18 setembro 2017

Cultura patriarcal, desigualdades sociais e criminalidade: uma armadilha fatal para as mulheres

Desde 2006, quando foi promulgada a Lei Maria da Penha, tem crescido a sensibilidade e a consciência coletivas a respeito da violência contra as mulheres no Brasil. Depois de mais de duas décadas de ativismo feminista em torno desse problema, o país parece compreender, finalmente, que não é justo, não é correto nem moralmente aceitável que metade de sua população viva em permanente estado de alerta e, muitas vezes, de medo da possibilidade de vir a sofrer algum tipo de violência masculina.

Desde 2006, quando foi promulgada a Lei Maria da Penha, tem crescido a sensibilidade e a consciência coletivas a respeito da violência contra as mulheres no Brasil. Depois de mais de duas décadas de ativismo feminista em torno desse problema, o país parece compreender, finalmente, que não é justo, não é correto nem moralmente aceitável que metade de sua população viva em permanente estado de alerta e, muitas vezes, de medo da possibilidade de vir a sofrer algum tipo de violência masculina. As redes sociais têm permitido entrar em contato com as percepções e sentimentos de milhares de meninas e mulheres a respeito da violência que experimentam em sua vida cotidiana. Relatos de abuso sexual por familiares e cônjuges, de assédio e abuso no transporte público, em festas e bares, estupro conjugal e violência doméstica podem ser facilmente encontrados na internet, sob a forma de depoimentos em perfis pessoais, em páginas específicas voltadas para a construção da sororidade e do empoderamento das mulheres para enfrentar o problema e entre os comentários de notícias, vídeos e textos de opinião que tocam no tema do machismo e da violência. O contato com esses materiais tem provocado as mais diversas reações: desde a surpresa e a incredulidade (como toda essa violência nunca foi vista?) até o reconhecimento das injustiças de gênero que estão na base do apagamento das experiências e do silenciamento da fala das mulheres sobre o problema, que é o mecanismo mesmo de ocultação da violência.
O fato é que agora lidamos com um fenômeno visível e amplamente debatido pela sociedade e por muitas esferas governamentais. Mas, a visibilidade e o debate público são apenas os primeiros passos para se desvendar os tipos de violência sofrida pelas mulheres e as dinâmicas sociais a ela associadas, que é o que efetivamente pavimenta o caminho para a construção de soluções eficazes de enfrentamento do problema. A violência contra as mulheres é um fenômeno complexo, sensível e multideterminado, que, apesar de ser um efeito direto da cultura patriarcal que molda a nossa sociedade e atinge todas as mulheres, expressa-se de forma distinta em diferentes grupos populacionais. É verdade que todas as mulheres estão expostas à violência masculina, mas não é verdade que estão expostas aos mesmos tipos ou, muito menos, à mesma intensidade, frequência ou grau de letalidade dos episódios de violência. Ainda estamos muito longe de uma caracterização precisa e exaustiva da violência contra as mulheres, mas já se sabe que o acesso a certos recursos materiais e simbólicos – como escolaridade, informação, renda própria e redes de proteção e apoio, por exemplo – é o que possibilita que muitas mulheres saiam das situações violentas antes que se tornem muito danosas ou mesmo fatais. Sabe-se, ainda, que determinadas condições de urbanização – como iluminação, ocupação de áreas vazias e degradadas, transporte coletivo seguro, uso misto das quadras, entre outras – funcionam como elementos de prevenção da violência sexista e de proteção das mulheres. Desigualdades no acesso a esses recursos e condições, portanto, irão determinar o tipo, a frequência e a intensidade da violência sofrida pelas mulheres, ainda que todas as mulheres estejam imersas na mesma sociedade, orientada pelos mesmos valores e normas patriarcais.
O homicídio é, provavelmente, o tipo de violência que melhor expressa a conjugação perversa entre as desigualdades sociais e a cultura patriarcal, agravada, no caso brasileiro, pelo enraizamento de redes de criminalidade em bairros e comunidades periféricas de grandes cidades brasileiras. É justamente nessas áreas que se concentram as taxas mais altas de homicídios de mulheres, o que faz com que o seu perfil se aproxime mais do perfil dos homens que morrem assassinados do que das características de mulheres que sofrem formas menos graves de violência. Neste artigo, discuto alguns dos mecanismos de produção desse trágico efeito da conexão entre injustiça social, desigualdades de gênero e expansão do crime e da violência urbana na sociedade brasileira.

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Até recentemente, o homicídio de mulheres só ganhava visibilidade quando acontecia no âmbito de uma relação amorosa e/ou apresentava evidências de crueldade extrema. Com o recrudescimento da violência urbana, porém, os assassinatos de mulheres passam a ocorrer com maior frequência, levando à associação imediata entre crescimento da criminalidade e vitimização feminina. Nos países em que são muito altas as taxas de homicídio – como Brasil e El Salvador, por exemplo –, cerca de metade dos assassinatos de mulheres ocorrem em situações distintas da violência conjugal, embora o que mais chame a atenção de estudiosos e da população seja justamente a outra metade, associada às relações amorosas. A violência cometida por parceiro íntimo, especialmente quando letal, é um tipo de violência que atinge quase que exclusivamente as mulheres, e isso, associado às suas consequências para toda a família, justifica a atenção que tem sido dada a essa configuração específica de homicídio. Mas, assim como os homens, as mulheres também são mortas em contextos de criminalidade urbana e, além disso, também morrem em decorrência de agressões cometidas por outros familiares, especialmente quando crianças ou idosas, e pela violência sexista cometida por homens conhecidos e desconhecidos. Assim, apesar de as mulheres representarem cerca de 10% das vítimas de homicídio no Brasil, as situações nas quais elas são mortas são distintas e, possivelmente, mais diversificadas do que aquelas nas quais os homens são assassinados, o que coloca desafios substanciais para o enfrentamento do problema no campo das políticas públicas e da transformação da cultura.
Homicídios de  jovens
O quadro dramático dos homicídios no Brasil é amplamente conhecido, mas é importante trazer à cena algumas informações que auxiliam a compreensão dos contextos nos quais as mulheres são assassinadas. Em 2014, foram registrados 59.627 homicídios no Brasil, o que representa uma taxa de 29,1 casos por 100 mil habitantes e corresponde a mais de 10% de todos os homicídios do mundo, de acordo com o Banco Mundial. A magnitude do problema é especialmente grave entre a juventude: 46,4% dos óbitos de homens entre 15 e 49 anos são causados por homicídios e na faixa de 15 a 29 os homicídios representam 53% das mortes masculinas e 14,8% das femininas. No período de 2004 a 2014, o problema se agrava nas regiões Norte e Nordeste e em cidades de médio porte no interior do país. O Atlas da Violência (Cerqueira et al, 2016) analisou as taxas de homicídio em microrregiões do Brasil e identificou que foi muito grande a velocidade na piora dos índices naquelas que apresentaram o maior crescimento1, levando ao “esgarçamento das condições de segurança” em cidades que até o ano 2000 eram pacíficas. Ao mesmo tempo, fortalece-se o perfil afrodescendente das vítimas e, provavelmente, dos autores2. Em 2014, dez anos depois da promulgação do Estatuto do Desarmamento, 76,1% de todos os homicídios foram cometidos com armas de fogo e apenas 13 estados reduziram a proporção deste tipo de homicídio nesse período.
Em 2014, a taxa de homicídios de jovens foi 61/100 mil, quase duas vezes maior do que a taxa nacional de 29,1/100 mil habitantes, e nos estados de Alagoas, Ceará, Rio Grande do Norte e Sergipe a taxa ultrapassa a centena. Mas, é entre os homens jovens (e negros, como veremos a seguir), que as taxas atingem níveis dramáticos: no Brasil, a taxa é de 113,2 para cada 100 mil jovens de 15 a 29 anos e passa de 200 em Alagoas e no Rio Grande do Norte. Nesse grupo etário, mesmo as menores taxas são maiores do que a taxa global nacional: 37,1 em São Paulo e 43,3 em Santa Catarina. De acordo com o Atlas da Violência, indivíduos com 21 anos e menos de oito anos de estudo têm 5,4 vezes mais chances de virem a ser assassinados do que aqueles com mais de oito anos de estudo. Nesse mesmo ano, a taxa nacional para a população negra foi de 37,5/100 mil e, aos 21 anos, negros têm 147% a mais de chance de serem assassinados do que jovens não negros (Cerqueira et al, 2016).
Mulheres negras
Entre as mulheres, as taxas são muito menores do que entre os homens. No país, a taxa de 2014 foi 4,6/100 mil mulheres, o que representa 13 homicídios por dia. Em 2013, o Brasil ocupava a quinta posição, entre 83 países, no ranking da OMS que avalia os homicídios de mulheres, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa, com uma taxa de 4,8 casos para cada 100 mil mulheres. Mas, entre elas, também se reproduz a sobrerrepresentação da população negra: a taxa para as mulheres brancas foi de 3,2/100mil e para as negras, de 5,4/100mil. Entre 2003 e 2013, a taxa de homicídios de mulheres brancas sofreu uma elevação de 11,9%, mas entre as negras a variação positiva foi de 19,5%. Se usarmos o marco de 2006, ano de promulgação da Lei Maria da Penha, o diferencial racial se torna mais eloquente: a taxa para as mulheres brancas cresceu 3,7% entre esse ano e 2013, enquanto a taxa para as mulheres negras elevou-se 13,7%, ou seja, dez vezes mais. Do mesmo modo, a distribuição etária dos homicídios de mulheres assemelha-se à masculina, com uma incidência quase nula até os 10 anos, crescendo até os 18/19 anos e declinando lentamente até a velhice, com a diferença de que, entre os 18 e 30 anos há uma maior vitimização proporcional das mulheres, certamente em função da presença da violência doméstica nessa faixa de idade (Weiselfisz, 2015).

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Assim, os homicídios não se distribuem de forma homogênea nem pelo território nem entre os diferentes grupos populacionais. Pelo contrário, concentram-se em poucos municípios do país e em poucos bairros e comunidades, que compartilham fatores de vulnerabilidade à morte violenta para homens e mulheres. Urbanização, densidade demográfica alta, desorganização social intensa e convivência com áreas de grande e acelerada produção de riqueza, em um quadro de fragilidade do controle institucional, são alguns dos elementos comuns a esses territórios que favorecem a eclosão dos homicídios, transformando-os em áreas intensamente conflituosas e críticas.
Embora geralmente sejam dominados por grupos criminosos formados por homens, os contextos violentos também afetam as mulheres e produzem situações que ampliam sua vulnerabilidade à morte violenta.  Nesses territórios, o recurso à violência para a solução de conflitos é um elemento das interações comunitárias, ultrapassando as relações entre grupos e indivíduos criminosos e alcançando o âmbito das relações interpessoais, familiares, conjugais e comunitárias, das quais as mulheres participam tanto quanto os homens. Essas dinâmicas violentas foram identificadas no Brasil do século XVIII e brilhantemente interpretadas por Maria Sylvia de Carvalho Franco, em seu clássico estudo “Homens Livres na Ordem Escravocrata” (1973). Machado da Silva (2008) formula o conceito de sociabilidade violenta para se referir ao que considero uma atualização ou um desdobramento das dinâmicas tratadas por Carvalho Franco. Esse autor trata do contexto atual de algumas favelas cariocas, no qual a violência criminal e policial desestabiliza a sociabilidade local, dificulta as interações e afeta a confiança entre as pessoas. Além disso, a convivência com o medo e a desconfiança generalizada das camadas médias e altas leva os moradores das favelas a um esforço de “limpeza simbólica” para se apresentarem no espaço público como interlocutores legítimos, sendo-lhes também cerceada a palavra e a vida pública em condições de igualdade com os demais grupos sociais.
Processos violentos
A existência de diferentes tipos de sociabilidade em uma mesma sociedade pode ser interpretada como a expressão de momentos distintos do processo civilizador, tal como formulado por Norbert Elias (1990), para se referir à ampliação e à intensificação das redes de interdependência humana, que leva a sociedades mais funcionais e mais pacificadas, em contraposição às sociedades segmentais, nas quais é menor a interdependência e maior o recurso à violência como meio de resolução de conflitos. Os efeitos civilizadores sobre a violência resultam do monopólio do Estado sobre o uso da força e da sua capacidade de coibir o uso de armas e de punir a violência ilegítima. Além disso, o alargamento das cadeias de interdependência dado pela divisão do trabalho, produz controles recíprocos entre grupos e indivíduos, exercendo um efeito democratizante e civilizador sobre as relações sociais.
No caso do Brasil, a maior presença de processos violentos nas áreas de precariedade e desorganização social pode ser tomada como uma evidência da força das relações segmentais nesses territórios. Condutas masculinas associadas ao etos viril, motivos fúteis como móveis dos conflitos, desigualdades de gênero acentuadas, famílias chefiadas por mulheres, ausência de supervisão parental e institucional sobre crianças e jovens, entre outras, são algumas das características encontradas nas áreas que apresentam altas taxas de homicídio e que coincidem com a descrição dos grupos segmentais, tal como colocado por Elias. A natureza irregular dos processos civilizadores produz efeitos heterogêneos no conjunto da sociedade, deixando em aberto a possibilidade de retrocesso em estratos sociais específicos. Zaluar (1998), por exemplo, identifica traços de retrocesso civilizador na sociedade brasileira dados pela exacerbação dos localismos e pelo fortalecimento do etos guerreiro. Para ela, na atualidade das comunidades de periferia das grandes cidades brasileiras, o que está no centro do etos guerreiro é a concepção de um indivíduo completamente autônomo e o uso da arma de fogo, do dinheiro, da conquista das mulheres e do enfrentamento da morte como forma de afirmação diante da coletividade.
Mas, estas não são comunidades isoladas, fechadas em sua própria cultura. Pelo contrário, estão imersas em um país moderno, industrializado, e estão expostas aos processos macrossociais que atingem a sociedade em sua totalidade, mas produzem impactos distintos em diferentes grupos populacionais, justamente pelas especificidades que apresentam no plano da sociabilidade. Assim, processos de crescimento econômico e de emancipação das mulheres, por exemplo, articulados às condições sociais concretas e à condição das mulheres em cada tipo de grupo (comunidades “violentas” ou áreas urbanizadas e submetidas à regulação cotidiana do Estado), produzem proteção ou risco com relação à possibilidade de as mulheres virem a ser assassinadas e às circunstâncias em que isso pode acontecer.  Além disso, o fato de estarem inseridas em uma sociedade com um Estado relativamente estável e uma rede complexa de interdependências estabelecida, lhes expõe a pressões “civilizatórias” e formas de controle oriundas das intervenções estatais – especialmente por meio da polícia e das políticas sociais – e dos grupos ligados de modo funcional, que coexistem na mesma sociedade (Portella, 2014).

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 Vítimas negras e pobres
A caracterização dos homicídios a partir da análise das taxas não responde às questões colocadas no início deste artigo. Como explicar o fato de que a violência de gênero atinge mulheres de todas as classes sociais, mas a maioria das vítimas de homicídio é negra e pobre? E por que esse número de  mulheres é mais parecido com o de homens assassinados do que com o de mulheres brancas e de outras classes sociais, que também enfrentam a violência e a discriminação de gênero? O que acontece na vida dessas mulheres para que elas corram um risco maior de serem assassinadas quando comparadas a outras brasileiras?
Foi movida por essas questões que desenvolvi minha pesquisa de doutorado, tomando o estado de Pernambuco, um dos mais violentos do país, como caso de estudo. Analisei 37 mil casos de homicídios ocorridos entre 2004 e 20123, com vítimas de ambos os sexos, e pude identificar quatro cenários nos quais a morte violenta acontece: criminalidade, conflitos interpessoais, violência doméstica e familiar e violência cometida por parceiro íntimo, conceituados teoricamente como configurações de homicídio.
Na configuração da violência doméstica e familiar as vítimas são meninas e os crimes acontecem principalmente no interior do estado. Trata-se das situações de abusos físicos e/ou sexuais por parte de parentes do sexo masculino – em geral, pai ou padrasto -, no ambiente da casa da família ou dos arredores, que podem evoluir para a morte pela fragilidade da compleição física infantil ou pela intencionalidade do agressor. Pode, ainda, envolver crimes cometidos por conhecidos, quando meninas são raptadas, estupradas e encontradas mortas em locais próximos às comunidades em que residem. A configuração da violência cometida por parceiro íntimo também predomina no interior do estado, e os crimes são cometidos com arma branca, na residência da vítima, que, em geral, é adulta. Esse tipo de homicídio é o desfecho do conhecido “ciclo da violência”, do contínuo e progressivo controle masculino sobre a vida das mulheres, com base nos padrões patriarcais de gênero.
Na configuração da criminalidade, as vítimas são jovens de ambos os sexos, que são assassinados em via pública, com arma de fogo, na capital e na região metropolitana. Essas mortes resultam de conflitos armados pela disputa de territórios e recursos materiais e simbólicos associados ao tráfico de drogas e outras atividades criminais, de conflitos entre criminosos e policiais, entre traficantes e usuários de drogas e entre usuários de drogas, especialmente crack. Há também nesses casos a morte por “efeito colateral”, quando a vítima é assassinada porque está no local do crime ou mantém algum tipo de relação (não criminal) com as pessoas envolvidas nos conflitos. Quando se trata de vítimas do sexo feminino, é mais provável que as mortes tenham ocorrido nos contextos do uso de drogas, como efeito colateral e menos como resultado de sua atuação direta em atividades criminosas. A presença feminina nas atividades criminais é menor que a masculina e, em geral, concentra-se na base da hierarquia, com menos uso de armas de fogo e menor envolvimento em conflitos diretos, especialmente com a polícia.
Mercado de drogas e armas
A quarta configuração se associa à violência interpessoal e não foi identificada para as vítimas do sexo feminino. Trata-se de crimes cometidos no interior do estado, pela manhã, com arma branca e outras armas, na residência da vítima, em estabelecimentos de lazer e descampados, vitimando adultos. Essas características definem um conjunto muito amplo de conflitos interpessoais, que ocorrem entre homens adultos pelas mais variadas razões, como brigas em bares e festas ou desentendimento familiar ou nas relações de vizinhança e trabalho.
Mas, a nossa questão permanece: saber como se morre ainda não diz sobre as razões pelas quais o homicídio se concentra em algumas áreas e não em outras e tampouco explica por que as vítimas são pobres e negras. A análise dos fatores macrossociais associados aos homicídios me permitiu a aproximação de algumas dinâmicas que podem explicar a maior exposição de mulheres negras e pobres, residentes em áreas precárias, ao risco de serem assassinadas nas situações identificadas. Essas dinâmicas se expressam no nível do território e referem-se às normas que orientam condutas individuais e coletivas, às condições sociais das populações, às relações de gênero, aos processos econômicos e aos processos de emancipação das mulheres.
Dito de outra forma, as recentes transformações sociais, econômicas e culturais ocorridas no país – nas quais se inclui a ampliação e o fortalecimento das redes criminosas que atuam no mercado de drogas e armas – articulam-se de forma distinta com as condições normativas e materiais identificadas nas periferias urbanas e nas áreas de classe média alta e elites. Nas periferias, esse processo leva ao agravamento de formas tradicionais de violência contra as mulheres e ao surgimento de novos contextos de vitimização feminina e, mais importante, à potencialização dos riscos pela associação entre os dois processos. Nos contextos de classe média e das elites, as condições nas quais vivem as mulheres não as impede de viver diferentes tipos de violência, mas lhes disponibiliza um conjunto importante de recursos materiais e simbólicos, que lhes permite escapar das situações antes que se tornem fatais. De forma inversa, é a ausência desses recursos que coloca as mulheres pobres e negras em maior risco de serem assassinadas. Na próxima seção, procuro explicar brevemente os processos identificados em Pernambuco e que podem ajudar a pensar nas situações semelhantes em outros estados do país.

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A legitimação do uso da força e das armas presente nos territórios de atuação de grupos criminosos alcança outras esferas da vida, consolidando modos de interação comunitários e familiares nos quais a violência ganha espaço. Não se pode esquecer, além disso, que a violência é um componente essencial das relações comunitárias no Brasil, independentemente da presença de grupos criminosos (Carvalho Franco, 1974), de tal modo que as dinâmicas comunitária e da criminalidade podem se associar, intensificando os processos violentos. A associação entre a violência comunitária e a violência criminal produz efeitos similares para homens e mulheres, que são os homicídios decorrentes da criminalidade. Mas, em função das diferenças e desigualdades de gênero existentes na comunidade, também produz situações que afetam predominantemente homens ou mulheres.
Redes  criminosas
Em seu conjunto, os valores e as práticas sociais relacionados ao etos viril, à desigualdade de gênero e ao uso da força na solução dos problemas e como ferramenta “pedagógica” na educação das crianças produzem distintas situações de conflito envolvendo homens e mulheres. Para eles, as disputas viris nos espaços públicos – rua, bares, festas, jogos etc. – levam ao homicídio decorrente da violência interpessoal. Para elas, estes valores impactam sobre os conflitos familiares, domésticos e amorosos levando ao homicídio cometido por parentes, parceiros ou conhecidos motivados por razões associadas diretamente ao fato de a vítima ser mulher. A presença da criminalidade urbana leva ao aumento da circulação de armas de fogo e da conflitualidade nessas áreas e, com isso, também aumentam os riscos de letalidade nas situações interpessoais, domésticas e amorosas, que, a princípio, nada teriam a ver com o mundo do crime.
A convivência entre formas antigas e novas de violência contra as mulheres é uma realidade nessas comunidades. O “novo” cenário da morte violenta para as mulheres é a criminalidade, mas é provável que as motivações imediatas para esses casos sejam queima de arquivo, dívidas com traficantes ou usuários de drogas, especialmente crack, e morte colateral, quando a mulher não tem relação direta, mas está presente no momento de um tiroteio, chacina ou assalto. Assim, no contexto da criminalidade as mulheres não são mortas do mesmo modo ou nas mesmas circunstâncias que os homens. Mesmo quando estão diretamente envolvidas com o tráfico de drogas, elas realizam tarefas mais “simples”: transportam pequenas quantidades de drogas, são usadas como iscas para assaltos, levam encomendas clandestinas para maridos e parentes presos. Raramente usam armas ou ocupam posições de comando. A possibilidade de morrerem em situações de conflito com outros criminosos ou com a polícia é bem menor do que entre os homens.
Os processos de modernização, crescimento econômico e produção rápida de riqueza4 criam oportunidades de trabalho e melhoria das condições de vida em condições desiguais para diferentes grupos populacionais. A incorporação formal aos processos produtivos e ao mercado de trabalho e a apropriação da maior parte da riqueza estão restritas à parcela menor da população. A maior parte da população vive em comunidades onde a incorporação econômica é periférica, em postos de trabalho menos especializados, no trabalho informal e em programas sociais compensatórios. Mas, o crescimento econômico também amplia as oportunidades nos circuitos ilícitos, e isso também se expressa de forma distinta nos dois tipos de grupos. No primeiro, graças à predominância do etos “civilizado”, do maior controle da violência por parte do Estado e de uma maior valorização dos processos de negociação diante do uso da força, prevalecem os crimes não violentos, como furtos, estelionato, crimes de colarinho branco etc. Nos demais grupos, a ampliação das oportunidades delituosas inclui o crescimento da circulação de armas de fogo e o fortalecimento das conexões entre redes criminosas locais, nacionais e internacionais, associando diferentes tipos de crimes. No contexto de grupos regidos pelo etos viril, nos quais a violência é um dos componentes que caracteriza a própria relação comunitária e onde é ineficaz o controle da violência por parte do Estado, a ocorrência de homicídios é imensamente facilitada.
Acesso da mulher ao  espaço público
A  ampliação do acesso das mulheres ao espaço público e a posições de maior igualdade com relação aos homens explicam o envolvimento das mulheres com o crime e com as drogas, do mesmo modo que explicam o seu maior acesso à escola, a novas profissões e ao mercado de trabalho formal. Mas, os processos de associação das mulheres à criminalidade se dão sobre uma base sociocultural de matiz patriarcal, que reproduz formas antigas de dominação feminina. No nível da comunidade, formas antigas de violência contra as mulheres – como aquela cometida por namorados ou ex-maridos – são “atualizadas”: muitos homens aproveitam certas oportunidades colocadas pelos novos contextos, como a maior facilidade de acesso a armas de fogo e a maior presença das mulheres em áreas públicas (locais de trabalho ou lazer, principalmente), para protagonizar os conflitos conjugais que levam à morte da mulher. A lógica do processo que leva à morte, portanto, ainda se vincula aos padrões de dominação patriarcal. E, assim como para os jovens rapazes, as atividades ilícitas associadas ao tráfico de drogas também se constituem em oportunidades de trabalho e renda para as mulheres, mas a sua inserção nessas redes é afetada pela sua condição de gênero, o que lhes coloca em posições subordinadas e com menor capacidade de defesa e proteção – pela menor experiência nos confrontos físicos diretos, menor habilidade no uso de armas de fogo e menor acesso a recursos financeiros ou a meios diretos de obtenção de proteção junto a agentes públicos e/ou lideranças locais do tráfico. Assim, de forma direta, o contexto da criminalidade amplia os tipos de violência a que as mulheres estão expostas, aumentando bastante a sua vulnerabilidade aos desfechos fatais dos conflitos.
Assim, a sociabilidade violenta reforça os modelos tradicionais de relação entre homens e mulheres e os valores a eles associados, colocando obstáculos nada desprezíveis às aspirações de liberdade, autonomia e à maior equidade das jovens. E, por isso, reações violentas às tentativas das mulheres de conduzirem suas vidas de forma mais autônoma se somam aos padrões conservadores que ainda vigoram na sociedade brasileira. Além disso, os agentes da sociabilidade violenta (traficantes, policiais e outros envolvidos na criminalidade) se relacionam com as mulheres, como namoradas, esposas, filhas, mães etc. A conduta agressiva, o recurso à força física e ao poder das armas como meio de resolução de conflitos se estende, assim, para essas relações, nas quais o padrão conservador é acirrado e mantido pelo recurso a formas de violência mais extremas (Portella, 2014).
Concluindo, as mulheres são assassinadas em diferentes tipos de situação e todas sofrem a forte influência da sua posição social subordinada, de sua condição de gênero. São os arranjos específicos entre as desigualdades de gênero (e as normas sociais conservadoras a elas associadas) e os processos sociais e econômicos que afetam as comunidades em que vivem essas mulheres que definem o seu grau de vulnerabilidade à violência letal. A criminalidade urbana é uma das dinâmicas sociais recentes que interagem mais fortemente com a condição das mulheres, tendo se tornado um importante contexto de risco para elas. Os novos conflitos entre homens e mulheres produzidos pelas mudanças nos estilos de vida das mulheres e pela maior igualdade de gênero alcançada nas últimas décadas são acirrados de forma explosiva nos territórios socialmente precários e dominados pela criminalidade.
Projeto civilizador global
A  ideia de que o “mundo do crime” é exclusivamente masculino e não se articula com o “mundo da violência contra as mulheres” é artificial e pouco produtiva para se compreender o modo como as mulheres são afetadas pela violência. O “mundo do crime” é parte das relações sociais em territórios nos quais homens e mulheres convivem cotidianamente, nos quais o componente de gênero também atua. E o “mundo do gênero”, por sua vez, atravessa todas as demais interações sociais, inclusive as criminais.
De maneira mais ampla, a persistente desigualdade no processo civilizador brasileiro mantém vastas parcelas da população vivendo sob a égide das ligações segmentais e distantes, portanto, dos benefícios sociais advindos de um maior poder regulador do Estado e do maior autocontrole dos impulsos pessoais, entre os quais está o controle da violência e da força como forma de resolução de conflitos. Assim, políticas públicas de prevenção e contenção da violência – contra as mulheres, mas não apenas – só surtirão efeito concreto e sustentável se forem parte de um projeto civilizador global, que envolve necessariamente Estado e sociedade e, no que diz respeito às mulheres, deve necessariamente incorporar o componente de gênero, ou seja, considerar que o simples fato de ser mulher produz exposição, risco e vulnerabilidades específicas à violência.


NOTAS:

1.

Senhor do Bonfim, Serrinha, Santo Antonio de Jesus, Euclides da Cunha, Feira de Santana, Valença, Barra e Jeremoabo (BA), Cajazeiras (PB), Taraucá e Cruzeiro do Sul (AC), Bragantina e Salgado (PA), Serra de Santana e Macaíba (RN), Carira (SE), Chapadas do Alto Itapecuru, Codó, Porto Franco e Litoral Ocidental Maranhense (MA) (Cerqueira et al, 2015).

2.

As bases de dados nacionais utilizadas para a análise dos homicídios trazem informações sobre as vítimas, mas não sobre os agressores, uma vez que essas últimas dependem da conclusão dos processos judiciais, enquanto as primeiras são obtidas pelo registro do óbito. Informações preliminares de secretarias de segurança pública, bem como estudos qualitativos sobre autores de homicídio e informações da imprensa, revelam que agressores e vítimas frequentemente apresentam o mesmo perfil: jovens, pobres, negros e com baixa escolaridade.

3.

Na análise estatística utilizei os procedimentos de análise de correspondência múltipla, análise log-linear e regressão linear multivariada. A fonte dos dados foram os registros oficiais da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco e o Sistema de Informações de Mortalidade do Sistema Único de Saúde.

4.

No período estudado, Pernambuco recebeu vultosos investimentos públicos e privados, iniciando grandes obras de infraestrutura – como a transposição do Rio Sâo Francisco, a ferrovia Transnordestina e a ampliação do Complexo Industrial-Portuário de Suape, que inclui uma refinaria de petróleo e um grande estaleiro – e criando os polos industriais automotivo e farmacoquímico, que, juntamente com a ampliação dos programas sociais do Governo Federal, dinamizaram economicamente e produziram mudanças sociais importantes em várias regiões do estado.

REFERÊNCIAS:

  1. CERQUEIRA, D. et al. Atlas da Violência 2016. Nota Técnica nº 17. Brasília: Ipea, 2016.

  2. ZAL

UAR, A. Pra não dizer que não falei de samba: enigmas da violência no Brasil. In: História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Vol. IV

  1. POR

TELLA, A. P. Como morre uma mulher? Configurações da violência letal contra mulheres em Pernambuco. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Recife: UFPE, 2014.

  1. WEI

SELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015. Homicídios de mulheres no Brasil. Brasília: Flacso Brasil, 2015.

  1. MAC

HADO DA SILVA, Luiz Antonio. (Org.) Vida sob Cerco. Violência e Rotina nas Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

  1. ELI

AS, N. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

  1. CAR

VALHO FRANCO, M. S. de.  Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ed. Ática, 1974.

É socióloga, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da UFPE, consultora independente e, desde 2015, assessora do deputado estadual Edilson Silva (PSOL), na área de Gestão do Conhecimento. Mora em Recife.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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