05 abril 2019

Cem Dias de um Governo Conturbado

É impossível tipificar o governo Bolsonaro. O discurso errático, muitas vezes beirando o nonsense, prevalente nos primeiros cem dias de mandato, não permite definições específicas para o conjunto, talvez porque não haja mesmo um conjunto. Muitos pronunciamentos e iniciativas alinham-se com uma ideologia identificada com a extrema-direita, de cunho essencialmente nacionalista e populista, mas também passeiam pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, ideais liberalizantes assentados nos princípios da globalização que derrubou as fronteiras comerciais e financeiras a partir da década de 1980.

É impossível tipificar o governo Bolsonaro. O discurso errático, muitas vezes beirando o nonsense, prevalente nos primeiros cem dias de mandato, não permite definições específicas para o conjunto, talvez porque não haja mesmo um conjunto. Muitos pronunciamentos e iniciativas alinham-se com uma ideologia identificada com a extrema-direita, de cunho essencialmente nacionalista e populista, mas também passeiam pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, ideais liberalizantes assentados nos princípios da globalização que derrubou as fronteiras comerciais e financeiras a partir da década de 1980.
Conciliar vertentes de pensamento tão distantes é, por si, algo de difícil resolução, pior ainda quando as propostas da ala direitista estão assentadas em dogmas inescrutáveis de uma “teoria” conspiratória, conhecida por marxismo cultural ou globalismo, que vê esquerdistas e comunistas infiltrados nas mais diversas instituições cujo único objetivo seria minar os valores cristãos que moldaram a formação da cultura ocidental.
Tangenciando a questão ideológica, existe o clã dos Bolsonaro. Formam um tipo de oligarquia diferente das que existiam até então no Brasil, movidas à base da troca de favores com o eleitorado, fenômeno que ainda persiste em alguns redutos rurais do Nordeste e em núcleos da periferia pobre das cidades de porte médio.
Urbanos, identificados com as características da segunda maior cidade do país, cuja imagem está hoje mais associada à força das milícias, à violência e à influência evangélica na política do que à modernidade que lhe deu fama nos anos 1950 e 1960, os Bolsonaro tornaram-se uma força a nível nacional ao mesmo tempo em que o longevo clã dos Sarney praticamente desaparecia do cenário político.
Bolsonaro elegeu-se presidente da República pelo PSL, um partido sem maior expressividade, com 55,13% dos votos válidos, menos do que previam alguns institutos de pesquisa, mas não há dúvida de que foi uma significativa vitória sobre o PT. O presidente tem, portanto, plena legitimidade para exercer a função. Junto com ele, os filhos também galgaram importantes postos nas hostes da República, garantindo cadeiras no Senado Federal, na Câmara Federal e na Assembleia estadual. No entanto, apesar de serem vinculados pelo voto ao poder Legislativo, os descendentes do presidente gostam de atuar no espaço reservado ao poder Executivo. Não raro, passam a sensação de prepotência.
A configuração é inédita mesmo para os padrões históricos da política brasileira e, como se fosse algo normal, funciona com desenvoltura, revelando as inconsistências, o amadorismo, a inexperiência política e a absoluta ausência de bom senso que assombram o mundo e boa parte dos brasileiros. Os filhos têm o poder de derrubar ministros, do mesmo modo como influenciaram na indicação dos ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, além de alguns importantes nomes para cargos do segundo escalão em Brasília.
Uma outra peculiaridade é a presença maciça de militares em postos chaves da Esplanada, que desta vez chegaram ao poder de forma democrática. Formam um bloco com expressiva força de influência. A figura maior do grupo é, sem dúvida, a do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, eleito pela chapa do PSL, com a mesma quantidade de votos de Bolsonaro.
Em meio à luta ideológica que marcou o início do atual governo, os militares têm desempenhado papel moderador fundamental, fazendo contraponto pragmático às ideias e opiniões sem pé nem cabeça que tomaram conta de alguns redutos da administração federal. Objetivamente, do ponto de vista de bagagem intelectual e de experiência de comando, não há dúvida de que os militares de alta patente estão muito mais preparados para enxergar as possíveis frentes de conflito com potencial de estragos, dentro e fora do país, do que os ideólogos extremistas de direita e o clã dos Bolsonaro.
Os generais têm ajudado o presidente a governar, tentando puxar a linha para a direção da sensatez. E, aqui, deve-se chamar a atenção para um aspecto no mínimo delicado. Ainda que induzido pelas vias do processo eleitoral e por escolha do próprio presidente, a composição militar do primeiro escalão do Poder Executivo implica inversão da hierarquia vigente nas Forças Armadas, uma vez que militares da mais alta patente estão formalmente submetidos às ordens de um capitão. Nada indica, até aqui, que a questão hierárquica militar venha a criar problemas para o funcionamento da hierarquia administrativa do executivo federal. É uma curiosidade, no entanto, a ser destacada.
Ignorância política, cultural e histórica
Cem dias não é muito, mas é tempo suficiente para perceber que à ideologia canhestra da direita radical, que busca ocupar espaço contra o marxismo cultural, somam-se pitadas de vingança e alta dose de ignorância política, cultural e histórica, em especial em áreas tão sensíveis quanto a das relações exteriores, da educação e do meio ambiente.
No Ministério da Educação, ficou claro à ala pragmática do governo que seria impossível deixar a administração de postos chaves à mercê das influências do jornalista Olavo de Carvalho, metido a guru filosofante, aquele que mora nos Estados Unidos, pede dinheiro aos brasileiros através da internet para a própria sustentação e vocifera palavrões em meio à defesa de ideias anacrônicas.
Sob a influência do chamado “olavismo” e, em nome da cruzada contra o marxismo cultural, tudo o que se fez nos primeiros cem dias de governo foi lançar ideias vagas em um arremedo de projeto para a educação que toma por básico o fervor ao patriotismo, a rigidez na disciplina, a homofobia e o repúdio à influência ideológica nas salas de aula, qualquer que seja o significado disto. Tudo culminando, no início de março, com uma ameaça de “caça às bruxas”, defendida pelo próprio presidente Bolsonaro, ao anunciar que a Lava Jato da educação estava a caminho. Nenhuma proposta educacional séria e consequente foi até agora apresentada.
Na percepção do Ministro da Educação, os alunos parecem ter importância apenas como modelos fotográficos a serviço da divulgação dos slogans de propaganda do governo federal. Muitos de seus assessores, tidos como “discípulos” – ou seja, meros participantes ou ouvintes de cursos à distância ministrados pelo jornalista Olavo de Carvalho – foram defenestrados de suas funções depois do Carnaval. Poupou-se, na ocasião, o ministro.
Colocou-se à prova, ali, a força do general Hamilton Mourão que vinha sendo desafiado de forma audaciosa por Carvalho. Este, na verdade, não tem nada a temer. Ganhou muitos minutos de fama nos primeiros meses do governo, aproveitando-se da visibilidade estimulada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, o elo da família com os adeptos, no exterior, da corrente que defende a disseminação do populismo de direita pelo mundo. O fantasma de Olavo Carvalho tende a desaparecer da vida pública nacional, mas os estragos da sua influência talvez não desapareçam assim tão facilmente.
É no Itamaraty, onde as idiossincrasias podem ter efeitos para além das fronteiras do país, onde se concentra a maior preocupação pelo alinhamento do ministro Ernesto Araújo à teoria conspiratória que aponta como inimigos de primeira hora a globalização, o multiculturalismo, as zonas de união aduaneira e tudo o mais que tem orientado o funcionamento do mundo no Ocidente a partir da queda do muro de Berlim.
Diplomatas que não estejam alinhados com a “filosofia” do antiglobalismo ou antimarxismo cultural são afastados de seus cargos. Invasões a territórios externos (como chegou a ser aventado com respeito à Venezuela) são admitidas em total dissonância com a linha tradicional das relações internacionais brasileiras de não interferência em assuntos internos de outros países. Araújo parece defender a política de que aos amigos (alinhados com o populismo de direita), tudo, aos inimigos (relacionados às políticas liberais de direita ou de esquerda), o desprezo. Isso vale não apenas para as relações com outros países, mas, principalmente, dentro da própria seara da diplomacia brasileira.
Além disso, ao pautar-se pela orientação de que o relacionamento internacional do Brasil deve privilegiar os governos identificados com a direita mais radical, Araújo compromete anos de tradição das relações externas brasileiras que sempre observaram a supremacia dos estados sobre os governos.
Alinhamento com a corrente de extrema direita
Os Estados Unidos não são o governo Donald Trump, e sim um estado soberano que está sendo governado, temporariamente, por um presidente do partido republicano chamado Donald Trump. Do mesmo modo, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não pode ser confundido com o estado de Israel e nem o primeiro-ministro Viktor Orbán com o estado húngaro. Por acaso, os dois primeiros líderes políticos estão sob investigação em seus respectivos países, não se sabendo quanto tempo conseguirão sustentar-se no poder. Com relação a Netanyahu, a dúvida tem a ver com a perspectiva de seu partido, o Likud, vencer as eleições antecipadas para 9 de abril.
Já com respeito a Orbán, líder do Fidsz, partido populista de direita, não se vislumbra que deixe o governo tão cedo, uma vez que tem manobrado o judiciário para permanecer indefinidamente no cargo, à semelhança do que fez Maduro na Venezuela. Mas, como este, nem a liderança política de Orbán e nem o seu regime autoritário vão durar para sempre na Hungria.
São constatações banais que aparentemente não fazem parte do radar do ministro Araújo, um árduo simpatizante das articulações do grupo político que pretende fortalecer o populismo de extrema direita no mundo, liderado pelo ex-assessor de Trump, o jornalista e ex-financista Steve Bannon, que aliás, organizou, em sua residência, uma recepção para Bolsonaro e a comitiva brasileira na primeira viagem oficial feita pelo presidente aos Estados Unidos.
Vale, aqui, chamar atenção para um ponto cuja importância tem passado desapercebida por alguns influentes formadores de opinião no país, notadamente alguns economistas que têm manifestado preocupação com o pensamento ortodoxo do ministro da economia, Paulo Guedes.
O que está aparentemente em jogo, com consequências que podem ser cruciais para o país, é o alinhamento do governo Bolsonaro com a corrente de extrema direita que tem crescido sob a articulação de Bannon e de outros líderes políticos, sobretudo na Europa, mas que não é nova. O movimento tem se identificado com partidos e agremiações de viés nazifascista na Bélgica, na Holanda, na Itália e mesmo em países escandinavos. Muitos simpatizantes da extrema direita na Europa têm sido visitados por Bannon e seus parceiros de projeto. Em parceria com o político belga de extrema direita, Mischael Modrikamen, criou em Bruxelas a fundação The Movement (O Movimento) com o objetivo mais imediato de influenciar as eleições de maio próximo para o parlamento europeu, apoiando candidatos identificados com o nacional populismo de direita.
Não houve até aqui, em verdade, muita simpatia à influência de Bannon por parte dos partidos de direita já estabelecidos há algum tempo na Europa, como o de Marine Le Pen, na França, e mesmo o Fidsz, de Viktor Orbán, na Hungria. Há suspeitas sobre os verdadeiros interesses do ex-assessor de Trump, visto por alguns como um norte-americano aventureiro.
Mas, Bannon parece que mira o médio e o longo prazos. É o que ele indica com o projeto de criar nas instalações do antigo mosteiro de Trisulti, no alto de uma montanha, a 130 quilômetros de Roma, uma espécie de centro de estudos voltado para o populismo e o pensamento da direita radical com o objetivo de disseminar aquela corrente política pelo Ocidente. Seria uma espécie de centro oposto à Escola de Frankfurt, como ficou conhecido o grupo de estudiosos, filósofos e cientistas sociais e políticos, associados ao Instituto de Pesquisa Social, formado em 1923 junto à Universidade Goethe Frankfurt. Faziam parte da Escola, entre outros, Theodor Adorno, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Max Horkheimer e, como colaborador, Walter Benjamin.
A Escola de Frankfurt dedicou-se aos estudos dos trabalhos de Marx, a partir de uma visão crítica sobre os motivos que impossibilitaram a expansão do marxismo para além da União Soviética após o fim da Primeira Grande Guerra. Preconizou que seria necessário juntar os pensamentos de Marx e de Freud para melhor entender, do ponto de vista comportamental e cultural, as barreiras ao socialismo no Ocidente. Isso explica porque, além de filósofos e cientistas políticos, a Escola de Frankfurt também tinha psicanalistas em seu corpo de estudiosos.
Em verdade, aqueles eram temas que já haviam sido levantados pelo húngaro Gyorgy Lukács, criador do termo “marxismo ocidental”. Lukács chamou a atenção para a importância da cultura, da consciência de classe e da subjetividade da estrutura social como forma de melhor entender a sociedade com vistas às perspectivas de implementação das mudanças sociais.
Aquelas eram ideias que circulavam principalmente na academia alemã entre as duas guerras mundiais e que, com a ascensão de Hitler, ganharam espaço em outras cidades. Depois de rápida passagem por Genebra, para onde se mudaram em 1933, os expoentes da Escola de Frankfurt encontraram acolhida em Nova York, junto à Universidade de Columbia, em 1935.
E foi ali, nos Estados Unidos, anos mais tarde, onde o termo “marxismo cultural”, no sentido conspiratório, ganhou destaque, através de William Lind, então diretor do Centro para o Conservadorismo Cultural da Free Congress Foundation. Lind escreveu largamente sobre a influência dos membros da Escola de Frankfurt sobre os modernos progressistas que usam as instituições para minarem os valores tradicionais cristãos da América, como a família, a religião e a classe média. Seriam pessoas ligadas à esquerda, infiltradas na mídia, nas universidades e nos centros científicos e artísticos. Os progressistas, vistos pelos que advogam a tese como comunistas disfarçados, estariam conspirando durante muitos anos com o objetivo de sabotar a cultura ocidental.
Marxismo cultural
Os escritos de Lind associam o marxismo cultural também à liberdade sexual, valendo-se das ideias defendidas nos anos 60 por Marcuse, autor da célebre frase “faça amor, não faça a guerra” em plena era da Guerra do Vietnam. Marcuse foi o único membro da antiga Escola de Frankfurt que permaneceu nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Os demais voltaram para a Europa. A vertente sexual da teoria conspiratória também foi buscar em Lukács a explicação do que chama de “tentativa de destruição das tradições morais”, valendo-se do fato de o filósofo ter introduzido a educação sexual nas escolas públicas quando ocupou o cargo de vice-comissário para a Cultura, em 1919, no rápido governo de Bela Kun, na Hungria.
Apesar de Lind não ter boa reputação nos meios mais intelectualizados dos Estados Unidos, o fato é que toda aquela salada acabou ganhando o nome de marxismo cultural ou globalismo, regada à boa dose de fanatismo. Alguns chegam mesmo a acreditar que o liberalismo e a globalização não passam de um disfarce do comunismo, com a intenção deliberada de prejudicar os indivíduos comuns, cidadãos da classe média, que teriam perdido o controle da própria individualidade. O globalismo, para Bannon e outros adeptos, seria uma globalização mais abrangente, para além da livre movimentação do comércio, do capital e da mão de obra. Envolveria comportamentos, visões de mundo, liberalização dos costumes, sociedades tolerantes ao multirracismo e a outras religiões além da cristã. Ou seja, o globalismo teria sido instalado no Ocidente com o objetivo de contaminar com outras raças, credos e ideologias as bases históricas que forjaram o domínio do cristianismo neste lado do mundo.
Obviamente, a preocupação de Bannon, e de outros antiglobalistas, é com os Estados Unidos e a Europa. Não à toa, Steve decidiu atuar na Europa porque vê ali, depois do Brexit, um potencial para a disseminação e a chegada ao poder dos partidos de extrema direita.
Um dos alvos é um pequeno partido de direita espanhol, o Vox, que tem crescido de forma expressiva nas redes sociais durante a atual campanha eleitoral (as eleições foram antecipadas para o dia 28 de abril) com a ajuda das táticas de comunicação de Bannon, baseadas na agressividade, nas fake news e nas informações pessoais dos usuários, semelhante à tática utilizada durante a campanha de Bolsonaro. Mas, outros partidos também estão na mira de Bannon que, ao fim e ao cabo, tem o objetivo de desmantelar a União Europeia, sob o pretexto do princípio nacionalista de que as nações são soberanas e devem preservar as identidades como entes nacionais independentes.
Ainda não está muito clara qual seria, para Bannon, a importância do Brasil no xadrez que visa espalhar a política radical de direita no Ocidente. Sabe-se que o deputado federal Eduardo Bolsonaro tem sido seu interlocutor com alguma frequência desde o ano passado, a ponto de ser apontado líder do The Movement na América Latina. Através de Eduardo, a doutrina antiglobalista chega aos ouvidos de Bolsonaro pai, que de alguma forma tem respaldado a tese do radicalismo. Recorde-se que, em meio à declaração polêmica sobre democracia e liberdade, por ocasião do 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, o presidente fez referência ao fato de que a missão que tem pela frente será cumprida, entre outras menções, ao lado “daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa”.
Bolsonaro deu, de certo modo, apoio à linha de engajamento ideológico do Itamaraty, defendida também pelo assessor internacional da presidência, Filipe Martins. A ala militar do governo ainda não se pronunciou sobre o relacionamento dos Bolsonaro com Steve Bannon, mas não deixou de ser notada a movimentação do general Hamilton Mourão, no sentido de monitorar, e até interferir, nas ações do Itamaraty.
Chamou atenção, por exemplo, a presença do vice-presidente da República, sentado à mesa principal, na reunião do Grupo de Lima, realizada em 25 de fevereiro, em Bogotá, para discutir a situação da Venezuela e a questão do acesso da ajuda humanitária àquele país. O encontro contou com a participação do autoproclamado presidente da Venezuela, Juan Guaidó, e do vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, mas o ministro Ernesto Araújo acabou por não ter muita visibilidade durante os trabalhos da sessão. Não é comum o vice-presidente da República representar o Brasil em encontros que tratam de assuntos das relações internacionais. Funcionou, a rigor, como uma espécie de barreira à eventualidade de propostas radicais por parte da diplomacia brasileira, como a do envio de tropas ao país vizinho, uma tese defendida por Araújo, mas que foi rejeitada por Mourão. Também em outras ocasiões, Mourão agiu com o intuito de frear o radicalismo do ministro das Relações Exteriores.
Todos se lembram do polêmico anúncio da mudança da embaixada do Brasil de Telaviv para Jerusalém, que chegou a ser comemorada por Netanyahu, quando veio ao país para a posse de Bolsonaro. Coube ao general Mourão despistar e depois indicar que a embaixada brasileira tende a ficar onde já está.
Também houve divergências, como se recorda, com relação à instalação de uma base militar americana em solo brasileiro, algo que era simpático ao ministro das Relações Exteriores, mas que contrariou os generais do governo. O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, chegou a emitir uma nota, esclarecendo que não existia nenhuma demanda sobre o tema e que “não vislumbra, pela Defesa, a instalação de referida base”.
Militares nos espaços políticos do governo
Aos poucos, os militares vão ocupando espaço político no governo Bolsonaro. Apesar da legitimidade que carrega nos ombros, Bolsonaro ainda não entendeu que o cargo de presidente da República implica uma liturgia de postura que não combina com a divulgação de vídeos pornográficos e nem com bate-bocas e discordâncias em praça pública com ministros de estado.
Também não se coaduna com ataques frontais à mídia, com declarações inapropriadas com respeito à democracia ou às mulheres quem, na data a elas dedicada, ouviram de Bolsonaro que cada mulher no seu governo (são apenas duas no primeiro escalão) vale por dez homens!
Mas, não apenas as mulheres são desprestigiadas no governo Bolsonaro. O ex-deputado federal Jean Wyllys, alvo de perseguição e postagens homofóbicas, resolveu desistir do cargo e mudar-se para o exterior, sem que o presidente se posicionasse contra a atitude preconceituosa dos que achacavam o deputado. Mas, entre todas as minorias, os mais perseguidos talvez sejam os índios, cujas reservas demarcadas correm o risco de serem tomadas pelos homens brancos ávidos por explorarem aquelas terras.
Nos primeiros cem dias de governo, não faltou perplexidade aos ambientalistas com relação às declarações do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, simpático aos interesses do agronegócio, para quem existe excesso de demarcações de terras indígenas no Brasil. Nem mesmo as fotos do ministro com cocar na cabeça conseguiram redimi-lo do seu aparente desinteresse pela causa indígena, sem falar em zero engajamento em fóruns internacionais que buscam diminuir a poluição do planeta e amenizar os seus efeitos para as gerações futuras.
Salles é um ministro na pasta errada. A Deutsche Welle que o diga.
Mas, nem tudo foi problema nos primeiros cem dias de governo. Bolsonaro conseguiu enviar para o Congresso Nacional dois importantes projetos, o da Reforma da Previdência Social e o da Lei Anticrime. São iniciativas dos mais importantes ministros do governo Bolsonaro, conceituados pelo preparo técnico.
De seu lado, Paulo Guedes tem buscado gerir a área econômica com os instrumentos que conhece, em linha com a formação na Universidade de Chicago. Guia-se pela rigidez ortodoxa do ponto de vista fiscal e pelo liberalismo econômico, no sentido de que as relações entre os agentes do setor privado devem ser regidas pelo mercado. A expressão maior do liberalismo, que cresceu em todo o mundo a partir da queda do muro de Berlim, é o fenômeno da globalização, justamente um dos aspectos vistos como mal terreno pela teoria conspiratória que luta contra o marxismo cultural.
A presença dos fanáticos de direita no governo não ajuda a atuação de Guedes, que também precisa armar-se de bons argumentos para convencer o outro grupo, os militares pragmáticos, de tendência nacionalista, da necessidade de aprofundar a privatização.
Seu projeto de reforma da previdência ganhou prioridade no Congresso Nacional e deve ser votado antes do projeto da Lei Anticrime, do Ministro da Justiça, Sérgio Moro. Sem dúvida, tornou-se urgente o encolhimento dos gastos com a previdência e o fato de a proposta cobrir todos os contribuintes, envolvendo o setor público, é um avanço sobre os projetos anteriores. Desta vez, montou-se um projeto que visa sanear os problemas financeiros da previdência hoje e no futuro. Contudo, há aspectos que foram mal recebidos pelo Congresso e que vão demandar flexibilidade da área econômica.
Um deles é a restrição para a aposentadoria rural, que tem funcionado como uma política de contenção migratória, na medida em que o ganho garantido pelo INSS aos mais idosos nas zonas rurais, principalmente no Norte e do Nordeste, tende a beneficiar parte da família, além de aumentar a circulação da renda, através das atividades comerciais locais, nas vilas e cidades pequenas e pobres do país.
A previdência rural garante, hoje, o pagamento de um salário mínimo para homens a partir dos 60 anos de idade e dos 55 anos de idade para as mulheres, independentemente de terem contribuído para o INSS, sendo o único requisito à comprovação de pelo menos 15 anos de atividade rural. Em verdade, tem a conotação de uma política de distribuição de renda, criada no governo de Fernando Henrique Cardoso.
As mudanças previstas na nova proposta passam pelo nivelamento do limite de idade em 60 anos para homens e mulheres, além de sugerir uma contribuição sobre o salário ou a produção agrícola, por no mínimo 20 anos. Houve muita reação negativa dentro e fora do Congresso com relação às novas regras propostas para a aposentadoria rural. Esse é um ponto sujeito a negociações entre o Executivo e o Legislativo. Outros aspectos também são passíveis de discussão.
Há, no entanto, o temor de que, no frigir dos ovos, a reforma da previdência social saia do Congresso “desidratada”, com menor impacto nas contas fiscais. Tudo vai depender, é claro, do tratamento que o presidente Bolsonaro e sua equipe estejam dispostos a dispensar aos parlamentares. Sabe-se que o partido do presidente, o PSL, tem a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados, com 52 deputados, um número que não chega a ser grandioso em termos absolutos. No Senado Federal, apenas quatro são os representantes do PSL.
As queixas dos parlamentares, não apenas do PSL, mas também de outros partidos, já se tornaram visíveis nos primeiros cem dias de governo (a rigor, em menos tempo, tendo em vista que o Congresso começou a funcionar a partir de fevereiro). Os políticos pressionam o governo no sentido de obterem maior participação nos ministérios e autarquias e querem que o governo seja mais benevolente com os pleitos individuais. Isso indica que Bolsonaro não conseguiu escapar da tradicional política do “troca-troca” que tem orientado a relação entre o Executivo e Legislativo nos últimos 31 anos. O problema fica mais complicado pelo fato de o governo não ter uma base sólida de apoio na Câmara e nem no Senado. O mesmo processo de negociação tende a afetar também o projeto da Lei Anticrime, quando começar a tramitar no Legislativo.
O filme não é novo. O Congresso faz pressão e se o Executivo não cede na dimensão requerida, a briga pode ficar feia e redundar em desfechos já conhecidos, como foram os casos de Collor de Mello e de Dilma Rousseff.
Pragmatismo ou ideologismo
As duas estrelas do governo Bolsonaro já devem ter percebido que fama e prestígio não são suficientes para garantir a aprovação dos projetos do Executivo em sua integralidade. Nem mesmo a legitimidade do presidente da República é capaz de assegurar os resultados esperados. As propostas não são definitivas quando entram no Congresso Nacional, mas apenas quando saem.
Com relação a Moro, está no ar a avaliação que fará o Ministério da Justiça com relação às suspeitas de envolvimento de Flávio Bolsonaro com representantes das milícias no Rio de Janeiro, com indicações de desvio de recursos e benefícios a terceiros através da atuação que teve na Assembleia do Rio de Janeiro, onde era deputado estadual. Também estão em suspenso as suspeitas de desvio de dinheiro relacionadas ao financiamento de campanha de candidatas do PSL, nas últimas eleições, que teriam sido usadas como laranjas para o desvio de recursos da campanha.
Não faltou emoção, pode-se dizer, nos primeiros cem dias do governo Bolsonaro. Sem dúvida, quando comparado com os governos anteriores, foi o período inicial de mandato presidencial mais conturbado que já se teve na história do país. Mas, por maiores que tenham sido as aberrações, permanece a dúvida sobre como definir o governo Bolsonaro.
Volta-se, portanto, ao trecho inicial deste artigo. Que cara tem o governo? Talvez nos próximos cem dias fique mais claro para que lado penderá: se para o pragmatismo dos militares ou para o ideologismo dos que defendem uma drástica guinada para a extrema direta.
São Paulo, 11/03/2019

É jornalista, formada em Comunicação Social pela PUC-Rio e pós-graduada em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Trabalhou como editora em Brasília e foi correspondente em Londres pela Gazeta Mercantil. É colunista do jornal Valor Econômico. Entre 1994 e 1995, foi coordenadora do Projeto de Divulgação do Plano Real, no Ministério da Fazenda, em Brasília. É autora do livro “A real História do Real”, lançado em 2005 pela Editora Record. Participou do workshop “Using Knowledge for Development”, Wilton Park, Inglaterra. Em 2006, recebeu o prêmio de Jornalista Econômico, concedido pela Ordem dos Economistas do Brasil. Em 2014, desenvolveu projeto sobre os efeitos da distribuição de renda no aprimoramento da democracia brasileira, na condição de fellow do National Endowment for Democracy (NED), em Washington DC.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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