09 janeiro 2019

Condições, salvo engano, para uma frente democrática

As dificuldades[1] para formar uma frente democrática no Brasil merecem reflexão. O tema circula entre nós desde os protestos de 2015 e 2016, quando ficou claro que a articulação pela derrubada de Dilma Rousseff tinha ganhado as ruas e que o seu sucesso implicaria problemas para o regime implantado sob a égide da Constituição de 1988. As massivas manifestações pró-impeachment faziam prever um desfecho perigoso para a maré montante do antilulismo. Embebidos nas descobertas da Operação Lava Jato e na extensa repercussão midiática da cruzada anticorrupção empreendida pelo “Partido da Justiça”[2], os protestos misturavam o “Fora Dilma” ao “Lula Preso”, mostrando que, além do inconformismo com a vitória petista em 2014, havia, também, um anseio pela criminalização de todo o campo popular. De acordo com os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, uma das provas dos nove de um processo de degradação da democracia “é a negação da legitimidade dos oponentes”. “Políticos autoritários descrevem seus rivais como criminosos, subversivos, impatrióticos ou como uma ameaça à segurança nacional ou ao modo de vida existente”, escreveram os norte-americanos.[3] Quando a liberdade de um dos lados da disputa é ameaçada, a democracia está em perigo.
No livro O lulismo em crise, procurou-se sustentar a ideia de que a congênere brasileira da Operação Mãos Limpas, que varreu a Itália nos anos 1990, deveria ser encarada como simultaneamente facciosa e republicana.[4] Não haveria espaço aqui para reproduzir os argumentos que levaram à conclusão de que, embora as descobertas de desvios bilionários revelassem um sistema de financiamento eleitoral em vigor desde 1945, do qual participaram os principais partidos dos últimos 70 anos, as investigações sediadas em Curitiba focaram, sobretudo, no Partido dos Trabalhadores (PT) e no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em consequência, o fio verde-amarelo que ligava os acontecimentos do mensalão, de 2005, aos do petrolão, de 2014, passando pelas manifestações de junho de 2013, remetia ao caráter parcial e seletivo das ações anticorrupção. Por consequência, em todos os estágios da via crucis lulista, que desembocou em avenidas coalhadas de camisetas da seleção canarinho, pedindo a criminalização do partido que governara o Brasil desde 2003, pairava a sombra da interrupção do processo democrático.
À primeira vista, foi justamente o tema da corrupção que impediu as tentativas de unidade democrática desde 2015 até a vitória de Jair Bolsonaro em outubro de 2018. O fato é que a tecnologia de formação de frentes mostrou-se insuficiente e, por mais apelos que fossem feitos, ela não se realizou. No lugar de debates em torno de pontos mais ou menos comuns, que constituiriam um programa mínimo, surgiu a exigência da “autocrítica”, uma espécie de senha para autorizar conversas de alto nível, que nunca ocorreram. Mesmo dentro da esquerda, no processo que acabou por desaguar no impeachment de 2016, criaram-se não uma, mas duas frentes: a Brasil Popular e a Povo sem Medo. A despeito de, em diversas ocasiões, trabalharem juntas, a mera existência de duas organizações pretensamente unitárias mostrava a dificuldade de unificação no âmbito da própria esquerda, quem diria, na relação com setores liberais.
Adicionalmente, o segundo mandato de Dilma foi errático. Primeiro, ela escolheu um ministro da Fazenda, Joaquim Levy, talhado para executar o programa do adversário no segundo turno de 2014 (Aécio Neves, do PSDB). Depois, no meio de 2015, resolveu limitar a política de austeridade do próprio Levy. Resultado: a mandatária perdeu o apoio da esquerda e da direita, tornando quase impossível a unidade na defesa do governo. A desunião dos progressistas se expressou nas eleições municipais de 2016, em que candidaturas progressistas se enfrentaram em diversas capitais (chapas únicas poderiam ter feito diferença no Rio de Janeiro, em São Paulo e, sobretudo, em Porto Alegre), com reflexos danosos para o campo popular, apesar das advertências em contrário.[5]
Entretanto, diante do sucesso da extrema-direita na eleição de 2018, a necessidade de pensar os meios de resistir à maré autoritária dobrou. Daí a urgência de refletir a respeito da frente democrática. O argumento deste artigo é que os últimos quatro anos trouxeram à tona dois obstáculos à constituição da mesma. O primeiro relaciona-se à dinâmica das organizações partidárias, o que dificulta até mesmo a unidade entre setores da esquerda com maior convergência programática. O segundo refere-se a divergências profundas sobre o lugar do Estado na promoção do crescimento econômico, que inviabilizam a ação conjunta de setores “democráticos” vinculados a diferentes posições do espectro político.
No que concerne ao obstáculo inicial, é necessário levar em consideração os interesses particulares de cada máquina partidária, os quais falam alto nas relevantes conjunturas eleitorais. Não se trata apenas do anseio por ver os respectivos filiados ocuparem os cargos em disputa, mas de entender que a própria participação nos pleitos é vantajosa em termos de visibilidade, arregimentação e levantamento de recursos. Consequentemente, submeter as postulações de cada sigla aos desígnios de uma entidade maior impõe concessões extraordinárias. A iniciativa do #Queroprévias, excelente coletivo que vem agitando há alguns anos a necessidade de primárias comuns a diferentes agrupamentos progressistas, tem esbarrado em tais empecilhos, que seriam ainda maiores se a mesma demanda fosse estendida a agrupamentos de centro.
Talvez o Brasil não consiga reproduzir os exemplos do Uruguai (Frente Ampla) e do Chile (Concertação), porque aqui as eleições presidenciais representam um jogo de tudo ou nada. O PSDB tornou-se um partido relevante apenas depois de Fernando Henrique Cardoso ter vencido os pleitos presidenciais de 1994 e 1998. O PT, por seu turno, cresceu por meio das três candidaturas derrotadas de Lula (1989, 1994 e 1998) e se consolidou depois das quatro vitórias consecutivas (2002, 2006, 2010 e 2014) para a Presidência da República. A experiência “parlamentarista” do PMDB, que entre 1998 e 2014 sobreviveu sem candidaturas presidenciais, talvez represente a exceção, apenas eficaz em uma organização voltada para o interior e intensamente regionalizada.
A necessidade de somar esforços para barrar a ascensão da extrema-direita, nos dois turnos de 2018, viu-se completamente desatendida. À esquerda, o PT-PCdoB, o PDT e o PSOL, de um lado, preferiram ter candidatos puro sangue no turno inicial. A ideia de ouvir as bases em uma “primária comum” jamais passou seriamente pela cabeça de nenhum dirigente partidário. A Rede, o PSB[6] e o PSDB, igualmente, caminharam separados, revelando-se surdos aos apelos de união do centro quando ficou claro que, sem ela, Bolsonaro iria para o segundo.[7] No segundo turno, Guilherme Boulos (PSOL) e Marina Silva (Rede), apoiaram Fernando Haddad (PT), mas apenas Boulos engajou-se de fato na campanha. O caso de Ciro Gomes (PDT) foi o mais emblemático das dificuldades da formação da frente partidária. Enquanto o seu partido declarou “apoio crítico” a Haddad no segundo turno, o candidato que ficou em terceiro lugar evitou manifestar-se abertamente, inclusive saindo do Brasil, e apenas gravou um vídeo na véspera do segundo turno, em que, contudo, não declarou o voto. O PSDB e o MDB mantiveram-se neutros.
Dificuldade semelhante manifestou-se no debate sobre os programas econômicos, o segundo obstáculo mencionado à obtenção de uma frente democrática. No período eleitoral, não foram poucos os que atribuíram a responsabilidade à candidatura Haddad, por insistir em uma política econômica considerada irresponsável e por se recusar a assumir o compromisso com a austeridade, tida como incontornável pelos porta-vozes do “mercado”. Nas discussões sobre a política econômica, muitas vezes a insistência na necessidade de uma autocrítica do PT ressurgia como pressão para que o partido se comprometesse a não adotar políticas alheias à austeridade.
O que foi interpretado por muitos como intransigência do PT refletia, na realidade, a consciência de que uma frente democrática amarrada pela defesa da austeridade seria inviável. Não apenas porque não conseguiria a adesão dos setores organizados da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, cuja mobilização nos últimos anos foi forjada justamente na resistência à austeridade. Mas também porque, como veremos adiante, a insistência na austeridade, cedo ou tarde, coloca a própria democracia em cheque.
Ambos os obstáculos sugerem as alternativas disponíveis à resistência democrática. Se os partidos não demonstram capacidade de se unir, a frente terá que se formar, de início, na base da sociedade. Se as divergências em torno da austeridade não podem ser superadas, uma frente democrática terá que assumir uma das posições em disputa.
Frente social
Dada a experiência infrutífera de quase quatro anos, talvez a única maneira de os partidos serem compelidos a integrar uma frente seja por meio do deslocamento dos eleitores. Caso percebam o risco de perder sufrágios, é possível que as burocracias partidárias se sintam compelidas a aderir a uma frente social. Mas, para que isso ocorra, tal frente precisaria pré-existir, de tal modo que o efeito negativo sobre as siglas que não a integrassem tivesse potência. Mas, será que, no plano da sociedade, a união encontraria maior facilidade? Um caso concreto ajuda a pensar. Dez dias antes do segundo turno de 2018, iniciativas espontâneas de centenas ou milhares de grupos bem distintos entre si ajudaram a que a diferença entre Bolsonaro e Haddad fosse reduzida de 20 para 10 pontos percentuais, mostrando que a superação das diferenças entre cidadãos é viável. Os “cafés com bolo” abriram horizontes para uma oposição à onda autoritária.[8] Em certo sentido, tais iniciativas dispersas revelam um impulso democratizante dentro da sociedade que, em junho de 2013, conviveu lado a lado com o movimento autoritário.
A vantagem da unidade construída no chão social é o caráter vivo, horizontal e de base da iniciativa. Numa sociedade altamente estratificada e cortada por diversas modalidades de controle, romper as amarras do cotidiano e partir para convencer o vizinho faz enorme diferença. Toda vez que energias coletivas congeladas conseguem furar a carapaça da individualização e se fazer presentes, é sinal de que o novo pode emergir. A novidade, no caso, seria a expansão e a associação dos setores democráticos, não apenas nos sindicatos e universidades, mas entre cidadãos dos centros e das periferias, de juízes e procuradores e associações de bairros, de médicos e engenheiros a coletivos culturais, de advogados e jornalistas a movimentos sociais.
Para arrastar os políticos e obrigá-los a se unirem, entretanto, seria necessário que a frente social se generalizasse e encontrasse modos de organização nacional. Ocorre que a função de generalizador e organizador das agitações moleculares historicamente foi dos partidos. Marx e Engels desvendaram a charada ao escrever: “Os comunistas só se diferenciam dos demais partidos proletários pelo fato de, nas diferentes lutas nacionais dos proletários, (…) ressaltarem e fazerem valer os interesses comuns da totalidade do proletariado” (grifo nosso).[9] Basta trocar “comunistas” por qualquer outra denominação (trabalhistas, socialistas, democratas etc.) para entender que o papel das agremiações partidárias é o de generalizar e organizar.
O PT cumpriu, em seu tempo, tais funções: era chamado de “partido dos movimentos”. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram, por sua vez, a rede horizontal que tornou viável a construção do PT. Mas, a guinada neoliberal da Igreja Católica e a conversão do PT ao lulismo, a partir de 2002, alteraram completamente o cenário. Na situação contemporânea, a velha construção de base religiosa foi desfeita e o partido se transformou no principal agente do campo popular, embora não mais expresse as “novas sociabilidades”.
Talvez na atual crise da democracia, os movimentos tenham que cumprir a tarefa por si mesmos. Até aqui tiveram dificuldade em fazê-lo. O Fórum Social Mundial, por exemplo, uma experiência riquíssima no início do milênio, precisaria ter ingressado nas lutas concretas dos países para ter cumprido tal papel. Compreensivelmente, entendeu não ser esta a sua parte, que caberia aos partidos, pois implicaria abrir mão do caráter horizontal da iniciativa. A participação direta nos conflitos de poder envolve sempre a necessidade de centralização, o que destrói antigas relações horizontais de solidariedade, forjadas quando as redes tinham apenas destinação discursiva. Acresce que a construção de organismos nacionais, sobretudo em um país continental como o Brasil, envolve custos não disponíveis para células democráticas dispersas. Um contraexemplo a ser analisado é o do Podemos espanhol, organismo político que nasceu da movimentação horizontal em torno da crise econômica.
Apesar dos percalços, a chance de uma regressão autoritária rápida, a partir da assunção de Bolsonaro, coloca em pauta a construção de um abrangente movimento democrático no Brasil. A memória do acontecido após o golpe de 1964, em particular, quando a resistência à ditadura alcançou o auge da campanha das diretas (1984), estimula o desejo de reencontrar a unidade daquela época. Se ocorrer o bloqueio da liberdade de expressão, de reunião e de organização, que sempre foi o modo de interromper o lento processo de integração social brasileiro, quiçá a bandeira unificadora da volta à democracia abrigue todas as aspirações de distribuição de renda, construção de um Estado de bem-estar social e resgate dos historicamente excluídos, às quais hoje se somam as reivindicações de gênero, de raça e de orientação sexual.
A experiência histórica mostrou que no bojo do movimento democrático contra o regime militar forjou-se uma nova sociabilidade, a qual foi decisiva para as conquistas da década de 1980. A Constituição de 1988 reflete o alcance da democratização “de baixo para cima”. Tal frente possivelmente teria a potencialidade de abrigar e refletir, sob a divisa da democracia, os anseios de integração que significariam a superação da herança colonial que ainda onera o presente. Mas, como veremos a seguir, além de superar os obstáculos políticos acima mencionados, tal frente teria que discutir, também, a questão da austeridade.
Austeridade
No plano partidário, como mencionado, uma frente democrática ver-se-ia diante da dificuldade de que seus potenciais integrantes defendem posições econômicas antagônicas. Há, de um lado, aqueles que se opõem tanto às medidas autoritárias defendidas por Bolsonaro quanto às políticas econômicas ultraliberais defendidas por seu representante para o tema, Paulo Guedes. De outro lado, há aqueles que recusam o autoritarismo, mas defendem uma estratégia econômica similar à proposta por ele. Para além do âmbito partidário, no entanto, o que tal divergência implica?
É preciso admitir que a recusa às políticas econômicas associadas ao PT parece não se restringir apenas às agremiações partidárias, mas ter se difundido para uma parcela significativa da sociedade. O contraste entre a forma como temas econômicos foram debatidos em eleições anteriores e na ocorrida em 2018 aponta nessa direção. Alckmin, em 2006, apressou-se para vestir a jaqueta com os símbolos de várias empresas estatais, quando suas propostas de privatização ameaçaram retirar-lhe votos. Bolsonaro em 2018 apenas desautorizou Paulo Guedes quando este propôs aumentar impostos (isto é, recriar a CPMF), implicitamente chancelando as propostas liberais (privatizações inclusive). A interpretação segundo a qual a crise econômica dos últimos anos foi provocada pelas políticas irresponsáveis do PT difundiu-se amplamente, quem sabe diminuindo resistências ao discurso neoliberal.
No entanto, desde o ponto de vista que adotamos, a aceitação mais ampla das propostas liberais está muito próxima de ultrapassar a data de validade. A reiteração da aposta na austeridade, que parece ser o rumo escolhido pelo governo Bolsonaro, não deverá ter capacidade de recuperar o crescimento econômico e reduzir o desemprego. Daí ser implausível que se consiga, por muito tempo, atribuir às políticas econômicas lulistas a persistência do desemprego elevado, da diminuição da renda das famílias e do resultante sofrimento social. Nos próximos anos, a continuidade tanto das políticas de austeridade quanto das condições econômicas adversas para a grande maioria tende a ampliar a adesão, na sociedade, a uma frente que, simultaneamente, defenda a democracia e recuse a austeridade. No espaço do presente artigo não é possível entrar em detalhes sobre os determinantes da crise econômica, mas é necessário voltar aos eventos dos últimos anos, a fim de avaliar os possíveis resultados de uma insistência na austeridade. Os dados econômicos deixam pouca margem a dúvidas, implicando, de modo geral, o argumento de que as políticas de austeridade em vigor desde 2015 não lograram recolocar a economia brasileira em uma trajetória de crescimento e frustraram sistematicamente as expectativas.
Os defensores mais ardorosos das medidas de corte argumentavam que um ajuste fiscal rigoroso, que sinalizasse o compromisso de manter o endividamento público em um percurso sustentável, recuperaria a confiança das empresas e das famílias, estimulando-as a gastar. Tais gastos, por sua vez, aumentariam a produção e, consequentemente, a renda nacional, mais do que compensando o impacto negativo sobre a atividade provocado pela diminuição de dispêndios governamentais. No jargão dos economistas, a expectativa recebeu o nome de “contração fiscal expansionista” e era associada ao trabalho de Alberto Alesina, professor de economia na Universidade de Harvard.[10] A experiência brasileira entre 2015 e 2018, bem como outras experiências ao redor do mundo, contribuiu para que tal formulação teórica caísse em descrédito, mesmo entre economistas conservadores.[11]
A nomeação de Levy para o Ministério da Fazenda, no final de 2014, foi uma aposta na austeridade. O investimento público, em 2015, foi reduzido em mais de 30%, ao mesmo tempo em que mudanças legislativas tornaram o acesso ao seguro-desemprego e às pensões por morte mais restrito. Em janeiro de 2015, com a virada para a austeridade já indicada, as “expectativas de mercado” divulgadas pelo Banco Central para a taxa de crescimento do PIB, naquele ano, era de 0,5%. Na realidade, o PIB despencou 3,6%.
Seria possível argumentar que a crise política afetou as expectativas dos agentes naquele ano, impedindo que a política econômica elevasse a confiança e produzisse efeitos positivos. De fato, o índice de confiança do empresário industrial, divulgado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que vinha caindo desde o início de 2014, se estabiliza em 2015, mas não se recupera. O choque de confiança viria apenas com o afastamento de Dilma Rousseff, em abril de 2016,sobretudo a consolidação da aposta na austeridade, que culminaria na aprovação do congelamento real dos gastos públicos por 20 anos, a chamada PEC do Teto, proposta pelo dream team liderado por Henrique Meirelles, traria confiabilidade. Nos seis meses subsequentes, o índice de confiança subiu vertiginosamente, atingindo em setembro de 2016 um nível que não se observava desde meados de 2013. Tal evolução não logrou, contudo, produzir os efeitos na atividade econômica previstos por Alesina. Em 2016, o PIB caiu mais uma vez, agora 3,3%. Para a maior parte da sociedade, os dois anos de queda ficaram marcados pela elevação abrupta da taxa de desemprego, que subiu de 7 para 13% (entre janeiro de 2015 e janeiro de 2017).
O ano de 2017 não contou uma história diferente. Após 36 meses de insistência na austeridade, a atividade econômica mal começa a recuperar-se da queda anterior, crescendo apenas 1%, enquanto o desemprego seguiu estável, entre 12% e 13%. Vale notar, ainda, que uma safra agrícola extraordinariamente alta e uma concessão “keynesiana” da política econômica (a liberação do saque das contas inativas do FGTS) parecem explicar mais o crescimento observado do que a austeridade. Em 2018, novamente, a situação não se alterou: de acordo com os dados disponíveis quanto este artigo é encerrado (dezembro de 2018), o crescimento do PIB não deve atingir nem 1,5% e o desemprego custará a cair.
A aposta na austeridade não apenas não gerou crescimento, como também não melhorou a própria situação das contas públicas. Ao cortar os gastos, o governo reduziu a própria atividade econômica, corroendo a base da arrecadação tributária. Como resultado, as receitas caíram mais rapidamente que os gastos, piorando a situação fiscal. Como o cachorro que corre atrás do próprio rabo, o governo aprofundou o corte, dificultando ainda mais a recuperação das contas públicas. Um exemplo claro do que tem sido chamado de austericídio.
A trajetória do resultado primário do governo, segundo estimativa do Ipea, é clara: o deficit de 0,6% observado em 2014 amplia-se para 1,9% em 2015 e para 2,5% em 2016. Só a tímida recuperação, observada em 2017 e em 2018, pelo efeito na arrecadação, levou a uma melhora. Mas, ainda assim, o deficit primário de 1,7%, observado em 2017, é mais de um ponto percentual maior do que aquele vigente antes da aposta na austeridade. Nos 12 meses acumulados até setembro de 2018, o deficit primário havia se reduzido apenas moderadamente, para 1,3%.
Novo governo deverá dobrar aposta na austeridade
À luz desse histórico, é espantoso que continue a se insistir na saída via ajuste das contas públicas, na contramão do que vem sendo discutido sobre política fiscal ao redor do mundo. Em meados de 2016, economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) admitiram a necessidade de reavaliar criticamente as políticas neoliberais. No caso da política fiscal, eles mencionam os trabalhos de Alesina e afirmam: “Os custos de curto prazo (da consolidação fiscal) em termos de produto e bem-estar menores e desemprego mais elevado foram subestimados”.[12] Recentemente, Paul Krugman foi ainda mais claro, argumentando que a crise brasileira é, ao menos em parte, explicada pela opção equivocada de política econômica que remonta a 2015. E conclui com incredulidade: “Incrivelmente, parece que eles [os integrantes do governo brasileiro] compraram a doutrina da austeridade expansionista.”[13]
A despeito das incertezas envolvendo o governo Bolsonaro, a liberdade que o presidente tem dado a Paulo Guedes, na condição de superministro, para compor a equipe da área econômica sugere que se pretende dobrar a aposta na austeridade. O perfil liberal dos indicados somado às propostas realizadas na campanha (de acelerar o ritmo do ajuste fiscal, retirar direitos trabalhistas e privatizar empresas estatais) indicam o mencionado rumo com clareza. Seria surpreendente se, desta vez, o resultado fosse diferente daquele observado nos últimos anos.
Seria possível argumentar que as condições políticas mudaram e, para nós, a acumulação de capital tem determinantes não apenas econômicos, mas também políticos. Em momentos de grande instabilidade política, por exemplo, decisões de investimento são adiadas. Não há como negar que tal efeito explica, ao menos em parte, a trajetória econômica dos últimos anos, marcados pela turbulência em torno do impeachment e pelas instabilidades do governo Michel Temer, especialmente a partir do escândalo em torno de Joesley Batista (2017). Legitimado pela vitória eleitoral, seria possível antecipar que o governo Bolsonaro teria mais sucesso em estabilizar a política e, assim, estimular a economia. Estabilização política não parece ser uma das vocações ou das intenções de Jair Bolsonaro, no entanto. A inspiração em Donald Trump e em Steve Bannon sugere uma adesão à estratégia de alimentar, em vez de superar, a polarização da campanha eleitoral.
Ademais, mesmo que a turbulência política arrefeça, é difícil encontrar motivos para uma aceleração econômica significativa. Do ponto de vista das empresas, a capacidade ociosa segue acima da média histórica. Alguma reposição de maquinário depreciado, após anos de baixo investimento, pode ser antecipada e parece explicar parte da recuperação do investimento observada este ano. Mas, com baixas expectativas de ocupar a capacidade ociosa e aumentar significativamente suas vendas, não há razão para as empresas expandirem substancialmente a capacidade produtiva, estimulando a economia a partir do investimento. No que concerne às famílias, seria ingênuo antecipar uma retomada significativa do consumo em um contexto de elevado desemprego, queda da formalização e renda salarial estagnada. A queda dos juros parece ter dado alguma folga, permitindo renegociação de dívidas anteriores, mas isso dificilmente compensa a precariedade do mercado de trabalho.
Tampouco parece plausível que a economia brasileira seja puxada pela economia mundial. Indícios de que em 2019 possa ocorrer uma desaceleração significativa da economia global vêm se acumulando, seja por conta de reversões cíclicas de algumas economias (em especial, a dos Estados Unidos), seja em decorrência dos efeitos da escalada da guerra comercial deflagrada por Trump. Em outubro, o FMI revisou para baixo suas projeções para o crescimento do PIB mundial em 2018 e 2019 e, recentemente, anunciou que novas revisões para menor são esperadas. O momento preciso das desacelerações globais é muito difícil de se prever, mas é razoável supor que uma economia mundial envolta em tantas incertezas dificilmente puxará a economia brasileira, de modo a compensar a demanda doméstica retraída.
Não se pretende argumentar que a economia brasileira permanecerá inevitavelmente estagnada enquanto a política econômica for orientada para a austeridade. Previsões econômicas em momentos de tantas transformações econômicas e políticas são particularmente difíceis. Episódios breves de crescimento, desencadeados por eventos inesperados, não podem ser descartados. Mas, as evidências sugerem que, na vigência da austeridade, o crescimento econômico não apenas será episódico e instável, como também contribuirá pouco para o longo percurso da integração social. Em outras palavras, ainda que os primeiros anos do governo Bolsonaro possam ser marcados por algum crescimento econômico, tal expansão não tende a ser suficientemente forte e duradoura para afetar as condições de vida das trabalhadoras e dos trabalhadores. Inclusive porque as reformas (tanto as já implementas quanto as propostas), ao retirarem direitos trabalhistas e desvincularem os gastos públicos, tendem a dificultar que os frutos de qualquer expansão que eventualmente ocorra sejam distribuídos mais amplamente. Como nos anos 1990, os interesses da classe dominante serão atendidos não pela acelerada acumulação de capital, mas pela generalização da acumulação por espoliação.[14]
Se a nossa análise estiver correta, cedo ou tarde as expectativas mobilizadas pela candidatura Bolsonaro de melhora das condições de vida serão frustradas. Como no caso do presidente Mauricio Macri, na Argentina, o otimismo inicial dos “mercados” terá sido injustificado, embora muito lucrativo nas especulações de curto prazo. No momento azado, a mencionada frente democrática teria condições de pressionar as agremiações partidárias a unificar a resistência, desde que aponte não apenas para a defesa da democracia, mas também para uma política econômica antiausteridade.
 Conclusão
Desde o início da crise, em 2015, fala-se, com razão, da necessidade de erguer uma frente democrática no Brasil, uma vez que não se podia subestimar o perigo que pairava sobre a democracia no país. Com o passar do temwpo, a ameaça autoritária se agravou. Em 2018, por fim, um político que nega legitimidade a seus opositores, uma das provas dos nove do enfraquecimento do regime, segundo Levitsky e Ziblatt, chegou à presidência da República.
Vimos, no entanto, como os partidos políticos, envoltos na luta eleitoral, têm se mostrado incapazes de construir a necessária unidade democrática. Ao mesmo tempo, no plano da sociedade, diferenças foram deixadas de lado em favor do objetivo maior de defender a democracia. Exemplo maior emergiu com a espontânea ação contra a candidatura Bolsonaro na reta final do segundo turno de 2018. Imagina-se, assim, que, talvez, uma auto-organização social possa obrigar os partidos a se unificarem, caso percebam que perderão votos se não o fizerem. A unificação de movimentos existentes nos mais diferentes setores poderia constituir uma coalizão à qual as siglas tivessem que aderir. O problema é saber qual programa tal frente deveria defender.
Desde o nosso ponto de vista, o fato de a austeridade impedir o crescimento e a geração de empregos remete a uma tensão mais geral, que veio à tona com a crise internacional iniciada em 2008, entre as políticas neoliberais e os regimes democráticos. Com diferentes particularidades em cada país, o neoliberalismo tem enfrentado crescentes problemas de legitimidade (infelizmente acossado pela extrema-direita), ao trazer consigo desemprego alto e persistente, relações trabalhistas precarizadas, desigualdade ascendente e serviços públicos deteriorados. Em muitos casos, face a oposições aguerridas, as políticas de austeridade precisaram do auxílio de expedientes autoritários para serem implementadas. Alimenta-se, assim, por duas vias a crise democrática contemporânea: tanto ao impor condições materiais precárias a grandes contingentes populacionais, quanto ao fragilizar os próprios regimes democráticos.
Mundo afora, a extrema-direita tem provado que esse contexto é um solo fértil para o seu crescimento. As forças democráticas que não assumirem a superação do neoliberalismo como programa, ainda que possam conseguir vitórias pontuais, não terão capacidade de fazer frente ao desafio imposto por esse novo conservadorismo radical e seguirão cultivando o terreno da crise democrática, ao não oferecer às maiorias um horizonte de superação da crise social e do desemprego. As iniciativas políticas que até agora propuseram-se a, simultaneamente, defender a democracia e recusar a austeridade ainda não tiveram vitórias expressivas, mas parecem apontar o caminho a ser trilhado.
O caso brasileiro parece apresentar uma particularidade, uma vez que a extrema-direita ascendeu eleitoralmente com um discurso neoliberal extremado. Isso lhe confere uma fragilidade maior, ao deixar para a resistência democrática o discurso de crítica à austeridade. É uma chance que não deve ser desperdiçada. Se insistirem nas políticas liberais, os setores democráticos brasileiros correm o risco de justificar as medidas autoritárias do governo Bolsonaro e de estimular um projeto que agrava a fragilização da democracia brasileira.  A ideia de que é necessário realizar concessões ao “mercado” para evitar o mal maior da escalada autoritária é ilusória por subestimar a imbricação entre austeridade e crise democrática.
A extrema-direita neoliberal brasileira, em contraste com o populismo de direita que está em alta no mundo, abre um espaço para a resistência democrática aliar defesa da democracia com recusa do neoliberalismo. Uma conjunção, aliás, que parece ser a condição para formação da ampla frente social, construída desde baixo, que as condições políticas expostas acima exigem. Um espaço que não se preenche sozinho, no entanto, e, que ao não ser construído, pode ser atropelado pelo avanço do autoritarismo.
[1]
Agradecemos a Roberto Schwarz, autor de “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’ˮ, pela inspiração do título.
[2]
“Partido da Justiçaˮ é uma metáfora para referir-se aos setores do judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal que se engajaram de maneira politizada no combate à corrupção.
[3]
Steven Levistsky e Daniel Ziblatt. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, Zahar, 2018, p. 67.
[4]
André Singer. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2018, Capítulo 7.
[5]
Ver André Singer. “Por uma frente ampla, democrática e republicana” In Ivana Jinkins et allii (Orgs.). Por que gritamos golpe? São Paulo, Boitempo, 2016.
[6]
Por razões a serem pesquisadas, o PSB, depois de lançar o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, preferiu a neutralidade após este se retirar da disputa.
[7]
Marina Dias. “FHC se reuniu com Alckmin antes de carta em que pede união de centro”, 21/92/2018. Em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/fhc-se-reuniu-com-alckmin-antes-de-carta-em-que-pede-uniao-do-centro.shtml, consultado 2/12/2018.
[8]
Cerca de dez dias antes da votação final, espalharam-se pequenas bancas colocadas na frente das casas, em que se convidava a população a tomar um café, comer um pedaço de bolo e conversar sobre a democracia.
[9]
Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 59.
[10]
Ver, entre outros, Alberto Alesina e Silvia Ardagna. “Large changes in fiscal policy: taxes versus spending” In Jeffrey Brown (org.). Tax Policy and the Economy. Chicago: University of Chicago Press, 2010, pp. 35-68.
[11]
Para uma narrativa sobre o auge e o declínio da formulação de Alesina, ver Paul Krugman. “The austerity delusion”, The Guardian, 29 de abril de 2015. Uma refutação empírica cuidadosa da hipótese da “contração fiscal expansionista” pode ser encontrada em FMI. “Will it hurt? Macroeconomic effects of fiscal consolidation” In FMI. World Economic Outlook: Recovery, Risk, and Rebalancing. Washington DC: FMI, 2010, pp. 93-124.
[12]
Jonathan Ostry, Prakash Loungani e David Furceri. “Neoliberalism oversold”. Finance and Develoment, 2016, p. 40 (tradução nossa).
[13]
Paul Krugman. “What the hell happened to Brazil? (Wonkish)”. The New York Times, 9 de novembro de 2018 (tradução nossa).
[14]
David Harvey. The New Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2005, capítulo 4.

É professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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