Carne bovina em tempos de mudança: sustentabilidade e liderança global
O Brasil vive um novo tempo nas relações internacionais. Diante das incertezas geopolíticas, das crescentes exigências ambientais e das mudanças nas dinâmicas comerciais, a cadeia da carne bovina brasileira se consolida como referência de confiança, resiliência e capacidade de adaptação.
À frente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), tenho acompanhado de perto esse processo de evolução. Nossa missão vai muito além de embarcar proteína animal. Representamos um setor que gera desenvolvimento, alimenta bilhões e se reinventa constantemente para atender às exigências de um mundo cada vez mais criterioso.
No último ano, batemos recordes de produção e exportação. Foram 2,89 milhões de toneladas embarcadas, com receita de 12,8 bilhões de dólares. A carne bovina brasileira chegou a 157 mercados, colocando o país na liderança mundial e respondendo por mais de 21% da carne comercializada internacionalmente. Ou seja, de cada cinco quilos de carne exportada no mundo, pelo menos um tem origem brasileira. O desempenho é resultado da combinação entre produtividade crescente, ganhos sanitários, eficiência industrial e compromisso com práticas sustentáveis.
Em paralelo ao sucesso nos embarques, o mercado interno absorveu cerca de 70% da produção total. Essa dinâmica comprova a robustez de um sistema que alimenta os brasileiros e sustenta a balança comercial do país. O sistema agroindustrial da carne bovina movimentou em 2024 o equivalente a 8,4% do PIB nacional. Com um rebanho estimado em 194 milhões de cabeças, o Brasil manteve a posição de maior rebanho comercial do mundo e segundo maior produtor mundial.
O setor também atingiu sua maior eficiência histórica. A produtividade média ultrapassou 4,9 arrobas por hectare por ano. O confinamento superou 8,8 milhões de cabeças, com quase 19% dos abates ocorrendo nesse modelo. Avançamos em tecnologia, genética e gestão. E fizemos isso reduzindo a área de pastagens em 11% nas últimas duas décadas. A intensificação da produção tem mostrado que é possível preservar sem renunciar à competitividade.
Mas os desafios estão mudando. O mercado exige mais do que escala e custo. Quer saber de onde vem o produto, como foi criado, se respeitou o meio ambiente e os direitos humanos. O Brasil entendeu esse recado. Programas como o Plano ABC+, o Protocolo Boi na Linha, o Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas, a Plataforma AgroBrasil+Sustentável e o recém-implementado Plano Nacional de Rastreabilidade Individualizada Bovina são provas concretas de que o país tem caminhado com seriedade na construção de uma pecuária de baixo carbono, rastreável e transparente.
Status sanitário é estratégia
A rastreabilidade ganhou protagonismo. A União Europeia passou a exigir comprovação de que os produtos agrícolas importados não estejam associados ao desmatamento. Essa nova lógica regulatória afeta diretamente o setor. O Brasil, com mais de 2 milhões de propriedades rurais, muitas delas de pequeno porte, enfrenta uma missão complexa, mas também uma chance única de liderar a construção de modelos tropicais de rastreabilidade e inclusão produtiva. Esse caminho exige tecnologia, inteligência de dados, articulação interinstitucional e investimentos consistentes.
A consolidação do status sanitário também é estratégica. O Brasil foi reconhecido oficialmente em maio deste ano como país livre de febre aftosa sem vacinação. Um marco que abrirá novas oportunidades comerciais e aumentará a confiança global no nosso sistema de defesa agropecuária. Esse avanço é fruto de décadas de trabalho conjunto entre produtores, indústria e o poder público. O abate sob Serviço de Inspeção Federal atingiu 64% da produção em 2024, com plantas em todas as regiões do país. Esse controle rigoroso é um diferencial que precisa ser mantido e valorizado.
É importante lembrar que a carne bovina brasileira não é apenas segura. Ela é também uma das mais sustentáveis entre as grandes exportadoras. Emissões por quilo produzido caem progressivamente com o avanço da precocidade, da genética e do manejo de precisão. A redução da idade de abate e o rejuvenescimento do rebanho contribuem para um ciclo produtivo mais curto e com menor pegada de carbono. Além disso, práticas de integração lavoura-pecuária e recuperação de pastagens vêm crescendo, diminuindo a pressão por novas áreas e contribuindo para a regeneração ambiental.
A estratégia de internacionalização do setor também evoluiu. Neste primeiro semestre, inauguramos um novo escritório da ABIEC em Pequim, na China. A iniciativa fortalece nossa presença na Ásia, região que representa mais de 60% da demanda global por carne. Também iniciamos um circuito de ações em cidades do interior da China, levando a marca Brazilian Beef para novos públicos e consolidando parcerias institucionais. A promoção internacional precisa ser contínua, estruturada e baseada em dados. Não se trata apenas de participar de feiras. É preciso contar fatos, mostrar rastreabilidade, comprovar sustentabilidade.
Nosso compromisso é com a ciência, o diálogo e a legalidade. A pecuária brasileira é diversa. Envolve grandes grupos exportadores, pequenos pecuaristas familiares, cooperativas, startups de tecnologia e milhares de trabalhadores que movem essa cadeia todos os dias. Essa complexidade exige políticas públicas inteligentes, linhas de crédito verdes, capacitação técnica e sistemas de governança eficazes.
A ABIEC tem sido parte fundamental desse processo. Atuamos na articulação técnica com órgãos reguladores, na defesa de interesses comerciais do setor, na promoção da imagem do produto brasileiro e na produção de dados estratégicos que orientam políticas públicas e decisões empresariais. Nossa atuação vai da certificação sanitária à rastreabilidade, do diálogo com governos estrangeiros ao apoio técnico aos frigoríficos.
Recentemente, ampliamos os investimentos em inteligência regulatória e em estratégias de antecipação de riscos. Monitoramos novas diretrizes da União Europeia, mudanças nos padrões asiáticos de consumo e políticas emergentes de carbono zero. Buscamos também harmonizar critérios de rastreabilidade no mercado internacional, defendendo modelos viáveis para os produtores brasileiros, especialmente os de menor escala. O objetivo é assegurar que a transição verde seja também uma oportunidade de inclusão e valorização da produção tropical.
Futuro construído com ciência
O Brasil possui uma base tecnológica robusta para dar esse salto. Sistemas como o SISBOV, plataformas de integração como o CAR e ferramentas de controle de fornecedores já permitem avanços concretos. No entanto, é necessário unificar as iniciativas, garantir interoperabilidade entre bases públicas e privadas e assegurar segurança jurídica para todos os elos da cadeia. O investimento em transparência, digitalização e auditorias independentes é chave para ganhar credibilidade junto aos mercados mais exigentes.
O fortalecimento da pecuária também requer políticas industriais voltadas ao agro. Isso inclui crédito para modernização dos frigoríficos, programas de capacitação em ESG, incentivos à inovação e estabilidade regulatória. A previsibilidade das regras é essencial para atrair investimentos e garantir competitividade no cenário internacional.
Outro ponto essencial é ampliar os acordos comerciais. O Brasil tem avançado nas negociações de acesso a mercados, mas precisa acelerar a abertura de novos canais e consolidar os existentes. Acordos bilaterais e multilaterais podem permitir maior previsibilidade e preferências tarifárias. A diplomacia comercial, articulada com dados técnicos e confiança institucional, é uma das principais ferramentas à nossa disposição. A experiência recente com países como Indonésia, México, Filipinas e Vietnã mostra que há espaço para ampliar a presença brasileira de forma estratégica.
O diferencial brasileiro está na capacidade de produzir em grande escala, com qualidade e de forma sustentável nos trópicos. Somos um país que protege mais de 65% de sua vegetação nativa, que produz proteína com baixa emissão relativa de carbono e que possui o maior código florestal do planeta. São conquistas que precisam ser valorizadas, comunicadas e defendidas com firmeza no cenário global.
A carne brasileira também representa um vetor de desenvolvimento para o interior do país. Municípios de pequeno e médio portes têm na pecuária sua principal fonte de arrecadação e empregos. Em muitos desses territórios, a atividade representa a conexão direta entre o campo e a cidadania. Apoiar esse produtor é fortalecer a economia local, reduzir desigualdades e ampliar oportunidades em regiões que historicamente enfrentam gargalos de infraestrutura, crédito e assistência técnica.
O papel da ciência é decisivo. O futuro da carne brasileira depende de conhecimento aplicado, inovação tecnológica e redes colaborativas. Instituições como a Embrapa, universidades e centros de excelência têm gerado soluções concretas para os desafios de produtividade, sustentabilidade e sanidade. Esses avanços precisam chegar com mais rapidez ao campo e à indústria. Um país que quer ser referência mundial em alimentos precisa ser também uma potência em pesquisa agropecuária.
O Brasil tem uma contribuição estratégica para a segurança alimentar global. Com sua capacidade de produzir em larga escala, respeitando o meio ambiente e ampliando a oferta de alimentos de qualidade, o país assume um papel de liderança diante de um planeta que busca soluções sustentáveis. A carne brasileira será parte da resposta aos desafios do futuro. E esse futuro será construído com ciência, cooperação e um firme compromisso com o bem comum.
O mundo mudou e continua mudando. O Brasil, com sua história, seu território e seu capital humano, tem todas as condições de liderar esse novo ciclo. A carne bovina brasileira, quando bem apresentada, sustentada por dados e conectada a uma narrativa de futuro, será sempre bem recebida, porque ela representa algo maior do que um alimento. Representa o esforço de milhões de brasileiros que acreditam que é possível alimentar o mundo preservando, inovando e incluindo.
Referência:
•ABIEC – Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes. Beef Report 2024 – Perfil da Pecuária no Brasil. São Paulo: ABIEC, 2025. Disponível em: https://www.abiec.com.br
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