09 fevereiro 2018

Das Redes às Urnas: o Avanço dos Novos Movimentos Suprapartidários

O recrutamento de novos filiados costuma ser tarefa primordial para partidos políticos.[1] Para as agremiações que buscam ascensão como forças verdadeiramente representativas, a renovação de lideranças também tem importância estratégica. Mas, quando os partidos passam a ter dificuldades de incorporar novas figuras, muitas das quais lideranças profissionais e sociais em busca de legítima ocupação de espaço público, a sociedade reage.
Esta edição da Interesse Nacional oferece a visão de protagonistas dessa reação e traz a discussão sobre os métodos de atuação e as motivações de diversos movimentos e grupos que emergiram nos últimos anos em busca de projeção política, influência nas decisões públicas e, principalmente, mudanças nas regras de organização da política. Mesmo sem negar os partidos, os discursos dos novos movimentos os colocam em xeque. Teria chegado o momento de ampliar a porta de entrada na política eletiva e tirar a chave das mãos dos partidos? Ou seria esse o momento de fortalecer partidos para que voltem a ser espaço desejado para o desenvolvimento da política e de políticos?
Desde a redemocratização, os partidos buscaram desenvolver seus espaços de formação. As lideranças partidárias nos anos 1990 eram maduras, muitas das quais haviam iniciado seu contato com a política estudantil ou partidária antes dos anos de ditadura militar. O caminho natural de recrutamento de jovens era a universidade — ao menos para a maior parte das legendas —, mas, aos poucos, sindicatos, organizações de representação profissional, comunidades eclesiais e entidades de interesse local passaram a construir pontes entre suas novas lideranças e os espaços partidários.
Partidos estabeleciam seus braços de atuação universitária. Em alguns casos, como o da União da Juventude Socialista (UJS), vinculada ao PCdoB, tornou-se caminho quase exclusivo de formação de futuros deputados federais e ministros de Estado do partido. Em pouco tempo, praticamente todos os partidos criaram secretarias de juventude, muitas das quais ativas nas disputas das direções de centros acadêmicos e organizações estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE), as unidades da União Estadual dos Estudantes (UEE) e as unidades da União Municipal dos Estudantes (UMES). Foi a tentativa de construção da porta de entrada na vida partidária.
O ambiente universitário, porém, era pouco diversificado, e isso se refletia na dificuldade de ampliar os perfis de quem ocupava as burocracias partidárias e os governos. A aposta dos partidos políticos foi, então, na setorialização de sua estrutura interna, de modo que se tornaram vias comuns de ingresso e militância as secretarias, os núcleos ou setoriais como de mulheres, negros, LGBT, direitos humanos, educação, meio ambiente, saúde etc. Também se aproximavam os sindicatos e as grandes associações de representação de categorias profissionais. Buscava-se, com isso, a construção não apenas de espaços de elaboração de projetos de políticas públicas, mas também a aproximação com universos profissionais dentro dos quais novos filiados contribuíssem sem deixar sua esfera de atuação extrapartidária.
Como medida complementar, os partidos lançam periodicamente campanhas nacionais de filiação que, entretanto, se confundem em relação aos propósitos, com campanhas eleitorais regulares. Como se sabe, filiados tendem a votar no partido aos quais são vinculados e, quando motivados ou não constrangidos, podem atuar como excelentes captadores de votos no varejo eleitoral. Transformar meras filiações em vida partidária orgânica requer etapas complementares raramente adotadas. O resultado de tais campanhas, portanto, de forma geral, não é capaz de forçar mudanças na dinâmica de disputa pelas direções partidárias ou de criar forças de pressão por maior democracia no interior dos partidos.
Assim, os espaços partidários atraíram um contingente significativo de filiados — atualmente há quase 17 milhões de filiados a partidos políticos no Brasil[2]—, mas com pouca participação na rotina partidária e, principalmente, baixa capacidade de diálogo com a sociedade. Os partidos deixaram de representar um espaço natural para quem quer fazer atividade política. Formou-se o paradoxo que hoje atinge frontalmente a política brasileira: os partidos têm o monopólio de entrada na vida pública que passa pelas urnas, mas são espaços fechados e sem atratividade para parte dos interessados na disputa de cargos eletivos.
Ao longo dos 30 anos desde a inauguração da Constituição, os grandes partidos se consolidaram como espaços de construção de ideias e de lideranças, enviesados em favor de certos grupos e estratos profissionais que se organizam de forma semelhante. Retroalimentam-se as práticas e a linguagem e, assim, ficam excluídos todos os demais. Há também, claro, os inúmeros partidos que se reduzem a organizações financiadas pelo fundo partidário a serviço do interesse de famílias tradicionais na política local ou nacional. Assim, parece razoável afirmar que a trajetória de formação institucional dos partidos políticos está incompleta. Sua consolidação como polos de reflexão e pensamento ao largo do espectro político-ideológico, com poucas exceções, não aconteceu. As pontes com novos grupos e novos métodos de organização política, igualmente, não aconteceram.
A reflexão proposta neste artigo é justamente sobre as respostas recentes de movimentos e grupos de diferentes orientações políticas à frustração pelo desenho constitucional partidário inacabado. São grupos que se lançam em busca da influência política nas decisões e, no limite, da participação direta, com candidaturas próprias, nas eleições gerais. Para compreender as origens de tais movimentos e analisar a perspectiva de viabilidade eleitoral em 2018, o artigo será dividido em quatro partes: inicialmente serão discutidas as principais causas recentes do declínio dos partidos como espaços viáveis do ingresso na vida pública. Em seguida se avaliará a expansão do ativismo on-line e o ingresso de novos agentes como intermediários de reivindicações sociais entre as pessoas e as instituições públicas. A terceira parte busca compreender o processo de institucionalização dos movimentos políticos emergentes e sua relação com os partidos políticos. Por fim, o artigo buscará analisar o impacto das minirreformas eleitorais de 2015 e 2017, além da decisão do Supremo Tribunal Federal que vedou financiamento empresarial, nas perspectivas de sucesso dos movimentos nas eleições de 2018.

1. A precarização da opção partidária

Os partidos políticos não são instituições admiradas no Brasil. Segundo o Índice de Confiança Social (ICS), de 2009 a 2017, figuraram entre as instituições em que a população menos confiou.[3] Até 2016, era a instituição mais desacreditada do país, perdendo, em 2017, apenas para a presidência da República. A queda progressiva da confiança nos partidos tem inúmeras variáveis que não serão individualmente discutidas. De toda sorte, destaca-se, em tempos recentes, a correlação entre a Operação Lava Jato e os esquemas de corrupção revelados com a queda mais brusca da confiança— de 30%, em 2014, para 17%, no ano de 2015.
A Lava Jato atingiu em cheio todos os grandes partidos e explicitou a promiscuidade da relação entre alguns financiadores de campanha, partidos e contratos de empresas estatais. Poucos anos após o “Mensalão”, o processo de financiamento de campanhas eleitorais no Brasil entrava em evidência novamente. Desta vez, porém, produziu —ve ainda produz— impacto que será adequadamente dimensionado apenas após o processo eleitoral de 2018.
A crise que se abateu sobre os partidos com o avanço da Operação Lava Jato foi também uma grande oportunidade de reformular as práticas, renovar as lideranças e de, ao menos, tentar caminhos de reconstrução da confiança dos eleitores. Para a surpresa de muitos observadores da rotina dos partidos, a oportunidade não foi aproveitada. Entre partidos médios e grandes, não houve sinais de significativa renovação de candidaturas para as principais posições em disputa. Em relação aos processos de eleição das direções partidárias, ao contrário de promoverem nomes com forte imagem de integridade, os partidos tiveram dificuldade de lidar com o avanço das investigações sobre suas mais caras lideranças. Para citar apenas os três maiores partidos, PMDB (agora, novamente, MDB) elegeu o senador Romero Jucá, investigado na Lava Jato, como seu presidente em 2016; no ano seguinte o PT elegeu como presidente a senadora Gleisi Hoffmann, também investigada na Lava Jato; e, em 2017, o senador Aécio Neves, também investigado, manteve-se (e foi deixado) como presidente após o retorno de licença.
É, de certa forma, esperado que os partidos não abandonem ou expulsem seus quadros históricos nas adversidades. Portanto, não seria razoável esperar processos sumários de expulsão quando ainda restasse dúvida autêntica sobre a culpa de integrantes do partido em processos judiciais inacabados. Por outro lado, esperava-se em momento como o atual maior preocupação com as expectativas da sociedade. Há — ou deveria haver — alternativas que sinalizassem à sociedade apoio ao combate à corrupção e, ao mesmo tempo, garantissem certo distanciamento para que processos criminais fossem respondidos nas respectivas esferas individuais privadas.
Outro fator de destaque no processo de desgaste dos partidos políticos é a elevadíssima fragmentação partidária. A existência de 35 partidos políticos, dos quais 25 com representação na Câmara dos Deputados, contribui com a percepção geral de pouca identidade das agremiações. Ademais, do elevado número de legendas resulta número maior de candidatos durante as eleições e, por consequência, maior flexibilidade e menor rigor dos partidos com o perfil de seus candidatos. Neste contexto, não costuma haver disputa significativa para a obtenção de legenda para a disputa eleitoral. Há, inclusive, déficit de candidaturas de mulheres para que se atinja o piso legal de 30%. O verdadeiro filtro de viabilidade se dá, portanto, não na escolha de candidatos, mas na distribuição de recursos de campanha.
A grande responsabilidade pelo quadro atual não é diretamente dos partidos, já que a cláusula de desempenho foi criada em 1995, por lei, e extinta antes que pudesse surtir efeitos, em 2006, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).[4] Tivesse a cláusula vigorado até os dias atuais, de acordo com os resultados das eleições desde então, haveria sete partidos políticos com pleno funcionamento parlamentar, sem prejuízo dos demais que não tivessem atingido 5% dos votos, que poderiam existir e ter representantes eleitos, embora sem estrutura de liderança partidária e com participação mínima no Fundo Partidário.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), posteriormente, criou novos incentivos à criação de partidos políticos quando decidiu que a fidelidade partidária levaria parlamentares que mudassem de partido à perda do mandado.[5] Entretanto, de acordo com o Tribunal, a transferência para um partido recém-criado seria considerada “justa causa” e, portanto, não passível da pena de perda de mandato. Partidos como PSD (2011), PEN (2012), Pros (2013) e Solidariedade (2013) foram os primeiros a usufruir da regra e angariaram, somados, 103 deputados que preservaram seus mandatos.
Enquanto os tribunais amparavam regras incentivadoras da criação de novas legendas, os partidos percebiam as crescentes dificuldades de se diferenciar de mais de 30 outras agremiações e, ao mesmo tempo, construir trajetória de credibilidade. A singela solução levada adiante foi cosmética. Diversos dos novos partidos políticos vislumbraram benefício à imagem se deixassem de lado a palavra “partido”. É um movimento de reconhecimento das suas dificuldades e estigmas negativos. A mudança de nomes logo se transformou na principal resposta do sistema partidário. Apesar de superficial, os partidos vêm buscando se distanciar justamente do que os distingue de qualquer outra organização com atividade política. Desde a mudança do PFL para DEM (2007) e da criação do Solidariedade (2013), Novo (2015) e Rede Sustentabilidade (2015), a tendência de exclusão da famigerada palavra “partido” parece ter emplacado. PMDB voltou a ser MDB, PTdoB tornou-se Avante, PTN virou Podemos, PSL passou a ser Livres, PEN se chama agora Patriotas, PP é Progressistas e o PSDC poderá, em breve, ser DC.
As dificuldades dos partidos não são exatamente novas. Como se viu, partidos não são instituições que gozam de prestígio há muito tempo, mesmo antes das mais recentes crises. Em conjunturas passadas, os partidos conseguiam conciliar candidaturas de seus nomes tradicionais e abrigavam eventuais outsiders nas oportunidades de entrada na política. Com a alternância de gestões e diferenças programáticas, era viável ao candidato “de fora” se abrigar no partido de oposição para enfrentar quem se desgastava pelos anos de exposição como governo. Havia opções disponíveis, mas isso se modificou. Ingressar em partidos políticos atualmente impõe pesado ônus para quem vem de fora do sistema, quanto mais em caso de profissional com trajetória vinculada à agenda anticorrupção.

2. Ativismo, tecnologia e os novos intermediários da política

A Constituição afirma, sem ambiguidades, que são condições de elegibilidade, dentre outras, “a filiação partidária” (art. 14, § 3º, V). Portanto, o caminho até qualquer cargo público eletivo passa antes pela associação com um partido. Os partidos controlam a porta de entrada aos cargos eletivos, mas não exercem com exclusividade a intermediação entre povo e eleitos. Quando eleitos seus candidatos, evidentemente, o partido pode exercer com maior facilidade o papel de intermediação das demandas e expectativas das pessoas em relação aos rumos das políticas públicas.
Essa função, porém, não lhe é única. São comuns a qualquer grande empresa as atividades de lobby como forma de interlocução direta entre si e governos ou parlamentares. Da mesma forma, grupos de pressão por vezes constroem seus espaços de diálogo sem a intermediação de qualquer partido. Enquanto as ações de lobistas e grupos de pressão se voltam a interesses mais específicos, os partidos com capilaridade social podem ser capazes, também, de intermediar interesses difusos e amplos.
Com o avanço da tecnologia voltada à organização política — especialmente aquela disponível em anos recentes, como as grandes plataformas de peticionamento e mobilização política —, novos grupos ativistas se propuseram a realizar funções de intermediários da política. Ao mesmo tempo em que buscam dialogar e compreender as preferências de grande parcela da população, atuam com princípios norteadores e com uma agenda política específica a ser construída a cada ciclo. Como partidos políticos.
Os grupos ativistas se organizam através de ONGs, de plataformas eletrônicas temáticas e por meio de movimentos amplos capazes de olhar para diversas agendas simultaneamente. A facilidade de organização e a simplificação do processo de identificação de interessados nas pautas comuns vêm ampliando o ativismo político tanto em número de organizações quanto em número de participantes dos grandes movimentos. A respeito da expansão da atuação de grupos da sociedade civil, Joaquim Falcão argumenta que “o crescente fortalecimento da sociedade civil,  consequente fortalecimento do Terceiro Setor, são ao mesmo tempo uma crítica a estes monopólios [dos partidos políticos], a busca de uma saída, o forjar de novas instituições e uma proposta de expansão da democracia”.[6]
A geração de organizações de ativismo e advocacy surgida na última década, além de preservar duas vertentes de atuação combinadas — on-line e off-line —, tem em comum quatro aspectos principais: velocidade, escala, crowdfunding e a agenda multitemas. As decisões são tomadas em ambiente on-line entre seus membros, em tempo de influenciar a tomada de decisão iminente. As comunicações se dão entre muitas pessoas — dezenas, centenas ou milhões de pessoas, a depender da organização. Nos casos de organizações capazes de dialogar com milhões de indivíduos, uma fração de apoiamento às ações tomadas resulta em contingente capaz de influenciar agentes públicos em democracias. Por exemplo, a organização Avaaz se comunica com 45 milhões de membros em 195 países. Apenas no Brasil, mais de 10 milhões de pessoas recebem, assinam e, por vezes, mobilizam-se presencialmente. Se 5% dessa comunidade se mobilizar em favor de uma nova lei, a ação terá chamado a atenção de legisladores.
Em relação ao custo de manutenção, seria inviável desenvolver grandes estruturas tecnológicas com gastos regulares para mobilizar e ouvir as preferências de tantas pessoas sem um fluxo constante de recursos. O uso do método de crowdfunding para captação permitiu que as organizações mantivessem pessoal de alta qualificação técnica, com salários competitivos, além de recursos para campanhas e ações de advocacy nacionais e internacionais. Tudo isso sem comprometer a independência das ações, notadamente para as organizações que não recebem recursos de governos, de empresas nem mesmo de grandes doadores pessoa física. Por fim, os grupos ativistas promovem agendas em diferentes temas, conforme priorizados pela base de membros consultados. A atuação se faz sob constante microdeliberação, viabilizada pela tecnologia e acesso à internet.
Importante ressaltar a diferença entre o que venho denominando de grupos ou organizações de ativismo on-line-off-line e os novos movimentos políticos suprapartidários. Os grupos ativistas atuam para incrementar a intermediação da política e trazer mais qualidade à democracia, mas não se propuseram a ocupar os espaços eletivos. Os novos grupos suprapartidários são influenciados por instrumentos e métodos de organização política trazidos pelos ativistas on-line-off-line, mas têm como objetivo ocupar espaços públicos eletivos.
Atualmente, há influência recíproca entre grupos ativistas que buscam ocupar espaços de intermediação da política, novos movimentos suprapartidários que buscam integrar a política e os partidos políticos preocupados com sua própria modernização e qualificação, que buscam absorver tecnologia e método dos movimentos sociais. Diversos partidos políticos fora do Brasil foram desenvolvidos tendo como base estruturas de deliberação on-line típicas de plataformas de ativismo. Por exemplo, os organizadores do Partido de la Red, da Argentina, afirmavam que “seus legisladores votariam sobre cada projeto em pauta de acordo com os resultados dos processos de deliberação e votação obtidos por meio de uma plataforma web criada para este fim”.[7]
Essas categorias — partidos, movimentos de intermediação e movimentos suprapartidários — não são estanques. Com o passar dos anos, e conforme o êxito, grupos como MBL e Bancada Ativista, que lançaram candidatos já em 2016, podem querer tornar-se partidos políticos regularmente registrados. Como se discutirá na próxima seção, os novos movimentos vivem difíceis dilemas de institucionalização. Formaram-se em redes, cresceram no Facebook, deliberam coletivamente sobre suas agendas, são transparentes com seus membros, mas, por ora, dependem da filiação partidária para realizarem seus objetivos.

3. Os movimentos políticos de renovação e os desafios da institucionalização

A política tradicional vem sendo transformada nos últimos anos pelo surgimento de organizações de ativismo que se mobilizam primordialmente on-line mas que, em momentos estratégicos, quando há oportunidade de influenciar a tomada de decisões, partem para ações de advocacy e mobilizam protestos nas ruas do país.
Os exemplos mais visíveis dessa nova forma de mobilização foram reformas legislativas como a Lei Ficha Limpa, Marco Civil da Internet e Emenda Constitucional 76, que restringiu o voto secreto nas casas parlamentares, dentre outras medidas legislativas. No plano internacional, atribui-se significativa influência dos movimentos ambientalistas, em atuação coordenada, na elaboração do Acordo de Paris durante a 21ª Conferência das Partes, em Paris, para criar compromissos nacionais em relação aos riscos de mudança do clima.
Muitas ações de impacto tiveram início em plataformas como Facebook, tal como as que iniciaram as manifestações generalizadas de junho de 2013 —propulsionadas pelo aumento de passagens de ônibus em algumas capitais e pela insatisfação difusa com a política — e as manifestações recordistas de público na história do Brasil, durante 2015 e 2016, que encorajaram deputados e senadores a levar adiante o impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
Desde então, muitos novos grupos surgiram, outros tantos cresceram e alguns ganharam densidade política notável. Mas, foi nas eleições de 2016 que se viu uma importante inovação na política brasileira: o Movimento Brasil Livre (MBL) e a organização Bancada Ativista decidiram lançar candidaturas em algumas capitais do país. Essa não foi, seguramente, a primeira vez que grupos e movimentos sociais avançaram além da atuação como grupo de pressão e passaram a disputar assentos em parlamentos. A inovação estava justamente no fato de que, mesmo após o processo de filiação aos partidos políticos através dos quais os candidatos neófitos concorreram e foram eleitos, houve a preservação de certa autonomia de atuação política e da identificação com o movimento como mais significativa na identidade do parlamentar do que o próprio partido político.
O vereador Fernando Holiday, de São Paulo, por exemplo, ficou conhecido nacionalmente como  integrante da liderança do MBL que foi eleito em 2016. Pouco se ressaltou nas notícias o fato de ser filiado ao DEM. De fato, o partido ao qual pertencia era menos relevante para compreensão da sua personalidade pública do que o movimento que o havia projetado nacionalmente. O partido político, para casos assim, é instrumental. Um meio para superar a barreira formal e legal que restringe a participação em eleições. Antes e depois da eleição, os elos mais profundos do parlamentar parecem estar com o movimento, e não com o partido.[8]
A eleição de 2016 inaugurou o modelo “partido instrumental”, que será ampliado em 2018. Projetos de partido político ainda não formalizados, como o Frente Favela Brasil, pretendem lançar candidaturas dispersas ou em bloco por um partido ainda não definido, que poderá ser Rede, PDT ou PSB. O movimento Agora!, segundo se noticiou, buscava abrigo eleitoral em PPS, DEM e Novo. Já o grupo Acredito dialoga com Rede e Livres para direcionar as candidaturas de seus integrantes. A ocupação temporária das legendas pode, eventualmente, converter-se na absorção dos grupos e movimentos pelos partidos, mas tudo indica que a aproximação pode ser ocasional até que se tornem novos partidos políticos.
A criação de partidos no Brasil é, relativamente a outras iniciativas que dependem de apoiamento popular, muito fácil. Basta que, inicialmente, uma organização que quer ser um partido político se torne uma pessoa jurídica e registre seu estatuto no Tribunal Superior Eleitoral. Em seguida, no período de até dois anos, deverá mostrar à Justiça Eleitoral as assinaturas de apoio de pelo menos 0,5% dos votos dados na última eleição para a Câmara dos Deputados, distribuídas em alguns estados brasileiros. O percentual totaliza aproximadamente 500 mil assinaturas e garante participação no fundo partidário. Já a iniciativa popular de projeto de lei, que pode ser sumariamente rejeitada no Congresso Nacional, depende de aproximadamente 1,5 milhão de assinaturas.
A relativa facilidade somada aos muitos incentivos de transformar movimentos em partidos políticos, pode agravar o problema da fragmentação partidária ao contrário de melhorar a política, como é a proposta dos novos movimentos suprapartidários. Ao lado de movimentos com inserção social que talvez busquem sua institucionalização, há, atualmente, 70 associações registradas no TSE, na fila para coletarem assinaturas e se tornarem partidos.
O dilema que esse cenário coloca para os novos grupos é como se afirmar institucionalmente, sem depender da “barriga de aluguel” de outros partidos. Como contribuir com novas opções políticas sem agravar ainda mais o quadro de excesso de partidos existentes no Brasil? Tornar-se mais um partido político ou depender deles?

4. As regras eleitorais vão permitir o sucesso dos novos movimentos nas urnas?

A capacidade de mobilização dos novos movimentos suprapartidários é reconhecida no Brasil e foi testada diversas vezes em anos recentes. A atuação recente de grupos como Quero Prévias e Nova Democracia buscou canalizar esforços para que as regras do jogo eleitoral também passassem a ser mais receptivas para indivíduos e grupos sem vínculos anteriores com partidos e que quisessem participar das eleições. A Transparência Partidária, por sua vez, reconhecendo a inevitável importância dos partidos, construiu proposta de maior transparência e democratização da rotina partidária.
Paralelamente à atuação dos movimentos diante da votação no Congresso Nacional da reforma eleitoral de 2017, o STF sinalizou a possibilidade de deliberar sobre as candidaturas avulsas ou independentes. A possível reviravolta na interpretação da regra de monopólio partidário ficou para depois de 2018, a depender da imprevisível pauta de matérias do Tribunal. Entretanto, o debate sobre sua viabilidade projetou luz sobre argumentos novos, como a tese jurídica de que a Convenção Americana de Direitos Humanos não autoriza que estados partes, como o Brasil, restrinjam o direito de disputar eleições para além das hipóteses previstas no tratado, quais sejam, ‟idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”.[9]
A tentativa de abertura para candidaturas avulsas chamou a atenção do país por um breve período, mas outra iniciativa — essa, sim, exitosa — foi aprovada sem grande alarde. A reforma eleitoral de 2017 autorizou o crowdfunding — ou financiamento coletivo — ‟por meio de sítios na internet, aplicativos eletrônicos e outros recursos similares”, três meses antes do início da propaganda eleitoral.[10] Como provavelmente os movimentos que se utilizarão instrumentalmente dos partidos políticos terão menor ou nenhuma participação nos recursos do Fundo Partidário e, agora, do generoso Fundo Especial de Financiamento de Campanha (conhecido como Fundão), as possibilidades de captação de recursos via crowdfunding se tornam essenciais para a viabilização das candidaturas.
Importante notar que a arrecadação por meio de crowdfunding é útil não apenas pela viabilização financeira da campanha, mas também pela aproximação, já que eleitores que doam tornam-se parte da campanha. O sucesso ou fracasso passa a ter relação direta com o indivíduo, cujo comprometimento tende a ser maior.[11] Mesmo antes do período autorizado para a arrecadação pela internet (maio de 2018), surgem iniciativas para superar a dificuldade de arrecadação que candidatos sem clara vinculação partidária e que dependam do uso instrumental das legendas para se lançar candidatos devem enfrentar. O grupo RenovaBr abriu processo seletivo de candidatos que, independentemente do partido ao qual se filiem, sejam treinados e remunerados nos meses pré-eleitorais.[12]
Em direção oposta às boas perspectivas eleitorais abertas pelo financiamento coletivo, destaca-se a baixa transparência dos processos decisórios internos dos partidos políticos. A falta de regras que exijam que partidos tenham processos democráticos internos afastou historicamente as lideranças que buscavam espaços de crescimento político e também limitou a influência dos novos filiados que se aproximaram instrumentalmente dos partidos na distribuição de recursos e tempo de rádio e televisão atribuídos a cada partido no horário eleitoral.
A cláusula de desempenho também pode ser um fator de desestímulo à intenção dos movimentos de criar novos partidos. Aprovada em 2017, com previsão de implementação progressiva nos próximos ciclos eleitorais, a cláusula de barreira ou de desempenho pode ter impacto muito positivo na redução do número de partidos com representação no Congresso Nacional. Entretanto, para novos partidos, pode ser muito difícil o desafio de alcançar, já nas eleições de 2018, o total de 1,5% dos votos válidos ou ainda de alcançar 2% dos votos em 2022, quando alguns dos movimentos atualmente em “carona” com partidos políticos já estabelecidos criariam os seus próprios. Sem esses mínimos, não teriam direito a recursos do fundo partidário e acesso subsidiado ao rádio e à televisão.
Por fim, o Fundo Especial de Campanha (ou Fundão) devolveu às lideranças partidárias parcela do poder de controlar a viabilidade financeira das campanhas, poder anteriormente suprimido pela decisão do Supremo de tirar o dinheiro de empresas do processo eleitoral. Quando empresas podiam doar oficialmente, lideranças partidárias favoreciam seus preferidos e familiares com recursos e, assim, aumentavam as chances de sucesso eleitoral dos seus escolhidos. A histórica decisão do STF limitou a entrada de recursos de empresas e forçaria os partidos a mudar suas estratégias para conseguir doações com pessoas físicas. Tal necessidade obrigaria os partidos a buscar renovação e nomes com credibilidade pública. Porém, o Fundão mitigou os efeitos potenciais da decisão do Supremo e novamente deu aos caciques a faculdade de prescindir da renovação política.

Conclusão

A dificuldade dos partidos de atrair novas lideranças políticas de diversos setores da sociedade contribuiu com o surgimento de movimentos que se propuseram a qualificar a intermediação da política e, mais recentemente, a disputar eleições. A rejeição aos partidos tradicionais, como opção de entrada na política, tornou-se maior na medida em que avançavam as investigações da Operação Lava Jato sobre grande parte dos parlamentares federais e sobre todos os grandes e médios partidos políticos.
Por sua vez, o monopólio de acesso às urnas pelos partidos deu espaço à estratégia de intervenção via Supremo em favor de candidaturas avulsas —por ora suspensa — e, principalmente, ao uso instrumental dos partidos políticos pelos novos movimentos suprapartidários. Os movimentos de maior densidade política apostam, ainda, na sua própria conversão em partidos políticos nos próximos ciclos eleitorais.
Para as eleições de 2018, os novos movimentos e os partidos terão a seu favor a inédita possibilidade de arrecadar fundos de campanha desde os três meses anteriores ao período oficial de campanha. Em relação aos movimentos que buscam sua própria institucionalização como partido político, a cláusula de desempenho poderá significar obstáculo difícil de ser suplantado já nas próximas eleições. Outra grande dificuldade será o Fundão, que ampliou o poder de caciques partidários na distribuição de fundos de campanha em provável desfavor de candidatos vinculados a movimentos suprapartidários.
[1].
O recrutamento de novos integrantes seria essencial já que 1) possibilitaria a continuidade programática dos partidos ao longo do tempo; 2) permitiria a adaptação do partido às demandas cambiantes da sociedade; 3) garantiria que novos quadros estivessem prontos para assumir posição de liderança política na organização; e 4) contribuiria com a continuidade da própria democracia representativa, ao introduzir agentes interessados e treinados para assumir posições públicas. PERES, Paulo; MACHADO, Amanda. Uma tipologia do recrutamento partidário. Opinião Publica, Campinas, v. 23, n. 1, 2017, p.126-127.
[2].
Os sete maiores partidos em números de filiados são o PMDB, com 14% de todos os filiados no país, seguido de PT, com 9%, PSBD e PP com 8% cada, PDT e PTB com 7% e DEM com 6%. Dados do TSE, atualizados em dezembro de 2017.
[3].
O ICS é pesquisa anual produzida pelo Ibope Inteligência para monitorar a evolução da confiança da população em instituições e grupos sociais. Disponível em <http://www.ibopeinteligencia.com/produtos-e-servicos/indice-de-confianca-social/>, último acesso em 13/01/2018.
[4].
O caso foi julgado nas ADIs 1351 e 1354, quando o STF declarou a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), que criavam a cláusula de desempenho para restringir o direito ao funcionamento parlamentar, o acesso ao horário gratuito de rádio e televisão e a distribuição dos recursos do Fundo Partidário para os partidos que não atingissem 5% dos votos nacionais. O Supremo entendeu que a nova regra asfixiaria muitos dos novos partidos e, portanto, violaria o art. 17 da Constituição. O pluripartidarismo, tal como entendeu o Supremo, seria ameaçado pela regra.
[5].
O TSE editou, em 2007, a Resolução 22.610/07, estabelecendo que pode ocorrer “a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa”. Eram consideradas justa causa a I) incorporação ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; e IV) grave discriminação pessoal. A resolução foi posteriormente referendada pelo STF.
[6].
FALCÃO, Joaquim. Democracia, Direito e Terceiro Setor, 2ª edição, Editora FGV, 2004, p. 20.
[7].
ANNUNZIATA, Rócio; ARPINI, Emilia, GOLD, Tomás; ZEIFER, Bárbara. Argentina in SORJ, Bernardo; FAUSTO, Sergio (Orgs.). Ativismo político em tempos de Internet. Fundação FHC e Centro Edelstein, 2016, p. 67.
[8].
O MBL elegeu um prefeito e sete vereadores em diferentes cidades do país, por diferentes partidos. “Movimento pró-impeachment, MBL elege um prefeito e sete vereadores”, por Bárbara Libório, UOL, 02/10/201 Disponível em <https://eleicoes.uol.com.br/2016/noticias/2016/10/02/desempenho-do-mbl-nas-urnas.htm?cmpid=copiaecola>, último acesso em 18/01/2018.
[9].
Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 23. Direitos políticos. 1.Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: a) de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; b) de votar e serem eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país. 2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal (grifo meu).
[10].
A reforma eleitoral de 2017 foi aprovada através da Lei nº 13.488/2017, que alterou a chamada Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), dentre outras, para complementar a previsão de arrecadação de doações por parte dos eleitores pela internet, antes restrita aos mecanismos nos sites dos próprios candidatos, agora ampliados para os serviços de terceiro que promovam o financiamento coletivo.
[11].
MOHALLEM, Michael; COSTA, Gustavo Salles da. Crowdfunding e o Futuro do Financiamento Eleitoral no Brasil. Estudos Eleitorais, vol. 10, nº 2 maio/agosto 2015, p. 164.
[12].
O RenovaBR se descreve como grupo “criado com o propósito de acelerar novas lideranças políticas e viabilizar o acesso do cidadão comum ao Congresso Nacional”. As informações sobre o processo seletivo estão em <http://www.renovabr.org>, último acesso em 18/01/2018.

É Coordenador do Centro de Justiça e Sociedade e Professor da FGV Direito Rio, onde leciona a disciplina “Formação das Leis: Poder Legislativo, Lobby e Ativismo Social”. Foi diretor no Brasil da organização de ativismo e advocacy Avaaz.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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