20 setembro 2017

Coerência e Convergência Regulatória: o Novo Desafio do Comércio Internacional

Coerência e convergência regulatória são temas relativamente recentes na evolução do sistema do comércio internacional. Foram introduzidos na linguagem dos acordos internacionais, primeiramente na Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC), e com maior ênfase na última geração de acordos de comércio, como EUA-Coreia e UE-Coreia.

I. IntroduçãoI. Introdução
Coerência e convergência regulatória são temas relativamente recentes na evolução do sistema do comércio internacional. Foram introduzidos na linguagem dos acordos internacionais, primeiramente na Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC), e com maior ênfase na última geração de acordos de comércio, como EUA-Coreia e UE-Coreia. As propostas mais ambiciosas foram negociadas nos recentes mega-acordos de comércio centrados nos EUA e na UE: (i) o Trans-Pacific Partnership (TPP), que, apesar da incerteza que paira atualmente, seria, por decisão do atual presidente dos EUA, transformado em uma série de acordos bilaterais, conservando os EUA no centro da rede de tratados; (ii) o Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), em negociação entre EUA e UE, que também possui destino incerto; (iii) e o Comprehensive Economic and Trade Agreement (Ceta), que foi recentemente pactuado entre UE e Canadá. Todos esses mega-acordos trazem algo em comum em seus textos: regras que inovaram ao estabelecer padrões sofisticados de coerência e convergência regulatória, que acabam por estabelecer um novo patamar de regras para os acordos preferenciais, constituindo, assim, o marco regulatório contemporâneo para o comércio internacional.
Barreiras tarifárias e não tarifárias
O novo marco regulatório traz regras e instrumentos que vão além das fronteiras dos países para atingir regras internas, as chamadas barreiras não tarifárias. Se a regulação mais antiga dos acordos de gerações se concentrava no desmantelamento de barreiras tarifárias, incluindo tarifas, quotas, valoração, antidumping e subsídio, baseados em preços de importação, o sistema do comércio internacional mais recente se aprofunda em desmantelar outros tipos de barreiras, concentrando-se naquelas decorrentes de medidas aplicadas não na fronteira, mas nas no âmbito das práticas regulatórias internas dos países: regras domésticas sobre serviços, investimentos, concorrência, além de regulamentos e normas técnicas, medidas sanitárias e fitossanitárias, normas ambientais e todas as regras relativas ao processo de avaliação de conformidade (definição de parâmetros de como aferir se as medidas foram cumpridas) e de certificação (comprovação de que as medidas foram cumpridas).
A dinâmica dos acordos preferenciais tem paralelo no sistema multilateral de comércio e no próprio desenvolvimento globalizado da produção econômica. Após múltiplas negociações de rodadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), as tarifas impostas nas fronteiras foram sendo reduzidas ou eliminadas. Por um lado, a implantação de modelos de produção e comércio das cadeias globais, em busca da redução de custos, fez pressão não só para o corte das tarifas, como também para a simplificação e liberalização das regras de origem e a diminuição da aplicação de direitos de defesa comercial, como o antidumping. Por outro lado, a pressão dos consumidores, cada vez mais preocupados com qualidade dos produtos, com questões ambientais, trabalhistas e de bem-estar animal, fez crescer a importância de medidas técnicas, sanitárias, fitossanitárias, ambientais, aptas a assegurar que os requisitos desejados estivessem presentes nos produtos locais e importados.
A grande questão que se impõe é a de quem regulamenta e controla essas que podem ser significativas barreiras não tarifárias ao comércio. As regras contra a discriminação entre produtos nacionais e importados foram negociadas na Rodada Tóquio (1974-1979), as chamadas medidas técnicas, e na Rodada Uruguai (1986-1994), as sanitárias e fitossanitárias. Já as medidas de proteção ao meio ambiente e clima, padrões trabalhistas e bem-estar animal não entraram ainda no marco legal no sistema GATT-OMC e vêm causando grande distorção ao comércio internacional, porque são reguladas de forma descoordenada por organizações internacionais, governamentais e privadas.
O conceito de sustentabilidade atualmente abrange meio ambiente e clima, padrões trabalhistas e bem-estar humano e animal. As medidas sobre meio ambiente e clima foram consolidadas nas negociações das Convenções de Meio Ambiente, iniciadas em Estocolmo (1972), mas impulsionadas pelo impacto global da Conferência no Rio de Janeiro (1992). As medidas sobre padrões trabalhistas têm por base as convenções negociadas na Organização Internacional do Trabalho (OIT). Já as medidas de bem-estar humano e animal partiram de preocupações dos europeus, que após tentativas de introduzi-las da Rodada de Doha da OMC, acabaram por implementá-las via acordos preferenciais, com o apoio de inúmeras organizações não governamentais defensoras do ecossistema.
Ocorre que, nas sociedades atuais, caracterizadas por demandas cada vez mais complexas por parte de governos, empresários e consumidores, medidas regulatórias converteram-se em exigências cada vez mais detalhadas e discriminatórias em relação a produtos e processos produtivos, causando assimetrias comerciais e se revelando como novas barreiras ao comércio. Diferentemente das tarifas, as regulações não podem ser simplesmente eliminadas, uma vez que são ferramentas essenciais com o propósito de promover a maior eficiência dos mercados e o alcance de objetivos de segurança, saúde pública e preservação do meio ambiente.
O ponto crítico da questão é que, muitas vezes, o comércio é usado como instrumento para implementar e fortalecer o cumprimento da complexa rede de novas demandas. Na verdade, os três temas que embasam o conceito de sustentabilidade ainda não fazem parte da regulação do comércio internacional, consolidados inicialmente no GATT e agora na OMC, e se desenvolveram à margem do sistema multilateral do comércio. Para fazer face às novas exigências dos ambientalistas, acadêmicos e consumidores, estão sendo criadas dezenas de organizações não governamentais com o objetivo de desenvolver uma série de selos de conformidade que comprovem o cumprimento das normas de sustentabilidade. A United Nations Conference on Trade and Development (Unctad) vem apoiando as discussões no Fórum dos Padrões de Sustentabilidade – (United Nations Forum on Sustainability Standards – UNFSS). A organização já mapeou mais de 500 padrões que vêm afetando ampla gama de produtos alimentares e manufaturados e que vêm sendo adotados em cada vez maior número pelas grandes lojas de departamento que as impõem aos produtores e importadores.
Há grande debate sobre a definição, o escopo e as consequências do uso de padrões de sustentabilidade, bem como regras para o seu desenvolvimento ou para determinar critérios sobre acreditação ou certificação de tais padrões. Na OMC, espera-se que as medidas técnicas, sanitárias e fitossanitárias sejam baseadas em regras negociadas por organizações internacionais de normalização, como é o caso da ISO/IEC (normas técnicas), do Codex (alimentos), OIE (animais) e CIPV (vegetais). No caso dos padrões de sustentabilidade, essas organizações podem criar oportunidades de mercado, mas também podem disfarçar medidas de proteção para a produção local e de discriminação ao comércio internacional.
Outro problema também se coloca pelo fato de a OMC, a organização criada para negociar, supervisionar e julgar conflitos sobre violações das regras do comércio, vive, há mais de uma década, em profunda crise política, o que impede a conclusão da última rodada de negociações, a Rodada de Doha, iniciada em 2002, apesar de alguns acordos terem sido alcançados, como o Acordo sobre Facilitação de Comércio e a Decisão Ministerial sobre o fim dos subsídios à exportação.
Na impossibilidade de ter a OMC como foro negociador, os países interessados nos temas mais prementes do comércio internacional passaram a negociá-los no âmbito dos acordos preferenciais, que possuem a vantagem de envolverem um menor número de partes que negociam interesses mais próximos. A estratégia explica a negociação dos acordos preferenciais mais recentes com a inclusão de inúmeros temas, alguns avançando nas regras da OMC e outros com regras inovadoras. São elas: serviços e propriedade intelectual (OMC plus) e investimentos, concorrência, padrões trabalhistas, meio ambiente e clima, comércio digital, anticorrupção, manipulação cambial e ainda coerência, cooperação e convergência regulatória (OMC extra).
O cenário internacional
Há duas tensões contraditórias em jogo com as quais o Brasil tem convivido. De um lado, o crescimento de vozes políticas em defesa do fechamento das economias dos países desenvolvidos e contra a crescente globalização, baseadas no argumento de que a abertura comercial é a responsável pelas ondas de importações e altas taxas de desemprego. Esse cenário é agravado com os efeitos econômicos e sociais de uma significativa massa de imigrações de refugiados que se deslocam para esses países e com a ainda mal resolvida administração das consequências da crise financeira do final dos anos 2000.
Por outro lado, fortalece-se a tensão por parte das empresas dos segmentos de bens e serviços em defesa do argumento de que a crise mundial só será ultrapassada com o desenvolvimento de um novo modelo de crescimento econômico, com significativa influência da tecnologia da informação, do comércio digital, dos serviços baseados nos grandes fluxos de dados, na nanotecnologia e na indústria 4.0 (decorrente de uma Quarta Revolução Industrial, que dissemina o uso de tecnologia da informação e aprofunda os processos de automação, trabalhando com conceitos como internet das coisas e computação em nuvem). O novo modelo de crescimento econômico tem sua lógica baseada na maior abertura do comércio e na criação de um novo marco regulatório a ser estabelecido, não pela OMC, mas por uma rede de acordos preferenciais mais avançados, sejam os mega-acordos comercias, ou uma série de acordos bilaterais centrados em grandes países, como EUA, UE ou China. Esse modelo também reconhece que os custos sociais serão altos com o crescimento do desemprego nos segmentos tradicionais, criando a necessidade de se criarem fundos de requalificação e treinamento para formação e treinamento de toda uma geração de trabalhadores para a era digital.
Nesse contexto têm sido edificados quatro modelos de acordos preferenciais: o da recém-anunciada bilateralização do TPP, liderada pelos EUA e que envolve outros 11 países (Austrália, Canadá, México, Chile, Peru, Japão, Cingapura, Nova Zelândia, Brunei, Vietnã, Malásia), retomando, na verdade, a prática bilateral de negociação que esteve na origem do mega-acordo; o do TTIP, entre EUA e UE, com destino incerto, mas que já tornou público uma série de regras inovadoras, como as referentes ao investimento, convergência e cooperação regulatória; o do Ceta entre Canadá e UE; e o do Recep – Regional Comprehensive Economic Partnership, liderado pela China e envolvendo 16 países (China, Indonésia, Malásia, Filipinas, Laos, Tailândia, Cingapura, Brunei, Myanmar, Camboja, Vietnã, Japão, Coreia, Índia, Austrália, Nova Zelândia), centrado no acesso a mercados e no controle de fronteira.As bases dos novos modelos regulatórios já são conhecidas pelo texto do TPP e da proposta da UE para o Acordo Transatlântico, em suspenso. Mesmo que tais acordos encontrem dificuldades em serem aprovados na configuração original, as novas regras do comércio já estão sobre as mesas, e certamente se converterão em modelo para novos acordos de comércio, sejam multilaterais sob a égide da OMC, sejam preferenciais, entre um número limitado de países. São elas que respondem aos desafios do comércio internacional dos dias atuais e é com os promotores dessas regras que o Brasil precisa começar a negociar.
II. Regulação: da cooperação via coerência e convergência
O termo regular pode ser entendido como disciplinar ou alterar o comportamento dos agentes econômicos. No âmbito da economia, regulação exige não só regras, mas também instrumentos de ação e estrutura de negociação, implementação e supervisão de tais regras. No contexto do comércio internacional, o conceito de regulação econômica abrange não só a regulação normativa que estabelece as regras, mas também a supervisão de controle e a fiscalização. Quanto à intensidade da regulação, esta pode ter caráter soft ou hard, e sua sanção pode ser punitiva ou premial (baseada em estímulos).
Não só as atividades dos governos são reguladas. Todas as ações dos agentes econômicos no âmbito interno dos países também o são. Na área do comércio internacional, em particular, há uma sobreposição de regulações. Agências internas que regulam atividade de importação e exportação estabelecem regras que são também objeto de tutela de organizações regionais e internacionais. Subsistem, assim, regulações nacionais, regionais, multilaterais ou internacionais de uma ou várias agências ou organizações internacionais.
No mundo atual, interdependente e interconectado, cada vez mais dominado por novas tecnologias da informação, o comércio internacional sofre com a multiplicação, fragmentação e sobreposição de regulações para diferentes tipos de atividades e que nem sempre seguem os padrões internacionais já estabelecidos. Essas vão desde os regulamentos destinados a proteger os consumidores e as regras concernentes ao meio ambiente e à saúde pública, serviços de infraestrutura, estabilidade do sistema financeiro e outros objetivos de interesse público.
O fato de milhares de novas regulamentações que afetam o comércio internacional serem criadas por instituições reguladoras distintas e sem seguir um padrão internacional torna a política regulatória de cada país distinta em suas normas, procedimentos, penalidades e recursos. A propagação das diferenças acaba trazendo ineficiências para as normas e procedimentos internacionais, impondo custos adicionais aos cidadãos, produtores, exportadores e importadores. Revelam-se, assim, como novas barreiras ao comércio, as denominadas barreiras não tarifárias, que acabam por discriminar e restringir o comércio internacional de forma premeditada ou por mero acaso.
A OCDE e a gestão regulatória 
Desde a década de 1990, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) salientava que, com a internacionalização de atores e processos regulatórios, que cruzam as fronteiras locais, nacionais, regionais ou internacionais, fazia-se necessária mais atenção para o compartilhamento de informações e a coordenação na concepção, análise, elaboração e execução das regulações. A OCDE desenvolveu, assim, vários trabalhos fundamentais para o entendimento do fenômeno: (i) 1995 OECD Recommendation on Improving the Quality of Government Regulation; (ii) 1997 OECD Policy Recommendations on Regulatory Reform e (iii) 2012 OECD Recommendation on Regulatory Policy and Governance. Instrumento central na busca de melhores práticas regulatórias foi o desenvolvimento da análise de impacto regulatório, como uma das peças centrais na busca de maior gestão regulatória (regulatory management).
Trabalho mais recente é o 2013 International Regulatory Co-operation: Addressing Global Challenges. A cooperação regulatória é o conceito propugnado pela OCDE para solucionar o problema da necessidade de maior diálogo entre as partes, baseada em acordo de notificações e consultas para adoção de novos regulamentos ou na criação de normas internacionais que pretendam reconhecer ou harmonizar regulamentos com as normativas de outra nação, para uma melhor qualidade regulatória. O esforço de cooperação é materializado em acordos ou arranjos organizacionais, formais ou informais, entre países, em nível bilateral, regional ou multilateral, para promover alguma forma de cooperação na concepção, monitoramento, execução ou gestão ex post das regulações, com visão para dar suporte à coerência, convergência e consistência de regras além das fronteiras.
Coerência regulatória
A OCDE aborda a temática da cooperação sem excluir a coerência de seus debates. A ideia de coerência regulatória também se encontra presente, mesmo em seu significado comum, de não contradição entre as Partes de uma mesma unidade sistêmica. A OCDE esclarece em seu relatório 2015 OECD Regulatory Policy Outlook que existem mecanismos para garantir a coerência regulatória entre os níveis do governo. Exemplos de tais mecanismos são aqueles que promovem o suporte de coordenação entre governos nacionais e subnacionais para apoiar a coerência regulatória e evitar conflitos ou duplicação de regulamentos, benchmarking de desempenho (performance benchmarking) e relatórios de boas práticas.
Segundo a OCDE, a coerência regulatória pode ser promovida por meio de mecanismos de coordenação entre os níveis de governo supranacional, nacional e subnacional. Questões regulatórias transversais em todos os níveis de governo devem ser identificadas para promover a coerência entre enfoques regulatórios e evitar a duplicação ou o conflito de regulamentos.Os mecanismos para aperfeiçoar a coerência regulatória podem ser vinculantes como mecanismos jurídicos ou simplesmente plataformas de discussão e devem ser suficientemente flexíveis para possibilitar políticas territorialmente específicas. Conforme aduz a OCDE, o envolvimento de governos subnacionais na elaboração de regulamentos coerentes pode levar tempo, porém, traz benefícios de médio e longo prazos, superando futuramente os custos de coordenação.
Cooperação regulatória em busca de convergência
A cooperação regulatória, como forma de diálogo entre diferentes países, pode se materializar de várias maneiras, como diferentes categorias, como diálogos nos níveis horizontal e setorial, troca de informações, experiências, intercâmbio técnico e científico, simplificação de regulamentos técnicos, padrões e procedimentos de verificação de conformidade, alinhamento de requisitos técnicos, colóquio entre organizações públicas ou privadas, responsáveis por metrologia, padronização, testes, certificação e acreditação.
A OCDE relacionou 11 categorias de cooperação regulatória que variam em sua formalidade, abrangência e vinculação jurídica. Constituem uma mescla de ferramentas e arranjos, que em alguns casos, podem se sobrepor e cujos limites podem não ser tão claramente visíveis. São elas: (i) integração/ harmonização através de instituições supranacionais ou conjuntas; (ii) negociação específica de acordos, tratados ou convenções; (iii) parcerias regulatórias formais entre os países; (iv) organizações intergovernamentais; (v) acordos preferenciais de comércio com disposições sobre regulação; (vi) acordos de reconhecimento mútuo; (vii) redes transgovernamentais (transgovernmental networks); (viii) requisitos formais para considerar a cooperação regulatória quando há regulações em desenvolvimento; (ix) reconhecimento de padrões internacionais; (x) soft law; e (xi) diálogo e troca de informações informais.
Verifica-se que a multiplicação de atores estatais e não estatais com poderes regulatórios reflete uma alteração no modelo tradicional do Estado regulador, bem como um aumento da regulamentação privada e internacional que podem ser utilizadas como ferramentas, de diversas espécies, para facilitar o propósito da cooperação regulatória.
Por um lado, as iniciativas de harmonização decorrentes do processo de integração e da supranacionalidade, bem como os tratados e convenções, qualificadas como hard law, que se encontram à frente das iniciativas mais vinculantes, podem surtir os efeitos desejados em busca de maior cooperação regulatória. Por outro lado, alguns acordos não vinculativos podem ser extremamente úteis em seus mecanismos de execução. Os países podem se basear em um conjunto de acordos vinculativos e não vinculativos para alcançar os seus objetivos de cooperação e assegurar a sua conformidade e eficácia, como é o caso da regulamentação privada transnacional.
Outro ponto a ser ressaltado é o caráter público ou privado das organizações de normalização. Os organismos nacionais de normalização que contribuem para o seu estabelecimento podem ser entidades privadas, públicas ou mistas. Embora desenvolvidas em grande parte por entidades privadas, as normas técnicas são incorporadas ao Direito Internacional por meio de acordos multilaterais. Entidades reguladoras públicas podem ter um alto nível de influência nesse processo.
A OCDE também empreende esforços de cooperação, desde a forma mais branda até a mais intensa, propondo que os Estados, igualmente, realizem ações para aproximarem suas regulações. Essas iniciativas não são consubstanciadas apenas por regras, mas também por planos de ação, e possuem caráter bilateral ou multilateral – as últimas, por intermédio de iniciativas regionais (acordos preferenciais de comércio) ou organizações multilaterais.
Disposições multilaterais sobre cooperação regulatória
Diante do quadro de diversidade quanto às iniciativas regulatórias, a OMC, formalmente, tem papel de relevo no âmbito externo, desde o tempo do GATT com o Código de Normas (1979) e em direção à cooperação regulatória, em especial, com a negociação, já na OMC, do Acordo sobre Barreiras Técnicas (TBT) e Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS) de 1995. Apesar de não utilizarem a terminologia cooperação, desenvolvem algumas das categorias abordadas pela OCDE como propagadoras da cooperação, tais como harmonização, cooperação por meio de redes transgovernamentais de cooperação e guidelines. Os dois acordos internacionais incluem medidas para promover a transparência regulatória e a adoção de padrões internacionais. Essas medidas facilitam os objetivos comerciais regulatórios ao dispor de maior previsibilidade para os exportadores e investidores e na simplificação da conformidade regulatória (regulatory compliance).
Outro âmbito de atuação para cooperação regulatória no seio da OMC é nos Comitês criados sob a égide dos Acordos TBT e SPS. O Anexo 3 do Acordo TBT inclui o Código de Boas Práticas para a Preparação, Adoção e Aplicação de Normas Técnicas, que encoraja a criação de organismos internacionais de normalização que sejam transparentes e promulgadores de normas não discriminatórias, baseados em boas práticas e em normas não duplicadas. O Código está aberto à aceitação por qualquer organismo de normalização, possuindo um guia para o processo de criação de normas. Nesse aspecto, a organização não governamental pode ser qualquer instituição que não seja do governo central, ou instituição pública local, incluindo instituição não governamental legalmente habilitada para fazer cumprir regulamentos técnicos.
Nos anos 2000, o Comitê TBT acordou com princípios adicionais para melhorar o trabalho dos organismos internacionais de normalização, que incluem: transparência, abertura e uma abordagem imparcial e consensual que promove normas efetivas e relevantes e incorpora também as preocupações dos países em desenvolvimento.
O Comitê TBT promove também o uso de boas práticas regulatórias para que se desenvolva a troca de informações e mais coordenação entre os reguladores, organismos de normalização e funcionários do comércio.O Comitê SPS, também previsto no Acordo SPS, ressalta, de forma clara, que se deve manter contatos estreitos com as organizações internacionais competentes no domínio da proteção sanitária e fitossanitária, em especial com a Comissão do Codex Alimentarius, a Organização Internacional para Saúde Animal (OIE) e o Secretariado da Convenção Internacional para a Proteção Vegetal (CIPV), com o objetivo de obter os melhores pareceres científicos e técnicos disponíveis para a administração do Acordo e a fim de evitar a duplicação desnecessária de esforços. Em 2014, o Comitê SPS lançou mecanismo para tensões comerciais relacionadas à segurança alimentar e medidas de saúde de plantas e animais.Importante destacar que o Acordo SPS dá relevância à realização de análise de risco na determinação dos níveis apropriados de proteção das medidas sanitárias e fitossanitárias, tendo em conta as técnicas de avaliação dos riscos desenvolvidas pelas organizações internacionais competentes.
Ambos os Acordos preveem procedimentos para que os membros da OMC discutam preocupações específicas, as specific trade concerns (STCs), em seus Comitês, abrindo uma via mais direta, em que medidas são questionadas para que sejam esclarecidas pelos membros, com relação a medidas não tarifárias, mesmo que a medida não tenha sido notificada ao Comitê. Os STCs podem levar a uma disputa informal ou se tornarem base para uma controvérsia formal. É difícil mensurar e avaliar o impacto dos esforços da OMC para maior cooperação regulatória, porém, sem um grande e forte mandato, esses esforços servem mais como guidelines para ações unilaterais dos membros do que como fórum para cooperação.Na prática, os objetivos de regulações domésticas e de comércio internacional são difíceis de conciliar. As regras do sistema multilateral do comércio são efetivas em limitar medidas regulatórias discriminatórias, mas oferecem pouco para eliminar ineficiências, falta de clareza e regulações redundantes que não são discriminatórias, mas que dificultam igualmente o comércio internacional.
É importante ressaltar que as disposições estabelecidas no âmbito da OMC não excluem o que já foi estabelecido por outras organizações, como por exemplo, quando cita esforços para aplicar os métodos de análise de risco para avaliação de regulações SPS já desenvolvidos por outras organizações internacionais e com o já estabelecido pelo Codex Alimentarius, a Organização para a Saúde Animal e o Secretariado da Convenção Internacional para a Proteção Fitossanitária.
Intensificação de boas práticas entre países
Desse modo, infere-se que o sistema multilateral do comércio pleiteia mais uma aproximação dos países para que intensifiquem boas práticas, até mesmo algumas já desenvolvidas e estabelecidas no seio de outras organizações, do que a previsão de medidas que impliquem maior convergência de regulações. Além disso, a crise atual do sistema multilateral de comércio inviabiliza que iniciativas mais ousadas em matéria regulatória sejam adotadas no âmbito da OMC, conduzindo aos acordos preferenciais à tarefa de equacionar o problema das barreiras regulatórias.
Da coerência à convergência regulatória nos acordos preferênciais de comércio Coerência regulatória é um conceito relativamente recente no contexto comercial dos acordos preferenciais. Até antes da década dos mega-acordos, ou seja, 2010, o conceito era empregado em um contexto de coerência entre múltiplos níveis de governo que realizavam política de coerência quando estabeleciam alinhamento de agências domésticas e leis com objetivo de reforma regulatória nacional.
A partir de 2010, o termo passou a ser utilizado em relação a grandes negociações comerciais, como as da Parceria Transpacífica (The Trans-PacificPartnership – TPP), da Parceria Transatlântica (The Transatlantic Trade and Investment Partnership –TTIP). Entretanto, a literatura de coerência e convergência regulatória é vasta e apresenta diferentes formas e, muitas vezes, mescla seus termos. Existe certa confusão de fins, como o de se buscar custos regulatórios mais baixos para as empresas que operam além das fronteiras e os meios para atingir estes fins, tais como normas harmonizadas ou em processo de convergência. Algumas descrições se concentram na cooperação entre os Estados para alcançar a coerência regulatória e outras na melhoria da regulação e processos regulatórios dentro dos próprios Estados.
O tema já estava presente nas negociações da Apec. Para a Apec, que é um fórum econômico regional, a coerência regulatória visa melhorar o processo pelo qual os seus membros desenvolvem regulamentos, gerando melhores práticas, padrões e regulamentos no timing certo para que sejam aceitáveis e para bem implementá-los.
Evoluindo o conceito, e com vistas a esclarecer a abordagem da coerência regulatória, a Nova Zelândia articulou uma descrição baseada em resultados que repousa a coerência regulatória na interface entre a regulamentação interna e a liberalização do comércio internacional e investimentos. Na descrição neozelandesa, reitera-se que a coerência regulatória se relaciona tanto com o que os países fazem internamente, quanto o que acontece entre os países. Dessa forma, a coerência regulatória exige uma estratégia multidimensional que tem os seguintes elementos inter-relacionados: (i) Coerência entre objetivos de política doméstica e internacional: ao desenvolver políticas regulatórias domésticas que possam ter impacto no comércio e no investimento, esses impactos devem ser identificados e levados em conta como parte do processo político; (ii) Coerência entre normas e agências regulatórias nacionais: em situações em que várias agências reguladoras domésticas lidam com a mesma questão relacionada a comércio e investimento, como um bem ou serviço que deve obedecer a várias leis e que deve ser tratado por várias agências reguladoras, deve ser tomada uma abordagem consistente e eficiente; (iii) Coerência entre as leis e agências de duas ou mais economias: o terceiro elemento é geralmente promovido por cooperação regulatória e reflete o objetivo de reduzir as barreiras regulatórias ao comércio e ao investimento, criadas por diferentes regulações em diferentes países através da cooperação entre economias.Atualmente, o texto do TPP apresenta capítulo próprio sobre coerência e cooperação regulatória.
O regime regulatório propugnado deve aderir às melhores práticas internacionais e assegurar níveis elevados de colaboração entre governos do TPP e as partes interessadas. Logo, a coerência regulatória se refere ao uso de boas práticas no processo de planejamento, concepção, emissão, implementação e revisão de medidas regulatórias, a fim de facilitar a realização dos objetivos da política doméstica, bem como os esforços entre governos para intensificar a cooperação regulatória, com o intuito de promover esses objetivos e incentivar o comércio internacional, o investimento, o crescimento econômico e o emprego. De modo a implementar da melhor forma esses objetivos e esforços dos países, as partes do TPP concordaram em promover formas específicas de cooperação para se atingir a coerência regulatória, como o intercâmbio de informações, promoção de seminários e eventos instrutivos sobre o tema e estimular a cooperação setorial através de agências especializadas.
O conceito de coerência regulatória adotado no âmbito do TPP difere da definição admitida pela OCDE na medida em que une em um único dispositivo as noções de coerência e cooperação regulatória, não chegando à ideia de convergência. Dessa forma, enquanto coerência se refere ao alcance dos objetivos em nível de política doméstica (esfera interna), a cooperação se caracteriza pelos esforços entre governos (esfera internacional).
Autonomia regulatória
Nesse diapasão, a convergência regulatória, entendida aqui como a maior aproximação e comprometimento entre os Estados na uniformização e na adoção de uma regulação comum a todos os envolvidos, não é abordada diretamente pelo TPP, haja vista que exige uma maior redução da autonomia regulatória nacional em prol de um modelo de governança mais profundo. Desse modo, observa-se que a busca por cooperação regulatória pode ser exposta por instrumentos tanto de coerência quanto de convergência, cada qual inserido em um contexto e acordo específico, que visam a objetivos parecidos, porém possuem significados diferentes.
Em outros mega-acordos, como na proposta do TTIP, divulgada pela UE, o conceito de coerência também aparece. As TTIP Directives de 2013 estabelecem que:

The Agreement will include cross-cutting disciplines on regulatory coherence and transparency for the development and implementation of efficient, cost-effective, and more compatible regulations for goods and services, including early consultations on significant regulations, use of impact assessments, evaluations, periodic review of existing regulatory measures, and application of good regulatory practices.

O acordo, ainda em negociação, incluiria disciplinas transversais sobre coerência e transparência regulatória para o desenvolvimento e a implementação de regulamentações eficientes, efetivas e mais compatíveis para bens e serviços, incluindo consultas sobre regulamentações significativas, utilização de análise de impacto regulatório, avaliações e revisão periódica das normas regulatórias existentes e a aplicação de boas práticas regulatórias. Ocorre que a cooperação entre os países para o alcance de sistemas regulatórios mais coerentes possibilitaria a convergência entre sistemas, o que deve favorecer o comércio internacional se aprovada a Parceria Transatlântica.
Contudo, merecem destaque também os esforços de convergência bilateral, sejam eles expressos ou implícitos. Cita-se o disposto no recente Comprehensive Economic and Trade Agreement (Ceta) entre Canadá e União Europeia, que inclui procedimentos de cooperação regulatória, incluindo protocolos sobre aceitação mútua dos resultados da avaliação da conformidade para produtos. Há um capítulo próprio sobre cooperação regulatória, que compromete ambas as partes a cooperarem para prevenir e eliminar barreiras desnecessárias ao comércio e ao investimento, através da persecução da compatibilidade regulatória e do reconhecimento de equivalência.
Os objetivos da cooperação regulatória propugnada no Ceta incluem a construção da confiança, aprofundando o entendimento mútuo das abordagens de governança regulatória e promovendo a transparência, previsibilidade e eficácia dos regulamentos e evitando diferenças regulatórias desnecessárias. Outro objetivo é reduzir as diferenças desnecessárias na regulação setorial com o propósito de melhorar a competitividade da indústria, procurando formas de diminuir os custos administrativos e os de requisitos regulatórios duplicados e buscar abordagens regulatórias que incluam, se possível e apropriado, o reconhecimento da equivalência ou da promoção de convergência regulatória.
A inclusão da cooperação regulatória nos APCs, envolvendo EUA e UE, suscitam inúmeras questões e possíveis consequências para os países excluídos de acordos ou que não têm poder para influenciar as negociações sobre as regras aplicáveis. Acordos que conduzem à convergência regulatória podem criar e incentivar as empresas a localizarem-se em tal bloco econômico ou consolidarem a imagem de que empresas localizadas dentro de um bloco com tais disposições obtêm vantagens em detrimento de empresas que permanecem fora deles. No domínio da regulação, a agenda deve girar em torno da convergência de normas e padrões de reconhecimento e aceitação mútuos dos Estados envolvidos, principalmente em função de sua maior eficácia para com a diminuição dos custos de transação gerados pelas disparidades regulatórias entre os membros dos APCs.
Custos clássicos de desvio de comércio gerados pela redução preferencial das tarifas ao abrigo do Ceta, do TPP ou do TTIP provavelmente serão limitados porquanto as tarifas médias, na maioria dos países participantes nessas iniciativas, já são baixas. Na verdade, no caso do TPP, muitos membros já têm APCs entre si. A temática que deve ser superada, portanto, é a das barreiras regulatórias, uma vez que a ausência de um sistema regulatório coerente, e indiretamente convergente, tem gerado maior impacto por implicarem maiores ônus para empresários e consumidores.
Aventa-se também que as empresas localizadas em países não membros dos APCs com previsões de maior cooperação, convergência e coerência regulatória podem beneficiar-se do acesso a esse grande mercado criado pelos Acordos, caso demonstrem que seus produtos estão em conformidade com as normas regulatórias pertinentes. Por isso, a necessidade de se adequarem às boas práticas regulatórias propugnadas pelos organismos multilaterais e também pelas regras de cooperação regulatória já criadas pelos APCs com vistas a ganhos futuros.A cooperação regulatória, como é exposta pelos APCs, trata de um pressuposto da convergência regulatória, que ocorrerá das mais distintas maneiras (como, por exemplo, as listadas pela OCDE), e de forma mais ou menos ambiciosa. A convergência, por sua vez, é exposta pelos recentes APCs como um modo de cooperação vertical, envolvendo o compromisso dos Estados em ações de todos os envolvidos em prol do alcance de uma uniformização regulatória, um eixo comum a todos os membros contra regulações e normas divergentes.
Por mais que pareça uma proposta de redução da autonomia regulatória dos Estados em prol de um modelo internacionalizado, os APCs ressaltam a manutenção do policy space dos países na persecução de políticas públicas individuais e caras às respectivas sociedades. Importante destacar que, com exceção do Ceta, outros APCs citados raramente mencionam o conceito de convergência, que muitas vezes é confundida com coerência, apesar de seu propósito e ideia serem claramente o de alinhamento ou de reconhecimento de normas, em prol da eliminação de diferenças entre requisitos regulatórios de distintos países e da realização de uma análise de impacto regulatória transnacional.Assim, aduz-se que a cooperação regulatória entre Estados nos APCs, mesmo sendo a second best solution, em decorrência de uma ausência de disposições no âmbito do sistema multilateral do comércio, visa, sobretudo, a sistemas mais coerentes e, nesse processo, é provável que haja mais convergência, mesmo que indiretamente, sendo esta expressa ou não nos textos dos APCs, o que levará à eliminação de barreiras regulatórias e o favorecimento do comércio internacional.
III. Conclusões 
A análise das políticas regulatórias que tratam de medidas técnicas, sanitárias e fitossanitárias, além das ambientais, que afetam não só a economia doméstica, mas, principalmente, o comércio internacional, lançou luzes sobre o surgimento de um novo paradigma. Agora, conceitos fundamentais para o comércio internacional como coerência, cooperação e convergência regulatória passam a ocupar lugar de destaque.
Os novos conceitos tornam-se ainda mais relevantes no atual contexto internacional de grandes incertezas e de profunda perplexidade diante da nova política externa dos EUA, que coloca o Brasil frente a sérios desafios. O reposicionamento da Política de Comércio Internacional do Brasil é, portanto, urgente, seja em razão da pressão da nova lógica internacional em que coerência e convergência são palavras de ordem, seja em resposta à política agressiva de acordos bilaterais dos EUA com seus principais parceiros em busca de um alargamento e aprofundamento de sua rede de acordos preferenciais.
A oportunidade e significância do tema estão justamente nos fatos e na necessidade de o Brasil, com urgência, alterar sua política de isolamento em relação aos acordos preferenciais de comércio para, inclusive, adotar posturas mais estratégicas de inserção nas cadeias globais e regionais de valor e na economia digital.
Governo e agentes econômicos ainda não se deram conta de que no mundo global atual as armas são outras. Os instrumentos tradicionais do comércio internacional, como tarifas, quotas tarifárias e antidumping, aplicados nas fronteiras, deixaram de ser significativos. Os olhos se voltam para as novas barreiras ao comércio, ditas não tarifárias, que englobam barreiras regulatórias, as quais, por serem originadas em políticas internas de cada país, acabam afetando o fluxo de importações e exportações.
Exatamente por esse motivo é que o exame minucioso da evolução das políticas regulatórias dos principais parceiros internacionais, em paralelo com o processo brasileiro, passa a ser fundamental. São elas que determinarão se um país pertence ou não a uma rede de compatibilidade regulatória. Importações dentro de regras comuns e certificadas serão aceitas e importações que se utilizam de outros regulamentos e normas terão que provar sua conformidade, elevando substancialmente custos de exportação.
É hora de o Basil se debruçar seriamente sobre esse novo e importante tema do comércio internacional.


Professora da EESP-FGV, é coordenadora do Centro do Comércio Global e da Cátedra OMC no Brasil. Desde 2014, é presidente do Comitê Brasileiro de Barreiras Técnicas do Conmetro. Vivian Rocha Gabriel é pesquisadora do CCGI-EESP-FGV.

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