12 abril 2012

Comissão da Verdade: mais um elo de uma corrente

Tudo começou quando o presidente da República, Jânio Quadros, assombrou o Brasil e renunciou no sétimo mês de um mandato de quatro anos. Não se seguiu a substituição imediata pelo vice-presidente, Jango Goulart. E isso ocorreu pelo fato de os ministros militares terem vetado sua posse em nome da ameaça comunista, espantalho recorrente no mundo […]

Tudo começou quando o presidente da República, Jânio Quadros, assombrou o Brasil e renunciou no sétimo mês de um mandato de quatro anos. Não se seguiu a substituição imediata pelo vice-presidente, Jango Goulart.

E isso ocorreu pelo fato de os ministros militares terem vetado sua posse em nome da ameaça comunista, espantalho recorrente no mundo bipolar (URSS versus EUA) da Guerra Fria. Foi necessária toda uma operação de ortopedia política para que, evitando um confronto de forças – pois o Rio Grande do Sul, em peso, defendia a posse – fosse passada a presidência a Goulart. Na vigésima quarta hora, surgiu a ideia de se transformar o sistema de governo político em parlamentarismo, com um primeiro-ministro (Tancredo Neves) encarregado do governo, ficando o presidente com a representação simbólica do Estado. Jango Goulart tomou posse, mas ficou o precedente de injunção militar como ato de força, ao arrepio da lei e da Constituição. Aqui teria cabimento lembrarmos a conhecida figura do ovo da serpente.

Jango Goulart conseguiu, com habilidade e obstinação, depois de ano e meio, recuperar, por um plebiscito, a presidência plena, mas à custa de imenso esforço, contudo, insuficiente para dar ordem e rumo ao país agitado por mil bandeiras que, nas praças públicas ou nos manifestos, falavam em reformas que, num amplíssimo espectro, iam das democracias nórdicas ao coletivismo albanez, passando pelos notórios modelos soviético, chinês e cubano. Havia menu para todos os paladares ideológicos, formando fascinante carrossel de discussões, debates e participação que acelerou o rodar da carruagem histórica. Esta acabou despencando no golpe militar de 1º de abril de 1964. Forças militares vindas de Minas Gerais com a participação do governador civil, Magalhães Pinto, derrubaram o presidente Goulart, que teve de exilar-se no Uruguai. O golpe, contudo, não se limitou à remoção física do presidente, como frequente na América Latina da época, mas introduziu um novo sistema de força e de institucionalidade baseado no poder militar “legalizado”, não mais na Constituição Federal, mas num instrumento jurídico chamado Ato Institucional que, emanado dos quarteis, foi minutado por “juristas linha dura”, como se dizia na época.

O Brasil passou a viver, portanto, fora dos parâmetros do estado de direito democrático, em que tudo deve ser modelado por princípios colocados expressamente na Constituição. O país foi conduzido para as vicissitudes em que a força militar, e apenas ela, dizia o que podia e o que não podia ser feito.

Quando não se prefixam os limites dos poderes dos governantes, configura-se uma ditadura, regime em que os que detêm a força concedem, por mera benevolência, o funcionamento de todas as instâncias do governo e da oposição. É claro que não foram apenas os militares que conduziram o país naquele tempo. Tiveram grande apoio civil. É claro, também, que nem todo o país apoiou, ou se resignou, com o novo sistema. Tal sistema – na essência, ditadura militar – teve nuances específicas, que afastam a ideia de funcionamento automático adstrito a modelos preexistentes. Assim, foi ditadura, mas sem a figura do ditador: os generais na presidência respeitaram o fim de seus mandatos. Menos o primeiro deles, o marechal Castelo Branco, que teve o seu mandato ampliado, mas respeitou a data que lhe deram a mais. Assim, também, valeu o fato de o regime ter sido combatido sem praticamente um dia de trégua.

Tal dissenso na sociedade veio sob as mais variadas formas no campo intelectual, jornalístico, parlamentar, sindical, artístico, acadêmico e religioso. Onde houve uma brecha, brotou um protesto. Claro está que aqui, também, não houve automatismo ou planejamento e que a forma de protesto foi de amplo espectro: da poesia à luta armada.

Esse Brasil convulso e avesso ao estado de direito democrático reencontrou seu rumo com a Anistia, as “Diretas Já” e a Constituição Federal de 1988. Foram mais de 20 anos sofridos e milhares de encontros, reuniões, lutas, altos, baixos, alegrias, sofrimentos, avanços, recuos, mas sem perder a nitidez do regime, na essência, ditadura militar.

Por tudo isso, é que, na perspectiva do quanto se passou, foi importante e histórica a aprovação pelo Congresso Nacional da “Comissão da Verdade”. Advinda de um projeto do governo Lula, foi aprovada pelo Congresso e sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 18 de novembro de 2011.

A ideia não foi original. As Comissões da Verdade nasceram de conferências internacionais no âmbito da ONU. Em muitos países prosperaram várias Comissões da Verdade. No Brasil, começou-se a ventilar e discutir tal modelo, no âmbito da sociedade civil, em vários encontros. Registre-se o de mais relevância, na Escola Politécnica da USP, em outubro de 2009, com representantes de governo – ministro dos Direitos Humanos, Comissão Municipal de Direitos Humanos, governo do Estado, sociedade civil, familiares de vítimas, acadêmicos, Ministério Público e representante da ONU. Foi, talvez, o marco inicial do assunto, do ponto de vista do tratamento sistemático.

Pacto à brasileira

O fato de o Brasil ter passado tantos anos sem consenso político-social, governado por um regime que dependia, em última análise, das decisões que os militares concertassem entre eles, e ter chegado depois a um estado democrático de direito devidamente legitimado por uma Constituição Federal, funcionando há quase três décadas, não é pouca coisa. Mostra que fomos capazes de, por caminhos próprios, recompor o tecido nacional rompido por uma parte da nação que saltou fora do estado de direito e outra que, em oposição de múltiplos caminhos, chegou ao extremo de utilização de armas. Importa continuar a construção dessa democracia e valorizar os passos decisivos que foram dados para se chegar a ela. Há exemplos de países que saíram da ditadura para a democracia por pactos, como a Espanha, que até batizou seu pacto – Moncloa – e fixou endereço onde foi discutido. No Brasil, fizemos os nossos por intuição política. Não os explicitamos, como no caso espanhol, mas o vivenciamos com a marcha dialética que os fatos concretos foram impondo.

Assim, veio nossa lei da Anistia. Foi apenas uma lei? Absolutamente; foi um movimento. E, como tal, luta, esforço, mobilização, idas e vindas, avanços, recuos, mas, ao fim e ao cabo, todos, sem exceção, com os direitos políticos retomados exercendo-os nos comícios e, depois, nos palácios governamentais, mandando, nomeando e demitindo. Quer dizer: somente uma visão muito acanhada, quase de encolhimento perceptivo, concebe a anistia no Brasil apenas como uma lei, porque revestida e aprovada pelo formalismo institucional, vigente na época. Assim, a anistia no Brasil foi – e é – especialmente o que dela resultou. A anistia é também o fato de todo o poder militar em todas as suas ramificações, inclusive civil e política, ter assimilado (termo gentil) o Brasil governado exatamente – e quase simetricamente – por todos os que tinham sido vítimas de suas decisões e arbítrio.

O terreno do governo foi revolvido segundo um receituário aviado pelos corações e mentes dos antigos marginalizados e perseguidos pelo regime anterior. O fato diferenciador – em relação a alguns exemplos históricos antigos ou recentes – é que, na construção democrática brasileira, houve e há senso de responsabilidade nesse revolver de terreno. Não houve espírito de retaliação ou revanchismo ou caça às bruxas. O que só enobrece e valoriza o padrão da democracia que estamos construindo.

A “Comissão da Verdade” veio com esse espírito que, sem traumas e com continuidade, embasou os marcos históricos anteriores: anistia, “Diretas Já”, e Constituição de 88: reparar, repor, esclarecer, apartar, superar, construir.

Digam o que disserem os críticos, civis ou togados, aqui ou do estrangeiro. Não é pouca coisa uma comissão oficial na qual estejam familiares em paridade com membros do governo. Não é pouca coisa, há 15 anos, no governo Fernando Henrique Cardoso, reconhecer, pela lei nº. 9.140 de 4 de dezembro de 1995, como mortos diretamente pelo Estado brasileiro Lamarca e Marighella, ícones do Brasil para os que abraçaram a luta armada e demonizados pelo regime anterior. Por essa lei, o Estado brasileiro, como instituição permanente acima dos governos e das circunstâncias históricas, chamou a si – naqueles casos e em 400 mais – a responsabilidade que lhe é inerente pelos valores consubstanciados nos Direitos Humanos de respeitar a vida de todo preso ou capturado e lhe dar julgamento pela lei vigente que, mesmo em regime ditatorial, não previa a execução sumária.

Passo a passo, sem alardes ufanistas e complexos regressistas, fizemos a democracia avançar e podemos ostentar, hoje, a marca singular de um acadêmico de escol ter sido sucedido por um operário sindicalista e esse por uma mulher, todos cassados e perseguidos pelo regime anterior.

Nessa perspectiva de em tudo favorecer nossa democracia e conduzi-la por caminhos que não a levem a impasses, é que o ex-presidente Lula determinou a substituição do primeiro projeto da criação da Comissão da Verdade, que poderia ensejar dúvidas no tocante ao alcance da Lei da Anistia. Dessa tarefa retificadora incumbiu-se uma comissão ou redatores do novo projeto. Destaque-se Jobim, Vanucchi, Paulo Sérgio Pinheiro, Marcos Antonio Barbosa, que apresentaram um texto preciso, enxuto e, especialmente, viabilizador de mais um avanço no caminho firme, mas sempre inevitavelmente delicado, da construção de nossa democracia.

Material para historiadores

Agora com a aprovação desse projeto da Comissão da Verdade, depois de alterações adjetivas do Congresso Nacional, o governo tem um instrumento que abrirá o leque de possibilidades para agregar informações e esclarecimentos sobre a rede de planejamento, comando, execução, acobertamento e justificação dos atos cometidos contra os direitos humanos no período determinado na lei.

É claro que esse trabalho não substitui o insubstituível, ou seja, o trabalho do historiador que hoje, com os avanços em pesquisa, é um cientista capaz de reconstituir o que tenha relevância histórica. Mas a Comissão, pelo poder legal que o projeto aprovado lhe confere, poderá solicitar, consultar, investigar em todos os níveis e ouvir as pessoas que entender necessárias ao esclarecimento. É claro que tal trabalho vai aportar farto material que facilitará a tarefa dos historiadores, atuais ou futuros.

Por isso, podemos dizer que a lei que criou a Comissão da Verdade é um marco político e institucional, porque o Brasil, como um todo, abrangendo nação e sociedade, chegou, por todos os partidos, a um consenso: houve desrespeito aos Direitos Humanos e é preciso que, também, uma Comissão oficial representativa desse todo nacional cuide de esclarecê-lo.

A Comissão lidará com um valor respeitado por todas as civilizações: o valor da memória. Memória do que se passou com relevância e significado de alterar, influir ou determinar o curso dos acontecimentos.

É claro que o respeito à memória impõe a fidelidade ao que se passou e deve ser relatado objetivamente. O fato deve ser registrado do tamanho que o fato teve sem acréscimos das paixões. Daí o cuidado que a lei teve de exigir, expressamente, que os membros da Comissão não poderão incidir nas proibições dos incisos do seu artigo 2 verbis:
“§1º Não poderão participar da Comissão Nacional da Verdade aqueles que:

I – exerçam cargos executivos em agremiação partidária, com exceção daqueles de natureza honorária;
II – não tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício das competências da Comissão;
III – estejam no exercício de cargo em comissão ou função de confiança em quaisquer esferas do poder público”.

A questão que resta é saber se a Comissão tem poderes para impor punições, acumulando seu encargo de reconstruir fatos e mencionar os protagonistas e responsáveis de encaminhar a responsabilização penal ou civil.

A resposta está clara e peremptória na lei sancionada, no seu artigo 4º e no seu parágrafo 4º verbis: “As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório”.

Essa questão evoca a recorrente imprescritibilidade do crime de tortura e a obrigação que o Brasil assumiu em Tratados Internacionais de assim considerá-la, o que impediria o crime de tortura ter sido abrangido pela Lei da Anistia. Independentemente das razões de oportunidade política, à luz exclusivamente da interpretação jurídica, tal cobrança, embora por razões respeitáveis, não está embasada na mais correta interpretação.

Isso porque, a imprescritibilidade da tortura como crime imprescritível contra a humanidade foi aprovada e assumida pelo Brasil em julho de 1998, pelo Estatuto de Roma, e incorporado ao quadro legal brasileiro em outubro de 2002, ou seja, muito depois da ocorrência dos fatos a serem mais substancialmente elucidados pela Comissão da Verdade.

Controvérsia

E nesse ponto incide algo que é tão imprescritível como o crime de tortura, que é o princípio da anterioridade da lei penal. A mais que sólida, por secular, parelha romana: “Nullum crimen, nulla poena sine lege”. Nas punições, vale o momento temporal em que se pratica o ilícito porque ele é que determina a lei a ser aplicada. A lei posterior à data do ato praticado não pode retroagir.

O quadro legal da imprescritibilidade da tortura, hoje felizmente vigorante, só se configurou no Brasil depois dos fatos praticados nas datas máximas previstas na lei que criou a Comissão da Verdade.

A tortura é um fato ignóbil para quem a pratica ou para quem a tolera. Foi, por isso, nesses anos todos, pelo menos que eu saiba, que nenhum suspeito de tê-la determinado ou praticado, que esteve em posição de governo, foi nela mantido.

A reprovação moral à tortura, na sociedade brasileira, foi suficiente para que a exclusão política e social descesse sobre quem a praticou. Mais do que exclusão: asco nacional.

É claro que não a eliminamos, e são ainda frequentes as denúncias de sua persistência nos desvãos da investigação policial. Mas hoje temos toda uma arquitetura legal e, felizmente, robusta e tipificada, visando coibi-la e puni-la. Mas não a tínhamos ao tempo dos fatos que ocuparão a Comissão da Verdade. Isso, portanto, cria uma controvérsia que não me anima a excluir a tortura do campo de abrangência da Anistia, que, como movimento, ganhou apoio das ruas e dos comícios, com a palavra de ordem: “ampla, geral e irrestrita”.

O peso da reverência a preceitos exclusivamente jurídicos, quer na letra expressa da lei quer na força que emana do seu conjunto sistemático, afasta-me de considerar a punição física dos responsáveis, o que desnaturaria, a meu ver, a natureza pétrea da lei da Anistia.

Até porque, olhando hoje o que fizeram alguns vizinhos de continente que, voltando atrás, revogaram leis anistiadoras, não me parece que tal recuo tenha acrescentado um grama de qualidade à Democracia que estão, também, construindo.

Creio que o Brasil, pelo caminho que vem seguindo, se adiantou e seu padrão democrático tem muito mais abrangência e consistência do que os modelos circundantes.

Finalmente, registre-se: há teorias que, num quadro de enorme subjetividade preconizam e apoiam um “poder curativo” que recairia sobre a consciência de um país submetido à ditadura e se expressaria na necessidade de um ajuste de contas. A psicologia dos povos ainda é um campo aberto a teorizações múltiplas, mas lembre-se: toda reconstrução democrática não é obra de apenas um fator. Há multiplicidade de fatores.

Sete membros

Vários países, no mundo contemporâneo, saíram da ditadura ideológica ou política e cada um foi fazendo sua catarse – se cabe o termo – segundo circunstâncias que considerou propícias. As compensações psicológicas são variadas e vizinhas à abstração quando se cogita de um efeito que a individualização de responsabilidade pela ditadura poderia acarretar ao sentimento de justiça de um país. Não me parece que se Mandela tivesse ficado remoendo o horror do “apartheid” tivesse ampliado a independência de seu povo, mais do que conseguiu, com seu sentido de apaziguamento.
Como acho, também, que a repugnância ao nazifacismo, depois da última guerra mundial, veio muito mais da Declaração Universal dos Direitos Humanos do que do controverso Tribunal de Nuremberg.

A construção democrática concebida e executada como um processo em que a utopia, o sonho, a audácia estejam como referências inspiradoras não pode deixar de ater-se ao processo de formação de forças que, nas sociedades, apostam e alavancam para vários campos. O entrechoque de visões diferentes é a regra. A unanimidade, a exceção.

Com a Comissão da Verdade obteve-se um ganho: o Congresso Nacional apontou para a necessidade de, com chancela oficial, apurar-se fatos que desrespeitaram e ofenderam os Direitos Humanos. Para tratar do assunto, selecionar os fatos e colher os elementos probatórios que possam configurá-los, foi prevista uma Comissão de sete membros que, nas rigorosas exigências da lei, se equiparam aos atributos morais e de respeitabilidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

A lei da Comissão da Verdade buscou exigir méritos e créditos dos sete membros que devem direcioná-la. A Comissão, pela lei, não se atrela, de antemão, a nenhuma visão, a não ser a de buscar e comprovar ofensa aos Direitos Humanos. O que, desde logo, exige excepcional sensibilização de seus integrantes, pois o conceito de Direitos Humanos não se estratificou todo ele em normas constitucionais.

Vimos como o campo ainda é trabalhado por interpretações divergentes quando falamos de imprescritibilidade do crime de tortura. Muito, porém, está pacificado no Brasil, quase ao ponto de unanimidade, mas ainda resta espaço para controvérsia. Por tudo isso é que aumenta o valor da aprovação da Comissão da Verdade, pois mostra e comprova a seriedade de como desejamos caminhar.

Temos jogado alto os marcos de nossa Democracia em construção. Por isso mesmo, espera-se que a Comissão da Verdade, que vai lidar com fatos tristes, condutas ignóbeis, baixeza ética, sangue e lágrimas, que estiveram presentes no nosso passado, trate tudo com a sobriedade, a lisura e a exatidão que a verdade impõe. Nos limites da indignação.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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