento, da Indústria e Comércio, da Agricultura, da Casa Civil e assim por diante, dependendo do setor envolvido nas negociações.
O instinto de Araújo, de trazer para funções de comando funcionários de fora da carreira diplomática, deve ser contido, como fizeram os militares na fronteira da Venezuela. As fronteiras, os limites, não são o tolhimento da liberdade. São as balizas da prudência, do discernimento e da responsabilidade. A política externa deve ser orientada pelos interesses nacionais e pelos valores da sociedade — não pelos caprichos dos governantes de turno.

É jornalista, diretor do Irice (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior), colunista do Estadão, comentarista da CBN, especialista em geopolítica e contemporaneidade da Latitudes Viagens de Conhecimento.

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