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Interesse Nacional
28 junho 2023

Corrupção e autocracia à vista no Brasil

Em 134 anos de história republicana, levando-se em conta a última legislatura quadrienal, as quase 30 emendas à nossa Constituição equivalem à soma de todas na história dos Estados Unidos, desde 1776. E já temos mais de 130 emendas desde 1988, nos 35 anos da Constituição-Cidadã.

No Chile, 60 desde 1980; na Argentina, 7 desde 1853; na Alemanha, 60 desde 1949; e, em Portugal, 7 desde 1978. Todos mais cautelosos com as alterações. Os congressistas mexicanos reformaram sua Constituição 251 vezes, mas num período de 105 anos – a Carta é de 1917. Este é um sinal para nós preocupante, que evidencia instabilidade política, que nos traz insegurança jurídica, e, com ela, perda de estabilidade e de previsibilidade.

Nosso Congresso também já cogitou subjugar o STF nas decisões não unânimes e quis impor a escolha do Corregedor Nacional do MP além de permitir que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pudesse interferir em investigações de Promotorias (PEC da Vingança).

O presidente da Câmara dos Deputados é eleito sem debate público e entronado com elevadíssimos poderes, podendo trancar a República – ali se decide, por exemplo, se terão ou não seguimento eventuais pedidos de impeachment formulados contra o presidente da República e as camadas mais intestinas dos bilhões opacos do orçamento secreto.

Nosso sistema de separação de poderes lamentavelmente respira, há anos, por aparelhos, caminhando o Brasil a passos firmes para virar autocracia, segundo o Instituto V-Dem de Gotemburgo. A impressão é que se estão perdendo os limites relacionados ao respeito à lei. Se necessária uma nova regra, aprova-se “de boiada”, pouco importando o que o povo pensa, assim como o tempo de vigência da lei anterior. Estamos na chamada terceira onda da autocratização vivida também pela Hungria de Viktor Orbán, pela Turquia de Recep Erdogan e pela Polônia de Andrzej Duda, conforme apontam Ziblatt, Levitsky e Runciman.

Lei que deixou de ser fonte segura do direito, perdendo prestígio, importando muito mais algumas interpretações judiciais que se fazem de acordo com certas circunstâncias, e não mais sendo necessário que se vivencie processo de desgaste, alteração da dinâmica social ou novas realidades para que seja necessário modificá-la. Na verdade, a acomodação de interesses nada republicanos enseja a aprovação de uma nova lei com “urgência de votação”, expediente naturalizado, que sacrifica o debate democrático.

O poder das pessoas julgadas e as circunstâncias de momento muitas vezes são decisivos, sendo muito atual a lógica do pensamento do filósofo Ortega Y Gasset – o homem é o homem e suas circunstâncias. As chamadas leis líquidas, usando terminologia de Baumann, evidenciam o uso do poder visando ao autobenefício, como vêm detectando os relatórios periódicos do instituto chileno Latinobarómetro, mais importante organismo latino-americano de mensuração nos campos político, social e econômico.

■  Anistia global aos partidos políticos

Exemplo muito contundente relacionado a este fenômeno toca ao universo partidário – a anistia global aos partidos políticos, proposta pela PEC 9/23, subscrita por cerca de 180 deputados federais (de um total de 513). As regras inerentes às ações afirmativas, impregnadas na Carta foram aprovadas pelo Congresso, assim como as regras de transparência e de financiamento da política.

Conta-se hoje com o fundo eleitoral de 5 bilhões (o maior do mundo) e mais 1 bilhão de fundo partidário anual, que é utilizado para comprar carrões, helicópteros, bancar festas e outros luxos e se conseguiu afrouxar a lei para tudo ali caber. As regras são violadas e, para escapar das multas, vira-se a mesa, sendo que muitos dos parlamentares que aprovaram as leis eleitorais visando obter votos nas eleições, agora defendem a anistia. E os partidos, que não aceitam se submeter a regras de compliance, fogem como podem do dever de prestar contas.

Além disto, simplesmente não há democracia intrapartidária – os partidos políticos têm verdadeiros donos e indicam sem pudor fichas sujas para serem candidatos e dentro da margem da lei, substituem os escolhidos por pessoas ligadas a eles, como foi o caso de Neudo Campos no Governo de Roraima em 2014, substituído por Suely Campos, sua esposa eleita, que, na primeira semana de governo, nomeou 19 parentes para o Governo.

Em Roraima, aliás a esposa do governador foi nomeada conselheira do Tribunal de Contas, para fiscalizar o próprio marido e sua administração. Isto ocorreu no Pará, em Alagoas, no Piauí e na Bahia. Uma prática nefasta vai se naturalizando.

Figuras poderosas vêm a público e defendem sem pudor que o nepotismo é virtuoso método de gestão pública, como se vivêssemos nos tempos dos condes e condessas e como se não houvesse na Constituição os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa.

■  Corrupção ultra legalizada

Projeto já aprovado na Câmara, hoje tramitando no Senado, prevê hospitalidades sem limite, de particulares a agentes públicos na regulação do lobby: voo em classe executiva, hospedagem em hotel sete estrelas em Dubai ou Paris em quaisquer eventos, com massagens e alimentação regada a lagosta e champanhe. É a corrupção ultra legalizada.

Além disto, a versão aprovada não exige a publicização de documentos transacionados durante tratativas, como seria exigível, como se estabelece na lei chilena, não determina publicização de agenda de agentes públicos e não assegura de forma clara e nítida paridade de armas para a sociedade civil nas tratativas com o Estado. O projeto aprovado na Câmara resultou da fusão de dois projetos, um deles com quase 15 anos de existência, e após a fusão, sem debate, instituindo-se a proverbial “urgência de votação”.

Sobre orçamento secreto, a presidente do STF, Rosa Weber, determinou que fossem divulgados os nomes dos congressistas beneficiados pela prática espúria, mas não houve a publicização da maneira determinada. Depois dos escândalos da década de 1990, com os “anões do Orçamento”, tivemos aprimoramentos no ordenamento jurídico em matéria de orçamento público, mas a matéria que diz respeito ao tema emendas de relator evidencia-se como prática inadmissível.

Isto é impensável numa democracia em que há governo público “em público”, como cravou Norberto Bobbio, sendo inconcebível que se admita tamanha desfaçatez perante a sociedade. O trabalho investigativo do repórter Breno Pires, que revelou esquemas de corrupção com as emendas de relator, foi um dos vencedores da 3ª edição (2022) do prêmio Não Aceito Corrupção na categoria jornalismo investigativo entre outras relevantes premiações neste campo.

Por outro lado, já nos ensinou o juiz da Suprema Corte dos EUA, Louis Brandeis, que “o melhor desinfetante é a luz solar”, referindo-se à essencialidade da transparência, obstruída frontalmente pelas emendas de relator, vez que a verba é direcionada de acordo com conveniências de ocasião política, servindo para compra de apoio político em votações cruciais, aniquilando a lisura da competição política, hipertrofiando o Legislativo.

Ou seja, em vez de termos destinação claramente previsível e direcionada a uma política pública determinada, quebra-se esta lógica e a própria lógica das emendas, entregando-se fatia gigantesca nas mãos de um indivíduo – sua majestade o relator do Orçamento. É sabido que a concentração de poder é desaconselhável e sempre produz altos riscos de corrupção.

Estamos diante de um bolsão bilionário de recursos não destinados como deveriam, defendido com ardor pelo chamado “Centrão”, chantageando o Executivo e até mesmo o Judiciário, que aniquila o princípio da separação dos Poderes, pedra angular do nosso sistema constitucional e do próprio Estado Democrático de Direito. Foi atacado e criticado com ferocidade em campanha, mas agora é praticado de forma mais sofisticada e convicta, sob nova direção.

Entretanto, propostas apoiadas pela sociedade visando ao enfrentamento preventivo da corrupção, como o fim do foro privilegiado, candidaturas independentes ou a prisão após condenação em segundo grau (praticada em todo o mundo ocidental democrático) são solenemente desprezadas e emboloram trancafiadas na gaveta da Presidência da Câmara.

A ideia de prevenir conflitos de interesses parece causar alergia. Observem-se as quarentenas, verdadeiras vacinas republicanas para proteger a sociedade em relação a tais conflitos de interesses que deveriam existir para todos os cargos poderosos, mas são literalmente demonizadas, pois se tenta, de todas as maneiras, fulminá-las. Aquelas poucas hipóteses previstas e estruturadas na lei das estatais (13303/2016), lei aprovada no pós-rombo da Petrobras visando proteger a eficiência de gestão de empresas públicas da cultura do compadrio, são metralhadas, visando interesses políticos de ocasião.

Pelo contrário, ministro do STF que acaba de se aposentar, que até outro dia decidia processos na suprema corte, mudou de lado de balcão e já está advogando em favor de empresas em relação às quais julgou causas. São centenas de bilhões, sem a observância de qualquer quarentena e este próprio ministro, antes de se aposentar deu despacho afirmando a inconstitucionalidade das quarentenas, que teriam supostamente restringido direitos e o STF segue examinando o questionamento sobre a constitucionalidade. No campo político, projeto de lei tem o mesmo objetivo de fulminar as quarentenas, tendo sido aprovado na Câmara e estando sob análise do Senado.

■  LGPD veio para proteger a intimidade

Enquanto isto, muitos tentam sistematicamente invocar a LGPD para não apresentar suas declarações de patrimônio, devidas em virtude da transparência constitucional (lembrar que o Brasil é signatário do Pacto dos Governos Abertos, de 2011, com EUA, Grã-Bretanha, Noruega, Filipinas, México, Indonésia e África do Sul). Os propósitos referentes a tais diplomas legais são distintos, sendo óbvio que a LGPD veio para proteger a intimidade, ao passo que a transparência protege o direito difuso à accountability. Mas, há quem aceite estes argumentos, e isto gera confusões permanentes e conflitos judiciais infindáveis.

A segurança jurídica se foi, ao tempo em que os acordos de leniência firmados entre o Ministério Público Federal e as construtoras do chamado clube das empreiteiras – num importe de R$ 8,1 bilhões, referentes a casos gravíssimos de corrupção, dos quais apenas reduzida parcela de R$ 1 bilhão foi quitada – são questionados judicialmente.

Três partidos apoiadores do governo afirmam que a Lava Jato teria “quebrado a economia do País”, mas a postulação é totalmente descabida aos olhos da lei, assim como a ideia de se pretender que as empreiteiras paguem o que devem por meio de obras sem a realização de prévias licitações.

Em primeiro lugar, vale lembrar que os acordos em questão foram submetidos e homologados pelo STF. É uma daquelas situações que consideramos criadoras de lei entre as partes. Existe um elemento pactuado, consensual, por um lado. E, por outro, ao ser revestido pelo manto da homologação jurisdicional da Suprema Corte, deixa de ser passível de questionamento o acordo, adquirindo total validade e absoluta blindagem conferida pela segurança jurídica.

Em segundo lugar, as empresas estavam devidamente representadas pelas melhores bancas de Advocacia do país, o que confere elevado e inquestionável grau de legitimidade aos acordos, firmados por quem de direito, devidamente orientados e assessorados, o que reafirma a validade de cada um dos acordos assinados e nenhuma destas empresas anuiu em relação a tal questionamento que ora os partidos fazem.

Em terceiro, nos termos expressos do artigo 5 da convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o Brasil é signatário, crava-se de forma categórica e inequívoca a inadmissibilidade da não punição da corrupção sob a despicienda alegação de dano à cadeia econômica produtiva. Ou seja, o suposto prejuízo à economia não representa justificativa cabível para não punir o crime de corrupção.

No recente caso Deltan Dallagnol, vale observar que temos Justiça Eleitoral organizada há 91 anos (mesmo tempo em que a mulher alcançou o direito ao voto), e o ex-coordenador da Força Tarefa da Lava Jato comprovou documentalmente que não mais respondia a processos administrativos quando se exonerou do Ministério Público e se candidatou.

O TSE entendeu que ele o teria feito visando driblar o espírito da lei, porque havia notícias que poderiam ensejar outros processos. Mas o fato é que a lei exige processos administrativos concretamente existentes e não havia. O alargamento interpretativo representa quebra da segurança jurídica, não permitido ao julgador. O Direito sancionador no Brasil tem esta característica de exigir prévia previsão legal de lei prevendo o comportamento e a punição, seja no âmbito Penal, Tributário ou Eleitoral, chamando a atenção a duração de 66 segundos numa deliberação com tão grave impacto, depois de ter sido sua candidatura registrada, ter ele tomado posse e exercido o mandato por meses como o deputado federal mais votado no estado do Paraná.

Não convence o argumento de que se exonerou cinco meses antes do tempo devido para burlar a lei. Era seu direito antecipar a exoneração e punições não podem ocorrer com base em conjecturas, especialmente neste nível de severidade, quando implicam desconsiderar a soberania do voto do povo. Diante da fraqueza da base política apoio do presidente, a banalização da judicialização, como o exemplo referente à lei das estatais pode estar sendo uma opção para resolver questões políticas numa arena em que tem mais controle, vez que ele e Dilma indicaram mais ministros.

Por mais incrível que possa parecer, ao invés de debater a revisão de uma lei no campo do parlamento, onde seria correto, há desvio, que inclusive representa distorção profunda em relação à separação dos poderes. Apesar de ter sido o partido do presidente responsável pela nomeação sequencial da PGR dentro da lista tríplice em quatro mandatos, garantindo respeito à autonomia do MPF, afinal estava escolhendo o próprio fiscal, agora passa a defender a indicação fora da lista, ao tempo em que um ex-governador, acumulando mais de 400 anos de condenações em 23 processos por corrupção confessa, é solto pelo STF.

Sente-se com amargor as instituições enfraquecidas, o tecido social esgarçado, erosão da democracia e da credibilidade. Perderam-se os limites, com regras violadas à luz do dia sem cerimônia e sem qualquer preocupação com as consequências, porque a impunidade está garantida, inclusive por lei.

Temos a sensação de que vivemos numa anarquia corrupta, arrogante e insensível aos 50% da população sem saneamento básico. Insensível aos miseráveis famintos, com cidadania faz de conta, sob a vigência da “lei da selvaˮ, em que sobrevivem apenas os mais fortes e poderosos. Estamos em meio a uma espécie de salve-se quem puder. Ao ser diplomado, o presidente não pronunciou a palavra corrupção uma vez sequer. Em sua posse, não obstante a bela simbologia da inclusão, da representatividade social na entrega da faixa, novamente não se pronunciou o termo corrupção, sendo certo que ela implica a negação das políticas públicas da educação, saúde, saneamento básico, moradia, segurança pública, meio ambiente, dentre tantas. Jamais em nossa história tivemos uma verdadeira política pública anticorrupção, sendo certo que outros países como o México, por exemplo, em tempos recentes instituíram-na por lei. Sem o necessário firme redirecionamento político, estamos condenados à desigualdade social, à autocracia, à fome, à exclusão e à injustiça.

É procurador de Justiça no Ministério Público de São Paulo, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção

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