11 abril 2015

Crise Hídrica: Origens Históricas, Responsabilidades e Soluções

Em tempos normais, a classe política e o comum do povo travam um diálogo de surdos e não somente não se ouvem, mas não se entendem, ou se entendem mas não acham relevante o que escutam. Por isso, em tempos que são também tempos de crise são surpreendidos pelos acontecimentos e reagem, por assim dizer, bestializados. Como, ao que se diz, reagiu o povo à proclamação da República.

Em tempos normais, a classe política e o comum do povo travam um diálogo de surdos e não somente não se ouvem, mas não se entendem, ou se entendem mas não acham relevante o que escutam. Por isso, em tempos que são também tempos de crise são surpreendidos pelos acontecimentos e reagem, por assim dizer, bestializados. Como, ao que se diz, reagiu o povo à proclamação da República.
A crise de abastecimento na cidade de São Paulo é resultado da negligência histórica da urbanização com rios urbanos, e não apenas um mero acaso climático. O desenvolvimento da metrópole – sobretudo a partir do boom demográfico desde o final do século 19 – teve como principal efeito colateral a destruição das águas, que passaram, então, a ser vistas como problemas, e não como virtudes para os espaços públicos. O atual cenário de crise é apenas um novo capítulo de uma longa história. O desabastecimento surge como a face mais sensível de outras crises, tão sérias quanto a do saneamento e a da drenagem.
Por causa da própria natureza do recurso, os usos múltiplos da água não podem ser estudados de forma separada; há uma interconexão entre abastecimento, saneamento, drenagem, transporte, energia e lazer. A água é sempre a mesma, servindo a diversas finalidades. Assim, qualquer solução deve encarar tanto uma compreensão histórica do problema, como uma revisão projetual integrada de elementos estruturais da paisagem urbana. Proponho um baile: um passo atrás e dois para frente, se queremos cortejar uma cidade que lide de forma positiva com as águas – algo que, por sinal, está no cerne da vida urbana moderna.
Essa abordagem urbanística e histórica quebra o senso comum – com poucos fundamentos científicos – de que a crise é resultado de um período seco, de falta de chuva. O problema mora, sobretudo, nas dimensões econômica e política. Os sistemas existentes de abastecimento e saneamento, por exemplo, não são naturais, e sim resultado de um processo de construção, com grandes investimentos de capital ao longo das décadas.
Se dependesse da natureza, não teríamos água encanada e nem estações de tratamento de esgoto. Essas redes precisam atender a demandas contemporâneas de crescimento populacional e econômico, além das ecológicas. Com o desenvolvimento da cidade, as redes são inevitavelmente ampliadas, para garantir não apenas a manutenção desses serviços, mas a manutenção robusta deles com possibilidades mínimas de percalços, já que a água é um elemento fundamental para a vida. No mínimo, a água deve ser limpa e não deve faltar.Uma breve história social dos rios em São Paulo
A atual crise hídrica pode ser uma oportunidade para revermos as bases urbanísticas de São Paulo. Para isso, devemos antes reconhecer os erros históricos. Não haverá soluções mágicas para os problemas hídricos da cidade.
A situação de desabastecimento é diametralmente oposta à lógica usada para a escolha do sítio pelos indígenas na região e, mais tarde, pelos portugueses: abundância de recursos hídricos. Existiam – na área onde viria a existir São Paulo – o Rio Tietê (o Rio Volumoso), o Jurubatuba (Rio Pinheiros ou o Rio das Palmeiras) e o Tamanduateí (Rio do Tamanduá Bandeira). Para obter água não era preciso ir longe, as infinitas nascentes da região proviam água fácil e relativamente segura.
Havia, no entanto, um problema: esses três grandes rios eram meândricos, ou seja, corriam em um terreno quase plano das várzeas e as águas não tinham um leito fixo. De tempos em tempos, vinham enchentes sazonais, que mudavam as curvas do rio e traziam peixes para secar nas margens. Daí veio o primeiro nome da cidade – São Paulo dos Campos de Piratininga –, “Peixe Seco” ou “Piratininga” em tupi guarani. Nos primeiros séculos, a questão da drenagem urbana – e da dominação humana sobre as águas – já se anunciava como uma questão central para a urbanização.
Desde 1888, a cidade viu sua população crescer vertiginosamente, passando de 60 mil pessoas para seu primeiro milhão no final da década de 1920. A industrialização impulsionava o crescimento, atraindo mão de obra. Ao longo desse processo, a área das várzeas, com as suas águas estanques, ficavam ainda menos salubres já que o esgoto ia, invariavelmente, parar lá. Pior: os terrenos altos e secos dos morros se tornaram escassos e caros. A população pobre, composta de operários, foi destinada, então, às regiões baixas, onde conviviam com o esgoto (sem nenhum tratamento) e com as enchentes periódicas como as dos anos 1906, 1919, 1923 e 1929.
Havia água dentro da casa das pessoas por causa das inundações, mas mesmo assim essas populações não tinham água potável nas torneiras todos os dias. Isso é muito semelhante ao que acontece hoje em alguns bairros de São Paulo, como o Jardim Pantanal.
Os serviços públicos não conseguiam acompanhar a velocidade de crescimento da cidade. Em 1877, São Paulo ganha a primeira empresa de saneamento e abastecimento, a Cia. Cantareira de Águas e Esgotos. Antes disso, o abastecimento era feito por meio de tanques públicos, como Reúno e Zunega, que captavam águas de alguns rios, como o Córrego do Saracura e o Ribeirão do Itororó. O principal reservatório da Cia. Cantareira era tão pequeno que hoje serve como um pesque-pague do Clube da Sabesp. Incapacitada de atender à demanda de crescimento, a Cia. Cantareira quebra em 1892, dando lugar a uma empresa pública, a Repartição de Águas e Esgotos (RAE). A RAE ampliou os serviços, mas nunca conseguiu universalizá-los.
A cidade se tornava uma metrópole nas primeiras décadas do século 20 e, mal essa metrópole nascia, as águas urbanas estavam em estado do colapso para as necessidades humanas: poluição de rios, enchentes devastadoras e desabastecimento. As pessoas mais afetadas eram sempre as populações pobres. A própria transformação da paisagem funciona como um mecanismo de exclusão. Nesse momento, já se desenrolava um processo que viria a ser marcante na urbanização de São Paulo: a dominação das águas e a ampliação dos serviços públicos estavam sempre a reboque do crescimento da cidade.
A década de 1920 chega como um momento chave da transformação dos rios em São Paulo. Finalmente, três projetos miram os problemas existentes. O primeiro deles, feito pela empresa canadense Light, transforma as águas em poderosas fontes de geração de energia. Não se trata de um projeto integrado de rios, mas uma verdadeira privatização das águas com finalidade apenas de gerar energia. O fluxo do Pinheiros – então retificado – foi invertido para desaguar na Billings e depois rodar as turbinas na Henry Borden, uma queda livre de mais de 700 metros em direção a Santos.
A represa, desde o começo, não foi concebida para abastecimento, sendo a poluição industrial, vinda com a reversão, um problema inerente ao sistema projetado. Nem mesmo a retificação do rio Pinheiros – que suprimiu os meandros existentes – teve como preocupação central a mitigação de enchentes. O objetivo da Light, a partir da concessão obtida junto ao poder público, era um só: geração de lucros a partir da transformação dos rios e das margens.
Outros dois projetos, concorrentes, miraram o rio Tietê. O experiente Saturnino de Brito – projetista dos canais de Santos – faz um projeto, considerando, de forma integrada, o abastecimento, transporte, saneamento, energia e lazer. Mas, ele incorpora também demandas ideológicas surgidas poucos anos antes: a criação de avenidas marginais ao longo do curso d’água e a necessidade de valorizar os terrenos lindeiros alagadiços. De qualquer forma, ainda que muito longe de ser um herói para os rios de São Paulo, Saturnino é generoso com as águas e propõe uma retificação do rio Tietê deixando-o com uma secção de 90 a 120 metros. Nas margens, haveria parques com 30 metros de largura. Além disso, o engenheiro propõe estações de tratamento de esgoto e lagos para lazer e acumulação de água de enchentes em fozes dos rios, como no Tamanduateí. O que está no centro do desenho de Saturnino são as águas urbanas.
Mas, o projeto dele não chega a ser executado, sem antes ser redesenhado, em 1929, por Ulhôa Cintra e Prestes Maia, muito ligados à política e aos interesses industriais. A dupla transfere o cerne do projeto urbano: saem os rios e entram os carros. O novo desenho estreita o Tietê para 70 metros, retira os grandes lagos, amplia a importância das avenidas marginais, esquece as estações de tratamento e os parques lineares. Mais do que isso, o Tietê é inserido dentro de um projeto urbano de grandes avenidas, que se sobrepõe aos mais importantes rios de São Paulo. As avenidas carcomeram o espaço e a importância dos rios; as margens se tornam loteamento de novos bairros. Vinga, assim, não o projeto para os rios que interessava o uso público das águas, mas o desenvolvimento de alguns setores econômicos, como a indústria automobilística e o mercado imobiliário.
As estratégias que arruinaram os rios em São Paulo
No começo dos anos 1930, o destino das águas em São Paulo já estava traçado e esse destino era sombrio para as próximas décadas. Curiosamente, enquanto as cidades europeias começam justamente a fazer planos de saneamento, aqui essa dimensão das águas urbanas é sistematicamente negligenciada. A ausência de investimentos em tratamento de esgoto e água de chuva acaba por condenar os rios à categoria de esgotos a céu aberto. No âmbito da drenagem, a grande enchente de 1929 mostra que a atuação dos governos e das empresas era insuficiente para prevenir que as inundações se tornassem mais e mais perigosas para as populações nos terrenos baixos.
No Plano de Avenidas, Ulhôa Cintra e Prestes Maia estabelecem o grande paradigma de ocupação territorial de São Paulo no século 20: valorização do transporte rodoviário individual, valorização imobiliária de várzeas, estreitamento dos rios por grandes avenidas, negligência de sistemas urbanísticos-fluviais. Não se trata apenas das grandes marginais ao longo do Tietê e do Pinheiros, mas também todas as avenidas de fundo de vale, como a 23 de Maio ou a 9 de Julho.
O espaço das águas na cidade de São Paulo foi reduzido para dar lugar a empreendimentos imobiliários nas várzeas – como os executados pela Cia. City – e, sobretudo, para as grandes Marginais. Os rios são, então, segregados do convívio com a cidade, separados por barreiras intransponíveis de carros e caminhões. A diminuição do leito do rio não deixa sequer espaço para uma infraestrutura hidráulica mínima, que incluiria estações de tratamento de água, canais laterais de captação de esgoto, parques fluviais nas margens e lagos de retenção de água contra enchentes.
A estratégia de ocupação do território paulistano estabelece um padrão depois copiado por quase todas as cidades brasileiras: os carros se tornam inimigos dos rios. O desenho das avenidas marginais imobiliza o redesenho das águas porque agora elas se encontram entrincheiradas por um sistema de transporte de alto desempenho e de grande importância econômica. A desativação do transporte fluvial de cargas e a lentíssima construção de transporte público metropolitano (o metrô) reforçam a característica rodoviária desse sistema de mobilidade urbana, absolutamente vinculada à morfologia dos rios.
Por sua vez, a captação de água para abastecimento, dentro desse cenário, teve que ir cada vez mais para fora da cidade, não porque houvesse escassez de recursos, mas porque as águas na cidade se tornaram totalmente poluídas e caras de serem aproveitadas. Aqui nota-se a inseparabilidade entre saneamento e abastecimento. Há um aumento na área de obtenção de água entre a inauguração da Represa Guarapiranga, em 1906, e o início do aproveitamento do sistema Cantareira, em outra bacia hidrográfica, nos anos 1970. O homem precisa ir cada vez mais longe para conseguir viabilizar economicamente o tratamento e a distribuição. E, mesmo nessas regiões distantes, os desmatamentos das cabeceiras dos rios decorrentes da periferização das cidades e de certas atividades agrícolas impactam a capacidade das nascentes.
A morte dos rios em São Paulo ganha contornos sádicos com uma estratégia difundida na cidade a partir da segunda metade do século 20, a qual se tornou uma marca de prefeitos, entre eles, Paulo Maluf: o tamponamento dos córregos, que passam a correr no subterrâneo, sob avenidas. Isso promove um simbólico enterramento dos rios que, como elementos feios e indesejáveis, desaparecem sob os carros.
O que se pode concluir a partir de uma análise histórica: (1) o total desequilíbrio hídrico de São Paulo não é de agora; (2) esse desequilíbrio foi projetado em favor de uns e em detrimento de outros (e dos próprios rios); (3) nada foi feito, nem mesmo nas últimas décadas, para reverter o processo; (4) e, como veremos em detalhes, é simplismo colocar a culpa na falta de chuva pelo desabastecimento.
A culpa não é de São Pedro
O sistema hídrico da cidade contemporânea se estrutura a partir dessa situação calamitosa dos rios. O desastre é sempre iminente, mas precisa ser empurrado com a barriga como se nada fosse acontecer. Enchentes aterrorizam populações pobres nas margens, favelas são construídas literalmente sobre esgotos e a ameaça do desabastecimento volta de tempos em tempos.
No começo dos anos 1990, São Paulo viveu uma séria crise e boa parte da cidade ficou sem água. Isso não se diferenciava do que já acontecia nas décadas anteriores, justificando, inclusive, a necessidade – incrustrada culturalmente – da existência de caixas d’água nas construções para garantir fluxo, mesmo se a tubulação da rua estiver vazia.
As reações dos políticos sobre os problemas das águas são sempre as mesmas: culpar a natureza. Frente às inundações, culpam as tempestades. Frente ao desabastecimento, a falta de chuva. Nada disso. A culpa não é de São Pedro. A existência de anos mais chuvosos e de menos chuvosos é algo natural e absolutamente previsível. Existem vastas estatísticas pluviométricas, desde 1930, para São Paulo. Essa base mostra a existência de anos fora da curva, tanto com menos chuvas, como picos pluviométricos em determinadas horas. Os momentos extremos são os dados fundamentais de projeto de abastecimento e drenagem.
No caso das enchentes, o sistema de drenagem deve prever volumes de água que aconteçam – estatisticamente – a cada período de tempo. Países como a Holanda, em que as inundações provocariam grandes prejuízos materiais, trabalham como uma taxa de reincidência de 10 mil anos. Ou seja, nos atuais sistemas de defesa holandeses, acontecerá só uma enchente nesse período. Em outras situações críticas, como a de Paris, os sistemas são dimensionados para ocorrências de inundações a cada 100 anos. O último grande evento na capital francesa aconteceu em 1910 e afetou 200 mil pessoas. Tudo isso parece uma verdadeira ficção se comparado aos sistemas de proteção construídos em São Paulo, que vive, invariavelmente, vários episódios graves anualmente.
No caso das secas, o dimensionamento do sistema também deve ser feito considerando as bases estatísticas, contando com a ajuda dos reservatórios. Não é exagero, por exemplo, que sejam construídas redes de abastecimento que aguentem mais de um ano de chuvas anormais, muito baixas, e que estejam descritas estatisticamente apenas a cada 100 anos. Esse não é o caso da situação atual. Pesquisadores sobre clima, como o professor Antonio Carlos Zuffo, da Unicamp, apresentam dados convincentes da sazonalidade de secas, como a que estamos vivendo desde 2013, a cada 35 a 50 anos – o que não tem nada a ver com mudanças climáticas globais. Segundo ele, isso se deve à ocorrência de explosões solares cíclicas que geram secas no hemisfério sul e chuvas no norte. Planejar sistemas para eventos nesses intervalos de tempo é mais do que plausível; é obrigatório em uma metrópole como a nossa. Caso contrário, o custo econômico de um desabastecimento pode quebrar a cidade inteira.
Toda a construção histórica das redes de São Paulo resultou em um sistema precário, operando no limite. As águas disponíveis estão tão poluídas que os usos dos recursos se tornam inviáveis economicamente por causa dos custos de tratamento. Esse é o caso, por exemplo, da própria represa Billings, mas também do reúso da água do rio Tietê e tributários. São Paulo depende, basicamente, da transposição de águas do longínquo Sistema Cantareira que, caso apresente baixo fluxo, compromete a robustez do abastecimento. A corda estourou, de forma nunca antes vista, no final de 2014.
O sistema, no entanto, já estava operando no limite, e os relatórios oficiais alertavam para os altos riscos. Em 2009, tínhamos um cenário perigoso no sistema: demanda de 64,02m³/seg e disponibilidade em 65,3m³/seg. O Relatório de Situação dos Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê mostra um crescimento linear da demanda por causa do crescimento econômico e populacional. De 2009 a 2011, a demanda passa dos nossos 64m³/seg para 66,1m³/seg, chegando, em janeiro de 2014, segundo informações da própria Sabesp, a 71m³/seg. Porém, a disponibilidade hídrica não conseguia aumentar na mesma proporção, e o déficit estava estabelecido, mesmo em situações normais de chuva.
A atual crise de desabastecimento foi, portanto, inclusive, anunciada pelos documentos oficiais; a crise foi desenhada por todo o processo histórico de negligência das águas na cidade, que destruiu a disponibilidade de água limpa e subjugou os rios a problemas a serem escondidos.
Definindo responsabilidades
As questões históricas são determinantes para a atual situação catastrófica. Mas, mesmo assim, é necessário definir as responsabilidades contemporâneas, tanto em relação a possíveis soluções quanto sobre as últimas décadas de atuação sobre as águas na cidade – que foram uma continuação das políticas formuladas no começo do século 20.
As leis brasileiras colocam responsabilidades para as três instâncias governamentais: a agência reguladora é federal; os conselhos e a gestão das águas são estaduais; e os serviços de abastecimento e saneamento são municipais. A responsabilidade atual do governo federal se dá por meio da Agência Nacional de Águas (ANA) e tem poder limitado sobre obras executivas. No caso das bacias vinculadas à metrópole de São Paulo e toda a gestão hídrica, a ANA tem uma posição tradicionalmente omissa. A grande responsabilidade sobre o gerenciamento dos rios e a organização de comitês recai sobre o governo do Estado.
As prefeituras da região metropolitana foram praticamente excluídas de suas responsabilidades por causa de jurisprudência aberta pelo STF: em regiões metropolitanas – definiu o tribunal para decisão referente ao Rio de Janeiro – os serviços de abastecimento e saneamento serão gerenciados pelos Estados e não pelos municípios. Em São Paulo, existe desde 1973, a Sabesp, hoje uma empresa de capital misto, em que o governo do Estado tem pouco mais de 50% das ações.
Antes do início da crise, a Sabesp era uma das cinco empresas mais lucrativas de serviços urbanos do mundo. As ações eram negociadas em mercados de São Paulo e Nova York. Os lucros distribuídos aos acionistas privados, só em 2013, foram de R$ 1,6 bilhão, saídos dos consumidores. Esse dinheiro deixou de ser investido em infraestrutura para a cidade. Curiosamente, os diretores da Sabesp não são remunerados por melhoras nos serviços públicos, mas apenas pelo crescimento dos lucros. Dessa forma, todo o sistema financeiro, com aval do governo do Estado de São Paulo, foi formado para privilegiar a valorização da empresa nas bolsas de ações e pouco foi pensado para ampliação de serviços, como, por exemplo, de tratamento de esgoto, que – se feito um balanço hídrico – não ultrapassa 32% do total de água abastecida.
Esse baixo índice se tornou viável por causa de uma manobra jurídica do governo do Estado. Em 1997, o Brasil aprovou a Política Nacional de Recursos Hídricos, inspirada em uma lei anterior de São Paulo. No entanto, o Estado de São Paulo não atualizou a lei para evitar que os rios fossem enquadrados conforme determinava a política nacional. Assim, o rio Tietê e seus tributários não se enquadraram dentro da categoria de rios urbanos – para os quais o tratamento integral de esgoto seria necessário. Os lucros altos resultaram também em reduzida manutenção da rede e, assim, altas perdas (os números variam entre 30% e 40%). Essa arquitetura financeira baseada no uso dos recursos hídricos lembra a atuação da Light no começo do século passado na cidade.
Mesmo com os problemas vinculados à Sabesp e ao governo do Estado, a responsabilidade das outras instâncias não pode ser eximida, e o governo federal fechou os olhos para o desenvolvimento da gestão em São Paulo. Faltam também fiscalizações nas instâncias municipais, já que o outro órgão existente, a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), está na instância estadual e, portanto, não tem isenção para fiscalizar as ações da Sabesp e das secretarias estaduais. Uma nova estrutura de gerenciamento hídrico não passa apenas por mudanças físicas nas estruturas da paisagem, mas também por uma nova organização política, com agências reguladoras eficientes. As diferentes instâncias precisam, de fato, fiscalizar umas às outras.
Soluções
Neste momento de colapso no sistema hídrico de São Paulo, olhar para soluções significa mudar o paradigma histórico de transformação e tratamento dos rios na cidade; significa reverter os padrões criados pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia. A partir dessa premissa, é possível estabelecer medidas de curto, médio e longo prazos, que reinsiram os rios dentro da vida urbana pública, considerando a ecologia das águas e um funcionamento economicamente sustentável dos serviços.
São Paulo teve, em fevereiro de 2015, em alguns bairros, como o Jardim Pantanal, desabastecimento ao mesmo tempo em que convivia com inundações – uma situação bastante análoga aos acontecimentos no começo do século 20 nas regiões de várzeas do Rio Tietê. O problema não é de abastecimento per se, mas de todo o uso integrado dos recursos. As soluções, portanto, precisam incorporar a dimensão dos usos múltiplos da água.
Na perspectiva de utilizar a crise como oportunidade para oferecer soluções, devemos saber também o que não se deve fazer: tanto o rodízio de abastecimento quanto a redução de pressão da rede, além de serem soluções paliativas que não oferecem nenhuma mudança no gerenciamento das águas, acabam por oferecer sérios riscos à saúde pública. Em regiões urbanas, os encanamentos são mantidos pressurizados para evitar que poluentes do lençol freático contaminem a água potável dentro dos canos. Os mesmos buracos por onde vazam as perdas, funcionam como porta de entrada para substâncias perigosas, como metais pesados. Por causa disso, arremedos como o chamado “racionamento” são, inclusive, proibidos em países como os Estados Unidos.
Além disso, o rodízio impõe consequências econômicas para os usuários que precisam fechar seus negócios sem a garantia de abastecimento. Isso é uma situação particularmente perversa da crise porque significa uma externalização de custos da concessionária de abastecimento: nos anos anteriores foi feita arrecadação e, em vez disso, de revertê-la em investimentos para evitar o desabastecimento, os lucros remuneraram os acionistas. Assim, a conta é paga novamente pelos consumidores, com a redução de suas atividades econômicas ou na compra de equipamentos para evitar a falta d’água, como bombas ou reservatórios.
A construção de poços artesianos privados intraurbanos e o uso de cisternas se mostram também soluções inapropriadas para políticas públicas em uma metrópole. Os poços permitem o uso pela população de água subterrânea poluída sem controle diário e também desequilibram a disponibilidade do lençol. Já as cisternas são aceitáveis para reaproveitamento em vaso sanitário e irrigação, mas as águas das chuvas são muito poluídas e não devem ser usadas para outros fins. A legislação europeia proíbe a existência de torneiras de jardins ligadas a cisternas, porque usuários desavisados, como crianças, podem beber essa água sem qualidade adequada.
Outra solução controversa é a busca por novas grandes fontes de água públicas, ou seja, a construção de infraestrutura para transposição de rios de outras bacias, como já acontece no caso do Sistema Cantareira. Isso significaria uma continuidade da lógica histórica de buscar água mais e mais longe. O impacto ambiental dessa situação é alto também: mais água em uma bacia significa desequilíbrio natural e uma piora nos problemas das enchentes, já que haverá maior quantidade de líquido no sistema. Em torno da cidade de São Paulo, praticamente todas as bacias, com exceção da bacia do Ribeira do Iguape, têm todos os seus recursos já comprometidos com outros usos. Assim, trazer água para a cidade de São Paulo é o mesmo que tirar o doce de uma criança do vizinho para dar aos nossos filhos.
Águas subterrâneas
A fonte d’água menos explorada no nosso estado são as águas subterrâneas, que por aqui ganharam o apelido de Aquífero Guarani. Com afloramentos no centro do Estado, seria necessário bombear o líquido por mais de 300 km até a metrópole de São Paulo, ou seja, trata-se de uma água de produção muito cara. Existem vantagens: as propriedades químicas das águas subterrâneas são geralmente excelentes, e alguns países, como a Holanda, inclusive reinserem águas superficiais no subsolo para extrair depois, conseguindo uma qualidade melhor do líquido.
A exploração do aquífero, de qualquer forma, não pode exceder sua capacidade natural de recuperação. Em outras palavras, a água que se infiltra na terra e chega ao lençol freático deve ser maior que a extração humana do recurso, caso contrário o sistema estará fadado à extinção. Existem estudos técnicos, hoje, precisos sobre isso. Em momentos de extrema escassez hídrica, sistemas de transposição, como o aquífero Guarani, poderiam ser usados emergencialmente. O uso constante dessa fonte parece, no entanto, trazer mais problemas, no longo prazo, do que soluções.
Para encarar a crise em sua essência, precisamos reaproximar o abastecimento do saneamento, além de redesenhar as margens. Essa é a chave da recuperação de erros históricos nos rios da cidade. A poluição das águas urbanas – a chamada crise do saneamento – nada mais é que a mesma crise do abastecimento. Se o esgoto fosse recolhido e tratado, dentro da própria cidade, seria possível reutilizar todo o líquido para consumo humano, reduzindo a quase zero a necessidade de captação de novos recursos.
Esse é o futuro das cidades. Lugares como Singapura, com seus 5 milhões de habitantes, fecharam o ciclo entre esgoto e água potável, a partir de um projeto desenvolvido desde os anos 1990. Assim, toda a água consumida é recolhida pela rede pública, tratada com alta tecnologia e devolvida para a torneira. Para isso, instalou-se um sistema industrial de tratamento, à prova de perdas.
O primeiro passo para São Paulo – e outras metrópoles brasileiras – é, portanto, reduzir as perdas no sistema, tanto de desvios ilegais quanto de vazamentos nas tubulações velhas. A rede de Singapura não teria viabilidade econômica com os atuais índices paulistanos de quase 40%. A prevenção de perdas é uma atividade cara e que deve acontecer sempre, sem descanso: técnicos munidos de equipamentos ultrassônicos percorrem as ruas fiscalizando vazamentos subterrâneos; uma vez identificados, equipes de obras entram em cena imediatamente para reparos na tubulação; algumas vezes, seções inteiras dos canos precisam ser refeitas. Sensores de alta tecnologia, adotados em Singapura, ajudam nesse serviço. Em outras palavras, a rede de abastecimento e esgotamento é como uma casa antiga; precisa sempre passar por reformas e manutenção.
Mas, diminuir perdas não bastaria, obviamente, para recuperar o sistema hídrico de São Paulo. Seria necessário, então, uma reforma urbanística de todos os rios e córregos, concebidos de forma integrada, como um sistema. Isso seria fundamental para a implantação de uma rede eficiente de coleta e tratamento de esgoto, além de reaproximar as pessoas do convívio com as águas urbanas, revalorizando essa dimensão lúdica da cidade. Uma intervenção dessas não se faz do dia para a noite. Porém, precisa começar o quanto antes e ter um cronograma de pelo menos três décadas de execução.
O entrincheiramento dos rios pelas marginais não deixou espaço para a instalação de infraestrutura de gerenciamento hídrico. Inevitavelmente, algumas pistas das rodovias lindeiras aos rios devem dar espaço para as águas novamente e, para isso, a velocidade de construção de metrô precisa ser aumentada com o uso de tecnologias mais rápidas e baratas de obras como a VCA (Vala a Céu Aberto). As próprias áreas marginais serviriam como espaços para implantação dessas redes de transporte público, como, por exemplo, os Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs) – trams de alta tecnologia.
É necessário também, em cada margem de todos os rios, traçar dois canais laterais subterrâneos. Um para águas de chuva e o outro para esgoto. Assim, os fluídos são interceptados antes de cair nos rios e destinados a estações de tratamento específicos. A última estação inaugurada em São Paulo foi em 1998. O melhor modelo para uma rede hidrográfica complexa como a da cidade é implementar pequenas estações nas fozes de cada curso d’água. Não se trata água de chuva (apesar de muito poluída) da mesma forma que se trata esgoto. Portanto, diferentes estações devem cumprir papéis separados.
A reorganização das margens, por fim, dá lugar a dois elementos paisagísticos: grandes lagos de retenção de água para evitar enchentes e parques lineares fluviais – esquecidos pelos planos de retificação. Os parques fluviais trazem de volta os rios como elementos centrais da vida, da paisagem urbana. Em vez de paredões de concreto, como os atuais existentes no rio Tietê, surgem calçadões arborizados em dois níveis. Estratégia similar à usada em cidades como Paris, Londres e Utrecht: o cais baixo fica junto das águas; o cais alto, em relação com uma rua local. O redesenho das margens não é simples capricho estético. Com isso, é possível construir os canais laterais subterrâneos e as linhas de transporte público. Além disso, o parque linear funciona como lugar de acumulação de águas em caso de inundações. O chamado cais baixo pode ser inundado sem prejuízos.
Instalação de medidores individuais
Por fim, como forma de controle de demanda, em vez do racionamento, a medida mais eficiente é a instalação de medidores individuais eletrônicos para todos os consumidores da cidade. Em casos extremos de escassez, cada um terá que gerenciar determinada cota de água por mês. Além disso, a conta fica individualizada e cada um paga pelo que consome, valorizando os recursos e reduzindo desperdícios. Apenas com um uso racionalizado é possível fazer a coleta e tratamento integral de esgoto para fechar o sistema com o abastecimento.
O custo disso? Certamente muito alto. Mas, como em todas as questões brasileiras, precisamos aprender a internalizar todos os custos. Qual é o custo para a saúde pública das pessoas vivendo sobre córregos poluídos? Ou o custo de dias sem atividade econômica por causa das enchentes? Qual é o custo do atual desabastecimento, com restaurantes, comércios e indústria fechando as portas? Se tudo isso fosse colocado na ponta do lápis, veríamos que seria mais barato reconhecer os erros históricos e redesenhar os rios da cidade de São Paulo para obtermos um gerenciamento eficiente. Exigiríamos um sistema que unisse os diversos usos múltiplos da água e oferecesse novamente as águas como virtudes para os espaços urbanos; um sistema que revisse os paradigmas do Plano de Avenidas e que fosse acompanhado de uma nova organização política de gestão, com empresas e instituições interessadas nas questões públicas, e não apenas no lucro de poucos. A água é um bem fundamental para a vida e para o crescimento das cidades. Não devemos negligenciá-la.

Gabriel Kogan é arquiteto e jornalista, formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Seu mestrado, em Gerenciamento Hídrico no Unesco-IHE (Holanda), pesquisou as origens históricas das enchentes em São Paulo.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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