18 outubro 2012

Brasil, Paraguai e as Questões Regionais Recentes

A presença e a política regional do Brasil passaram por uma nova turbulência em junho passado, derivada do impeachment do então presidente paraguaio Fernando Lugo. Novamente, ocorreu um grande dissenso sobre as posturas internacionais do país, tanto dentro como fora do governo, e voltou-se a discutir a natureza do engajamento do Brasil na região.

A presença e a política regional do Brasil passaram por uma nova turbulência em junho passado, derivada do impeachment do então presidente paraguaio Fernando Lugo. Novamente, ocorreu um grande dissenso sobre as posturas internacionais do país, tanto dentro como fora do governo, e voltou-se a discutir a natureza do engajamento do Brasil na região.

Além dos fatos e avaliações específicas que cercaram o episódio, o debate avançou para questões relacionadas aos interesses estratégicos do Brasil na região, assim como a forma pela qual o país tem buscado persegui-los e se tem ou não logrado alcançá-los. Chamou a atenção a enorme falta de sintonia e de interação entre as elites políticas e econômicas do Brasil e do Paraguai, além do caráter rudimentar dos instrumentos utilizados para lidar com a crise.

O presente artigo se propõe a discutir os eventos recentes derivados do impeachment paraguaio, utilizando como referência o movimento mais amplo do Brasil frente à América do Sul. O pressuposto é que não é possível avaliar as posturas do Brasil frente ao ocorrido no Paraguai, do ponto de vista político e estratégico, sem analisar qual tem sido a dinâmica recente do país frente aos seus vizinhos e, em particular, frente ao próprio Paraguai.

A hipótese dessa análise é que a estratégia e as estruturas que moldam as relações regionais do Brasil não correspondem ao grau de relacionamento e, em alguns casos, de interdependência que o país tem com seus vizinhos, nem aos interesses de longo prazo do país. O Brasil dispõe de pouquíssimos instrumentos e de políticas efetivas (embora tenha uma miríade de acordos de mínima utilidade) para mediar suas relações com os vizinhos. Essa falta de instrumentos e de políticas é incompatível com a já alta, e ainda crescente, presença regional do Brasil. Essa presença ocorre tanto em terreno formal como informal, o que torna o despreparo do país para lidar com essa situação ainda mais dramático.

O adensamento das relações regionais deve prosseguir nas próximas décadas. O comércio regional cresce há 20 anos, o mesmo ocorrendo com os investimentos do Brasil nos países vizinhos. A malha aérea e as conexões terrestres regionais avançam continuamente. O turismo de negócio e de lazer, junto com o comércio de serviços de apoio a negócios e audiovisuais, seguem o mesmo rumo. Associações empresariais, ONGs, movimentos sociais e sindicais e a própria mídia mantêm vínculos regionais como nunca antes. Esse processo ganhou ainda mais intensidade nos últimos anos, com o crescimento econômico de todos os países da região. As mesmas razões que fomentaram o adensamento das relações econômicas e sociais também fomentaram as redes ilegais, tais como o contrabando, o tráfico de drogas e de armas e a lavagem de dinheiro.

Nesse contexto, é de se esperar que os custos e a complexidade para o Brasil para lidar com as questões regionais sejam também cada vez maiores, assim como a vulnerabilidade do país frente aos eventos regionais e o potencial de danos para os interesses brasileiros. As atitudes do Brasil frente ao impeachment de Fernando Lugo, no Paraguai, são mais um lance nesse jogo mais amplo.

A atual insuficiência das políticas e instrumentos do Brasil para lidar com as questões regionais não ocorre apenas porque a presença regional do país cresceu e se transformou. Ela ocorre também porque os países da região mudaram substancialmente. Todos os países da América do Sul concluíram seus processos de transição democrática dos anos 1970 e 1980 e vários deles ingressaram em uma nova fase política, em que os movimentos sociais e de esquerda passaram a ter peso político e eleitoral significativos. Todos os países da região experimentaram crescimento econômico expressivo e rearranjaram, pelo menos parcialmente, suas contas públicas, a ponto de esboçarem novas políticas e retomarem parte dos investimentos sociais e em infraestrutura.

Dessa forma, esse artigo começa pela discussão de algumas características da presença regional brasileira e introduz a ideia de que um ciclo de política regional se esgotou, em meado dos anos 2000, e não foi substituído de forma eficaz por outro. Após esse tópico, apresenta-se uma breve avaliação das relações Brasil – Paraguai. Em seguida, adentra-se no tema do impeachment do presidente Fernando Lugo. Ao final, tecem-se algumas conclusões sobre o episódio e suas consequências para a dinâmica regional e para o Brasil.

A visão do Brasil sobre a América do Sul

Nos últimos 20 anos, a importância da América do Sul para os interesses estratégicos do Brasil ampliou-se de forma significativa, em consonância com o crescimento sem precedentes da presença brasileira na região. Esse processo não foi acompanhado por um projeto bem-sucedido de integração econômica, nem de instrumentos efetivos de concertação política. Ele ocorreu em detrimento da existência de arranjos formais de fomento, regulamentação e proteção e, em consequência, ficou bastante exposto às intempéries políticas e econômicas dos países da região. Essa crescente exposição dos interesses do Brasil na região tem gerado custos cada vez mais altos de transação e, em cada crise, mostram a precariedade com que são tratados.

A agenda regional do país guarda relação com as percepções de parte da elite brasileira. Entre as dez maiores ameaças internacionais ao Brasil percebidas pela elite política brasileira, seis se relacionam com questões globais (aquecimento global, protecionismo comercial dos países ricos, armas nucleares, terrorismo internacional e desigualdade econômica), enquanto as outras quatro são de caráter regional (tráfico de drogas, governos autoritários na América do Sul, internacionalização da Amazônia, contrabando de armas). A mesma pesquisa que atestou isso também indicou os principais objetivos da política externa brasileira: defender a democracia na América do Sul, fortalecer a liderança regional do Brasil e fomentar a integração da infraestrutura da região. Ou seja, estabeleceu-se nos últimos anos um razoável consenso, no grupo de pessoas que acompanham os temas internacionais no Brasil, sobre a importância estratégica da América do Sul para o país.

Não obstante, a tradução dessa percepção para um projeto político sul-americano ainda é bastante precária. Essa precariedade se manifesta de várias maneiras, tanto no baixo apoio político doméstico para o engajamento regional do Brasil, como na baixa capacidade de o governo federal implementar programas e internalizar decisões oriundas dos fóruns e acordos de cunho regional.

Uma hipótese possível para explicar esse fenômeno é que prevalece no Brasil, ainda que de forma implícita, a preferência por um padrão de relação regional baseada na projeção das capacidades políticas e econômicas brasileiras e não por um padrão de integração ou cooperação regional.

Acordos e projetos mais robustos na região envolvendo o Brasil tendem a ocorrer em bases bilaterais, ou seja, derivadas de decisões governamentais e/ou privadas brasileiras, com apoio de agências governamentais e negociadas com atores públicos e/ou privados do país vizinho. Casos típicos nesse campo são: o acordo e a usina de Itaipu; acordo energético e o gasoduto Brasil-Bolívia, o sistema de pagamento em moedas locais entre o Banco Central do Brasil e o da Argentina, assim como os projetos financiados pelo BNDES na área de infraestrutura nos países da região. Apenas um grupo pequeno de acordos e programas são de fato regionais e efetivos, com governança compartilhada e mecanismo de funcionamento que afetam de maneira substancial as operações econômicas. Entre eles figuram o Acordo de Fortaleza no campo da aviação civil e o Regime Automobilístico do Mercosul. A constituição da CAF (Corporación Andina de Fomento) como banco sul-americano talvez tenha sido o movimento mais significativo dos últimos anos, nesse sentido.

De modo geral, no entanto, não houve esforço coordenado de convergência do conjunto do governo brasileiro. Como observado pela professora Maria Regina Soares de Lima, existe uma fraca coalizão doméstica em relação à aliança estratégica com a Argentina, em relação ao Mercosul e ao engajamento do Brasil na América do Sul. Segundo essa autora, após 20 anos, esse projeto não produziu políticas suficientes de integração.

No que tange aos acordos na esfera política, também prevalece na América do Sul um ambiente com características semelhantes às do econômico e comercial: uma rede de acordos sobrepostos, com objetivos, abrangência geográfica e institucionalidades bastante distintas. E, em geral, pouco relevantes. Alguns acordos de caráter bilateral e outros sub-regionais se somam a acordos continentais, latino-americanos e hemisféricos. O ex-ministro Celso Amorim (das Relações Exteriores), referindo-se especificamente aos acordos regionais, afirma que não se trata de uma estratégia de “círculos concêntricos”. Ele prefere entendê-los como “trêsníveis de integração”.

Como o Brasil atua na América do Sul

O envolvimento efetivo do Brasil em ações e programas regionais – além de acordos gerais e cartas de intenções – é possível apenas em algumas brechas políticas e institucionais. Essas brechas são definidas por espaços nos quais interesses específicos em temas de caráter regional não conflitem com políticas domésticas, nem exijam ajustes em políticas públicas ou padrões regulatórios brasileiros e, principalmente, não comprometam a capacidade decisória nacional.

Em consequência, nos últimos 20 anos, a atuação regional brasileira passou a apresentar as seguintes características:

I. Preferência por arranjos pouco institucionalizados e baseados em reuniões de cúpula, incluindo o próprio Mercosul;

II. Projetos com base na noção de “integração econômica rasa”, ou seja, com foco em questões comerciais, em detrimento de temas relacionados à integração produtiva, financeira e logística;

III. Integração rasa também no sentido de compromissos no campo microeconômico, como políticas industriais, tecnológicas, de crédito etc.;

IV. Predominância de programas de cooperação – e não de integração – em temas como aduanas, segurança, narcotráfico, políticas sociais etc.;

V. Iniciativas pontuais na área de integração em infraestrutura e energia, nas quais prevalecem as dinâmicas bilaterais em detrimento das regionais;

VI. Preferência por fortalecer as agências de crédito domésticas – particularmente o BNDES – em detrimento da criação de agências de caráter regional; e

VII. Crescente apoio político direto do governo às iniciativas privadas de investimentos diretos ou às aquisições de ativos produtivos na região, em detrimento da montagem de arranjos regionais de proteção e promoção de investimentos.

Dessa maneira, é possível identificar uma agenda regional de interesses do Brasil, mas que está longe de ser uma agenda integracionista e ampla. Na verdade, é uma agenda seletiva, focada na preservação da capacidade decisória doméstica e na manutenção dos instrumentos de fomento com caráter nacional, voltada para alavancar projetos e interesses brasileiros.
Pode-se dizer, portanto, que o Brasil não tem tido interesse e/ou sido capaz de liderar um projeto regional de desenvolvimento associado. Tal visão tem sido cada vez mais frequente entre os analistas dos países da região e cada vez mais permeia a percepção das lideranças políticas desses países. Os países da região seguem tendo interesse no Brasil como investidores e parceiros comerciais, mas não apostam no Brasil como um sócio estratégico de seus projetos de desenvolvimento. Tais países percebem que o engajamento brasileiro é precário, que sua agenda doméstica é francamente dominante em relação à agenda regional e que a margem para concessões está sempre limitada por algum interesse interno organizado.

Se, do ponto de vista econômico, o Brasil não oferece um projeto de interesse aos demais países da América do Sul, do ponto de vista político tem-se mostrado mais assertivo que seus competidores extra-regionais, com algumas exceções, em relação aos EUA. Nessa dimensão, embora o avanço institucional tenha sido pequeno – principalmente relativo à criação da Unasul – intensificaram-se de forma expressiva as reuniões e contatos entre os chefes de Estado da região, em grande parte fomentados pelo Brasil, cujo principal interesse nesse campo está vinculado à estabilidade política da região.

Contudo, esse movimento consistente do Brasil em favor de uma maior concertação política regional, e seu papel de interlocutor permanente na região, não têm reduzido a resistência dos países sul-americanos em reconhecer a liderança política regional brasileira e em apostar no país como garante da ordem política do subcontinente. Mesmo nessa dimensão, o Brasil tem navegado em águas turbulentas, como tem mostrado o histórico das relações com a Colômbia quanto aos temas do narcotráfico e da guerrilha, com a Bolívia e, mais recentemente, com o Paraguai.

Esse padrão brasileiro de atuação na região impõe aos países vizinhos um alto custo para lidar com o Brasil. Esse custo é particularmente alto para os países de menor desenvolvimento relativo e com maior assimetria política e econômica em relação ao Brasil. No caso do Paraguai e da Bolívia, soma-se a essas condições o fato de estarem encapsulados no centro do continente, sem saída para o mar.

O fator Paraguai: antes e depois de Lugo

A relação Brasil-Paraguai mantém o mesmo padrão há décadas. Depois de Itaipu, no final dos anos 1970, nenhum outro projeto relevante foi desenvolvido com o país vizinho. O PIB do Paraguai, hoje, é US$ 24 bilhões, ou seja, menos de 1% do PIB do Brasil.

O potencial de desenvolvimento que Itaipu permitiu não foi utilizado nem em favor do Paraguai nem em favor dos interesses brasileiros de gerar uma fronteira desenvolvida, estável e próspera. Ao contrário, o projeto de Itaipu foi utilizado basicamente como parte da solução para o problema energético do Brasil e virtualmente desperdiçado como instrumento de cooperação e indução do desenvolvimento paraguaio.

Assimetrias marcam relação Brasil-Paraguai

Antecipando um padrão que seria repetido em várias outras ocasiões, o Tratado de Itaipu é basicamente defensivo por parte do Brasil. Sua lógica foi a de maximizar garantias para que o Brasil pudesse usufruir a quase totalidade da energia produzida pela hidrelétrica. Não envolveu qualquer instrumento binacional e cooperativo de desenvolvimento associado. Itaipu é um claro exemplo de iniciativa regional, cuja predominância dos interesses domésticos virtualmente obscureceu qualquer utilização dela como um instrumento de fomento regional com potenciais ganhos de longo prazo por parte do Brasil. Itaipu tampouco serviu para fomentar a integração do sistema elétrico dos países. Ambos os sistemas seguem apartados, sendo Itaipu uma interconexão física.

A ausência de um projeto estruturado do Brasil em relação ao Paraguai não impediu que as relações entre os países seguissem se aprofundando e que a economia de fronteira se expandisse enormemente, aumentando o comércio, as trocas financeiras, a interpenetração produtiva e a imigração. Tudo isso nas modalidades legais e ilegais.

O convívio entre o Brasil e o Paraguai com regras econômicas e sociais bastante diversas, com enorme assimetria em termos de dinamismo, escala, padrão regulatório e tributário, e fronteiras cada vez mais permeáveis, moldou a dinâmica dominante entre esses países, nas ultimas décadas. Dada a ausência de projetos de integração ordenados pelos Estados, predominou largamente, nesse campo, a regionalização das relações econômicas e sociais existentes em cada lado da fronteira, com baixo nível de presença dos governos. Vários vetores se somaram para tanto.

A assimetria tributária entre os dois países gerou incentivos para que o Paraguai passasse a sediar empresas especializadas em aproveitar esse diferencial – por vias legais e ilegais. Esse diferencial é mais pronunciado nos setores mais fortemente regulados e tributados no Brasil, tais como produtos farmacêuticos, bebidas alcoólicas, cigarros e armas leves, e nos setores de alto valor agregado e baseado em marcas, tais como produtos eletrônicos, informática e brinquedos. A formação e consolidação dessas indústrias do lado paraguaio e o intenso comércio em direção ao Brasil não seriam possíveis sem a participação ativa de agentes econômicos do lado brasileiro. Ao contrário da percepção geral sobre esse fenômeno, ele não é fruto apenas da iniciativa do lado paraguaio e está profunda e intimamente articulado aos interesses de grupos econômicos sediados no Brasil.

Parte significativa dos insumos e dos produtos revendidos pelo Paraguai ao mercado brasileiro tem origem no Brasil. Como o Paraguai não dispõe de uma indústria diversificada capaz de fornecer componentes eletrônicos, produtos químicos, embalagens, aços e resinas especiais, esses produtos têm que ser importados, seja do Brasil seja de terceiros países. Dada a circunstância geográfica do Paraguai, mesmo os produtos importados precisam entrar pelos portos brasileiros e dependem da logística oferecida e controlada por grupos do Brasil. Como o destino final dessas mercadorias é o mercado brasileiro, elas dependem de canais amplos e capilarizados de distribuição que, por sua vez, são também controlados por grupo brasileiros. O mesmo ocorre com o lado financeiro dessa operação.

Ou seja, a ausência de projeto para reduzir e lidar com a enorme assimetria econômica, regulatória e tributária entre Brasil e Paraguai gerou uma modalidade de interação econômica entre esses países da pior espécie. Estima-se que o contrabando de produtos movimente cerca de US$ 2 bilhões ao ano, enquanto o comércio formal entre os dois países é de cerca de US$ 4 bilhões. Essa interação, antes de ser um problema paraguaio, é um problema principalmente brasileiro.

Outro vetor da relação Brasil-Paraguai derivado das enormes assimetrias refere-se à grande penetração das atividades do agronegócio conduzidas por brasileiros em solo paraguaio. Nesse caso, a assimetria ocorre tanto em relação às políticas de fomento ao agronegócio como ao dinamismo, escala e nível tecnológico desse setor no Brasil. A disponibilidade de crédito e seguro para plantio (principalmente Banco do Brasil), o acesso à assistência técnica e fitossanitária, os programas financiados de compra de equipamentos, máquinas e caminhões (principalmente Finame), além das linhas de crédito antecipado para exportações (as ACCs), permitem um avanço relativo da atividade agropecuária no Brasil quando comparada à do Paraguai.

Novamente, na ausência de um projeto para lidar com essa assimetria, surgem vários incentivos para que essa atividade se expanda em território paraguaio. Mais capitalizados e dispondo de tecnologia e equipamentos, inúmeros produtores brasileiros passaram a adquirir e produzir – formal e informalmente – do lado paraguaio, por vezes utilizando os incentivos do governo brasileiro. Após anos dessa prática, constituiu-se um contingente razoável de brasileiros e seus descendentes em solo paraguaio, mas em condições precárias relacionadas a visto de trabalho, cidadania, propriedade das terras e forma de interação comercial com o Brasil. A situação não formalizada dessas pessoas potencializa o já crítico tema de acesso à terra no Paraguai e abre margem para ações violentas. Estima-se que cerca de 400 mil pessoas estejam nessas condições.

Relação bilateral dominada por interesses locais

O peso da atração econômica brasileira fez com que, por exemplo, Ciudad del Leste tenha crescido mais do que os outros polos econômicos do país, fortalecendo os grupos de interesse lá localizados e aumentando sua influência na política local e nacional. O resultado dessa dinâmica é que a relação entre o Brasil e o Paraguai está cada vez mais capturada pelos interesses de grupos que atuam na região da fronteira nos dois países. Estes desenvolvem laços de lealdade entre si, estabelecem vínculos com as autoridades locais e as burocracias públicas que atuam na região e, crescentemente, se associam às redes de atividades ilegais. Um dos pré-candidatos do Partido Colorado às próximas eleições presidenciais é um dos maiores empresários paraguaios com atividades de produção e comércio ilegal de cigarros.

Esse padrão de relacionamento tem gerado um distanciamento entre as elites políticas, econômicas e intelectuais dos dois países. Na ausência de um projeto de Estado para lidar com essa extensa e problemática fronteira, a relação bilateral tem sido determinada pelos grupos de interesse locais – parte deles ilegais –, gerando riscos e custos para os dois países, mas, principalmente, para o Brasil. Esse ciclo vicioso restringe a possibilidade dos grupos sociais interessados de realizar um desenvolvimento qualificado e sustentável do Paraguai e é contrário aos interesses estratégicos do Brasil.

Nos últimos anos, tem crescido de forma expressiva outro vetor: o dos investimentos de empresas brasileiras no país vizinho. Além daqueles no campo da soja e de outros grãos, o setor de frigorífico já é majoritariamente controlado por grupos brasileiros, e caminham no mesmo sentido os investimentos no setor financeiro (principalmente o banco Itaú e o Banco do Brasil), além da enorme presença da Petrobras. Embora a presença ostensiva do capital brasileiro contenha riscos de fomentar sentimentos antibrasileiros no país, devendo, por isso, ser gerenciada com equilíbrio e discrição, abre espaço para uma convivência orgânica de grupos econômicos modernos do Brasil e do Paraguai, cujos resultados podem ser benéficos para a relação bilateral.

Um “Plano Marshall” para o Paraguai?

A eleição do presidente Fernando Lugo – o primeiro presidente fora da hegemonia do Partido Colorado – foi uma oportunidade perdida por parte do Brasil para inaugurar uma nova fase das relações bilaterais. Esse poderia ter sido um momento de afirmar – de forma categórica e concreta – o apoio e o interesse do Brasil no desenvolvimento estruturado do país vizinho e no fortalecimento de suas instituições democráticas. Como foi aventado em um seminário pouco tempo atrás, talvez coubesse ao Brasil desenhar “um Plano Marshall” para o Paraguai que, como o plano original, deveria ser fortemente atrelado a condicionalidades políticas e econômicas.

A relação do Brasil com o Paraguai é uma das faces mais evidentes da forma de engajamento do Brasil com a região. Nesse caso, tanto a assimetria entre os países como a relevância da agenda bilateral justificariam um investimento significativo no redesenho dessa parceria. Para isso o Brasil tem que se afastar de sua tradição de defender uma agenda minimalista, defensiva e reativa, voltada a gerenciar crises no curto prazo, e desenhar uma estratégia mais consistente de proteção aos interesses brasileiros de longo prazo, principalmente, estabilidade política, econômica e social na região. É evidente que isso não é possível com medidas de contenção nas fronteiras.

Se a assimetria em favor do Brasil, nesse caso, não for suficiente para o país exercer uma liderança positiva, concreta e efetiva, é muito pouco provável que o país seja capaz de liderar qualquer projeto significativo no resto da região.

O Brasil e o episódio do impeachment

Nesse contexto de fragilidade e improviso das relações com o Paraguai, é natural que o leque de opções do Brasil seja bastante limitado para lidar com situações como a ocorrida com o ex-presidente Fernando Lugo. Independentemente da resposta definida pelo governo brasileiro após o ocorrido, o Brasil e seus interesses estratégicos já haviam sido sobrepujados.

Tal qual o episódio de nacionalização das reservas e da exploração de petróleo na Bolívia em 2006 – que atingiu os ativos da Petrobras e que havia sido decidido um ano antes por meio de plebiscito –, a possibilidade de a oposição ao presidente Fernando Lugo utilizar o mecanismo do juízo político contra o chefe do Executivo vinha sendo mencionada desde o primeiro ano de seu mandato. Os dois episódios não comportam serem classificados de surpreendentes e inesperados. Ambos foram crônicas anunciadas.

Nos dois casos, chama a atenção a vulnerabilidade e a baixa capacidade de atuação preventiva do Brasil. Em ambas as situações, a capacidade de antecipação, o desenho de estratégias de mitigação de riscos, de negociação com os atores chaves e, principalmente, de garantia dos interesses estratégicos do país, foram precárias.

Desta perspectiva, o que está ocorrendo em relação ao Paraguai – e eventos subsequentes – tem sido um equívoco estratégico sem precedentes. O Brasil maculou suas credenciais de potência regional não agressiva e de mediador confiável que vinha construindo desde finais dos anos 1970. Não se trata de um problema formal ou mesmo de julgamento político. O problema é de natureza estratégica, pois diz respeito aos interesses essenciais do Brasil, no longo prazo, em relação à América do Sul.

Esse ciclo se iniciou com as avaliações equivocadas sobre o que ocorreu no Paraguai e sobre o papel que o Brasil e as instâncias regionais poderiam jogar em relação a ele. A fragilidade dos arranjos regionais, em particular no que tange ao tema democrático é, via de regra, de caráter geral, com destaque para o Protocolo de Ushuaia no âmbito do Mercosul – mas também se aplica ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia.

Com a aprovação e liderança do Brasil, esses arranjos tratam de “ruptura da ordem democrática” e não de formas específicas de estruturação e funcionamento dos regimes democráticos. Deliberadamente, evitam entrar em detalhes sobre o funcionamento institucional dos países membros. Dada a generalidade desses critérios, optou-se por fazer desse Protocolo um instrumento político – e não jurídico –, cuja base para as decisões é o entendimento entre os membros do acordo, e não uma apuração criteriosa do ocorrido. Não existe no Protocolo de Ushuaia definição sobre procedimentos específicos para a tomada de decisão, nem para a defesa do país tido como violador.

Ao optarem por essa modalidade de acordo, os países restringiram o espaço para os membros fazerem julgamentos sobre mecanismos específicos da ordem democrática dos demais países. A decisão de uso das sanções previstas no Protocolo de Ushuaia ou no Tratado da Unasul ocorre apenas em função de uma ruptura clara da ordem. Clara o suficiente para dispensar qualquer procedimento de apuração ou defesa por parte do país acusado da ruptura.

A inexistência de uso da força, de qualquer tipo de ameaça por parte dos militares ou de outro agrupamento armado, de alteração na constituição e nas leis vigentes do país, assim como o conhecimento prévio do presidente e seu grupo de apoio parlamentar do mecanismo de juízo político, e a aceitação pacífica das votações do parlamento pelo impeachment do presidente Lugo deixam poucas evidências de que tenha ocorrido uma ruptura na ordem democrática no Paraguai. Ainda mais se utilizando as referências genéricas à ruptura da ordem democrática incluídas nos acordos do Mercosul e da Unasul.

Não cabe julgar questões jurídicas internas do Paraguai

Para os objetivos pretendidos neste artigo, trata-se de utilizar os instrumentos e critérios de análise no campo das Relações Internacionais, e não da Teoria Política ou da Teoria do Direito. Trata-se de entender a natureza e os limites do Protocolo de Ushuaia e do Tratado da Guiana, assim como as consequências de sua utilização, e não de analisar a pertinência ou não do mecanismo de juízo político – previsto no artigo 225 da Constituição paraguaia. Análises sobre a forma de funcionamento das instituições políticas do Paraguai, assim como de outros países da região, são necessárias e relevantes. Mas elas nada têm a ver com a discussão sobre a aplicabilidade ou não de tratados e protocolos internacionais. A confusão entre esses dois níveis de análise tem feito com que alguns argumentos em relação ao ocorrido no Paraguai saiam do campo dos compromissos assumidos pelos países em relação ao tema democracia, para julgamentos sobre aspectos específicos da ordem jurídica interna dos países membros, não prevista nem no Protocolo de Ushuaia, nem no Tratado da Unasul.

Aliás, pelo Tratado da Guiana, um chefe de Estado que julgue estar sendo ameaçado por algum tipo de ruptura institucional tem o direito de reportar à Cúpula da Unasul e solicitar medidas de garantias. O presidente Lugo, mesmo sabendo que parte da oposição estava mobilizada para utilizar o mecanismo do juízo político, não utilizou essa prerrogativa.

O dispositivo do Julgamento Político previsto na constituição (Art. 225) do Paraguai é claro e racional. Ele não esta lá nem por “entulho” dos 35 anos de autoritarismo, nem por ignorância jurídica dos nossos vizinhos. Essa cláusula é fruto de intenção deliberada, após décadas de ditadura, de reequilibrar os poderes em favor do Legislativo. É, obviamente, um instrumento típico dos regimes parlamentaristas – no qual a base de escolha do Legislativo é a mesma do Executivo – e não dos regimes presidencialistas. Essa cláusula não especifica critérios objetivos para iniciar o processo, pois, afinal, ela é claramente de caráter político e não jurídico. A rigor, não é julgamento, mas sim uma votação de maiorias qualificadas – pelo menos 2/3 em cada casa legislativa.

Existem outros mecanismos – até mais eficientes – de restringir excessos do poder Executivo, assim como existem outros entendimentos sobre o que deve ou não ser um processo de impedimento do presidente. Porém, isso não altera o fato de que o mecanismo do Juízo Político tenha sido proposto e aprovado, soberanamente, pela Constituinte paraguaia e que ele não infringe nenhuma cláusula de acordo internacional assinado pelo Paraguai.

Em decorrência, não cabe a nenhum país da região questionar as bases legais desse instrumento. O então presidente Fernando Lugo, seus partidários e advogados, que conhecem esse dispositivo, aceitaram-no e se retiraram de cena, devendo se preparar para as próximas eleições, como um partido político deve fazer. A suprema corte do país, em pleno funcionamento e com a mesma conformação que tinha antes do impedimento de Fernando Lugo, analisou o caso e ratificou a legalidade do procedimento.

Diante dessa sequência de fatos ocorridos no Paraguai, e diante da natureza do Protocolo de Ushuaia e do Tratado da Guiana, não cabe a nenhum país da região questionar artigos da Constituição paraguaia, votações ocorridas na Câmara e no Senado, nem o julgamento da matéria, realizado na suprema corte do país vizinho.

A generalidade do Protocolo de Ushuaia – decisão deliberada dos países da região, e bastante alinhada com as preferências do Brasil em matéria de acordos regionais – não fornece elementos para a decisão de suspender o Paraguai do Mercosul. O mesmo vale para a Unasul. Os membros desses acordos extrapolaram suas funções e atribuições, ainda que o tenham feito em nome de uma causa nobre.

Como instrumentos políticos e que funcionam com base em decisões unânimes, a condenação do Paraguai, tanto no Mercosul como na Unasul, abre um precedente bastante questionável sobre a forma de a região lidar com o tema da democracia. Essa forma maleável e imprecisa de utilizar esses mecanismos é particularmente sensível para os pequenos países da região, ao mesmo tempo em que é pouco aplicável para países grandes.

Mas, o custo político de afastar temporariamente o Paraguai das instâncias decisórias do Mercosul e da Unasul por critérios duvidosos não seria tão grande se ele não tivesse sido acompanhado por outro, ainda mais controverso, como foi a aprovação da entrada da Venezuela no Mercosul, pelo mesmo fórum que afastou o Paraguai, sem a anuência deste. Associou-se, assim, a uma decisão temerária – e precária – a outra decisão, de caráter estratégico – pois tratava da entrada de um novo membro no principal bloco econômico da região.

Situação pouco clara, como foi o caso do julgamento da existência ou não de ruptura democrática no Paraguai, ao ser misturada à decisão da entrada da Venezuela no Mercosul produziu um efeito político sem precedentes na região em arranjos dos quais o Brasil é o principal ator.

Mesmo que equivocado, e fruto de um entendimento político controverso sobre o ocorrido no Paraguai, o afastamento desse país do Mercosul gerou um custo relativamente pequeno tanto para o Paraguai como para os demais membros do bloco. Afinal, fruto ou não de uma avaliação equivocada, a sanção tinha data relativamente breve para findar: abril de 2013. Teria gerado danos, mas em uma proporção aceitável e não tão danosa às relações regionais e, em particular, ao papel do Brasil.

Contudo, o equívoco político dessa decisão foi exponencialmente ampliado pela decisão de aprovar a entrada da Venezuela no Mercosul à revelia do Paraguai. Embora, do ponto de vista estratégico e da forma pela qual o Brasil opera na América do Sul, seja plenamente justificável a entrada da Venezuela no bloco, o custo em fazê-lo dessa maneira foi muito elevado para o país. A aceitação por parte do Brasil de que a entrada da Venezuela ocorre de maneira tão oportunista, tão frágil juridicamente e em franco desafio ao espírito das decisões consensuadas do bloco, irá afetar a já frágil presença política na região, tendo emitido um sinal, em particular aos vizinhos de menor porte. Embora tenha sido uma decisão de instâncias regionais, a posição de preponderância do Brasil nesses blocos, em particular no Mercosul, fará com que todo o custo da decisão seja carreado para o lado do nosso país.

Longa batalha política e jurídica

Até o momento, como vimos na parte inicial deste artigo, a principal fragilidade do Brasil na região era a estratégia da omissão e do minimalismo de seus compromissos regionais. Pela primeira vez, a fragilidade do Brasil foi de oportunismo político, desrespeito ao espírito equilibrado e comedido com que lida com os temas políticos regionais.

Além de implicar um grande custo político, na medida em que abala a imagem do Brasil como interlocutor regional confiável, em particular para os pequenos países, é duvidoso que a entrada da Venezuela no Mercosul desta maneira tenha validade e consistência jurídica. Como não existe previsão nos tratados constitutivos do Mercosul sobre admissão de novo membro sem a ratificação pelo parlamento de um país em suspensão temporária do bloco, é previsível uma longa batalha política e jurídica em torno dessa questão. Diante do padrão brasileiro de lidar com os temas regionais, é difícil entender o cálculo político por trás dessa decisão. Além do custo da decisão, já elevado, o Brasil avalizou-a sem ter certeza de que ela seria passível de ser consumada. Ao forçar um decisão sem condições garantidas de implementá-la, o Brasil corre, agora, o risco de tê-la inviabilizado, ou de ter aumentado ainda mais os custos de efetivar a entrada definitiva da Venezuela no bloco.

O Senado paraguaio, sabendo dessa fragilidade, apressou-se em reprovar a entrada da Venezuela no Mercosul, já indicando que está disposto a aumentar os custos políticos das decisões tomadas para o Brasil e para os demais países.

Conclusões

O aumento da presença do país na América do Sul, nos últimos anos, parece ter ocorrido independentemente do avanço dos projetos e acordos de cunho integracionista na região. A regionalização – aumento das relações regionais não derivadas de políticas e acordos entre Estados – indica ter avançado mais rápida e profundamente do que o da integração regional – este sim, induzido, coordenado e negociado entre Estados.

O Brasil não logrou sofisticar suas estratégias e estruturar mecanismos de regulação e mediação para lidar de maneira consistente com a extensão de sua presença na América do Sul. O padrão que tem mantido na atuação regional é de um engajamento com baixa institucionalidade, baixa convergência regulatória, baixa interação entre as elites políticas e econômicas. Mas, ao mesmo tempo – e o Paraguai é um exemplo disso –, o país amplia os espaços de interdependência, aumenta seu leque de interesses e multiplica sua vulnerabilidade na região.

A sequência de eventos após o impedimento de Fernando Lugo no Paraguai, envolvendo o Brasil e seus vizinhos sul-americanos, deve ser analisada de uma perspectiva dos interesses estratégicos do Brasil e de sua tradução para o espaço regional. O balanço desses acontecimentos é amplamente negativo para o Brasil. O despreparo do Brasil para lidar com situações de instabilidade política na região, antes que ela avance para situações de crise, e a forma como operou seu interesse de ampliação do Mercosul, indicam uma fragilidade do país para estruturar um espaço regional estável, equilibrado e avançado economicamente.

Ao forçar uma interpretação de ruptura da ordem democrática no episódio do Paraguai e associá-la à controversa – e frágil – aprovação da entrada da Venezuela no Mercosul, à revelia do país temporariamente suspenso dele, o Brasil expôs-se excessivamente e maculou sua imagem de sobriedade na condução dos temas regionais politicamente sensíveis. Irá pagar sozinho os custos dessa sequência de decisões e irá prejudicar seus interesses estratégicos na região.
O Brasil não passou no teste da antecipação e gestão da crise paraguaia. Portanto, é provável que não esteja estruturado para lidar com temas e países mais robustos no espaço sul-americano, embora este esteja no centro dos interesses estratégicos do país.


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