Defesa Nacional: Parâmetros Internacionais e Problemas Internos
O Brasil é atento às questões humanitárias e ambientais e tem interesses econômicos globais, mas no tocante à defesa é razoável que suas preocupações priorizem realisticamente seu território, a América do Sul – admitida a extensão conjuntural, em função do assunto, à América Central e Caribe, como admitiu no caso do Haiti – e o Atlântico Sul, sobretudo o ocidental, teatro de seus interesses vitais, onde o Brasil precisa ter presença estratégica significativa. Fora desse teatro, é sensato aceitar que os interesses brasileiros sejam protegidos pela ordem internacional protagonizada por outros Estados, a que o Brasil aportaria o apoio viável e conveniente. Em suma: a agenda brasileira é global na economia, preocupações humanitárias e ambientais, mas na defesa é prioritariamente regional, embora a influência intrusiva da interdependência global exija atenção ao mundo em geral. Este artigo desenvolve o tema de acordo com essa premissa; além de seus parâmetros internacionais, ele aborda problemas internos que afetam a formulação de uma política de defesa adequada ao país.
Cenários globais
A probabilidade de conflito entre grandes potências e seus blocos, que volte a justificar esquemas de segurança coletiva – organizações ou tratados ao estilo Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) –, é hoje inverossímil. Isso devido à constrição nuclear, à inexistência de antagonismos como os que levaram às Primeira e Segunda Guerras Mundiais e poderiam ter transformado a Guerra Fria em quente e também porque há hoje só uma grande potência global, os eua. Evidentemente, essa unipolaridade estratégica é relativa, não se aplica igualmente a todo o mundo e é finita, como sempre aconteceu na história. Por essa razão a inverossimilidade de um novo grande conflito é incerta no longo prazo histórico. Dizia-se no início do século XX que o então florescente comércio global afastava tal hipótese e tivemos nele duas guerras mundiais! Mas o longo prazo histórico transcende este artigo, referenciado ao horizonte de tempo imaginável com alguma segurança.
O recesso das grandes guerras mundiais não significa garantia de paz e tranqüilidade. Prossegue viva a possibilidade de conflitos locais, internacionais ou internos, decorrentes de litígios religiosos e étnicos, disputas territoriais e contenciosos por recursos naturais ou decorrentes do mau uso do meio ambiente. Em geral limitados na intensidade, alguns podem chegar a intensos, alimentados pelo ódio, quando há condições econômicas e psicopolíticas propícias, como houve na guerra entre o Irã dos aiatolás e o Iraque de Sadam Hussein nos 1980. Seus reflexos nem sempre são apenas locais (podem afetar a oferta do petróleo, por exemplo) e inquietam o mundo, inclusive porque as armas de destruição em massa, ao menos as químicas e as biológicas, estão ao alcance de Estados secundários e organizações não-estatais.
Outra modalidade de conflito que marcará presença no mundo do século XXI, economicamente interdependente, ambientalmente unificado e culturalmente menos desarmônico, é a intervenção sob mandato internacional ou até unilateral, inspirada por condutas vistas como atentatórias à Humanidade – direitos humanos, armas de destruição em massa “em mãos inconfiáveis”, criminalidade transnacional (terrorismo, drogas, contrabando), desordem e violência e, quem sabe, agressão abusiva ao meio ambiente e uso predatório de recursos naturais. Ou, como incursão rápida, para proteger interesses vitais e defender ou resgatar pessoas, em países atribulados pela violência. Essas “grandes causas” não raro estão associadas a interesses econômicos, haja vista que o genocídio em Ruanda não mereceu atenção (já a invasão do Kuait, por conta do petróleo, mereceu). Mas por motivos quase que exclusivamente econômicos, como ocorria há cem anos, inclusive na América Central e no Caribe, a intervenção carece hoje de legitimidade: ao menos nas democracias é preciso dar-lhe algum sabor ético, humanitário ou de clara razão de segurança. Uma observação curiosa: há 150 anos a campanha naval britânica contra o tráfego negreiro, causa humanitária, respaldava a capacidade competitiva de colônias britânicas sem trabalho escravo…
Qual defesa Sul-Americana?
Com o fim da Guerra Fria, perdeu sentido associar a segurança brasileira à segurança coletiva propiciada pelo TIAR, se é que algum dia houve isso, fora do quadro da Guerra Fria como entendido pelos eua, potência avalista de sua eficácia. Realmente: sem ameaça comum que justifique o destaque tutelar de país protagônico no esquema coletivo, a exemplo dos eua na OTAN (e no TIAR), a segurança coletiva abstrata é uma concepção fútil, eventualmente suscetível de tornar-se fonte de fricções, em vez de solução de problemas inexistentes.
A retórica bolivariana, que vê no “império” (eua) a ameaça comum legitimadora de um “TIAR sul-americano”, não é igualmente aceita no nosso subcontinente. Alguns de nossos vizinhos podem até mesmo ver na hoje enigmática Venezuela uma razão de preocupação e no Brasil, além do grande parceiro econômico, um vago e difuso motivo de cuidado ou, pelo menos, de descontentamento, hoje em dia volta e meia evidenciado, resultante da história e das assimetrias geográfica, econômica e demográfica. O “imperialismo brasileiro”, centrado na questão de Itaipu e eventualmente estendido aos “brasiguaios”, foi tema mobilizador na eleição paraguaia em 2008 e provavelmente será tema mobilizador do presidente eleito, até mesmo para dissimular dificuldades internas.
Nessa situação de ausência de ameaça comum capaz de neutralizar embaraços psicopolíticos e culturais, qualquer instrumento de segurança coletiva abstrata que pressupõe compromissos deve ser visto com prudência. Não seria surpreendente se um hipotético “TIAR sul-americano” tendesse à inocuidade tácita, ou viesse a causar dissabores ao Brasil, alvo do ressentimento inerente à sua dimensão relativa. Poderia até ser usado para criticar e tentar cercear o preparo militar brasileiro coerente com o Brasil, afirmado supérfluo (ou suspeito…) em razão da segurança coletiva, bem como para defender a alternância no cargo de membro permanente no Conselho de Segurança/onu, pretendido pelo governo do Brasil.
Há algum tempo o presidente Chávez preconizou uma “[…] organização militar sul-americana para defender a soberania da grande pátria que somos […]”, sem definir a ameaça comum a essa dúbia “grande pátria” (sua ideologia unificadora seria o socialismo bolivariano?) e sem dizer como seria configurada a união estratégica, até hoje não resolvida nem na bem-sucedida União Européia. Com muito mais razão também essa idéia sugere cuidado.
Mas a segurança compartilhada continua válida para propósitos bem definidos e limitados, regulados quanto ao espaço territorial abrangido e às condições operacionais. Seria o caso de acordos mini-regionais que, embora comportando atuação militar, de fato seriam mais de segurança do que de defesa, para fazer frente, em áreas restritas, às ameaças irregulares tipo narcotráfico, terrorismo, contrabando e quaisquer outras versões da criminalidade transnacional.
Fontes de conflito na região
A probabilidade de conflitos entre Estados na América do Sul é pequena, mas não nula, haja vista os contenciosos Venezuela–Guiana–Essequibo, saída da Bolívia para o Pacífico e os territorial-marítimos Chile–Peru e Venezuela–Colômbia. Há trinta anos tivemos o caso do canal de Beagle, no sul do continente, que beirou o conflito entre Argentina e Chile. Ademais, o acesso aos – e o controle sobre os – recursos naturais e o descaso pelo meio ambiente, indutor de efeitos transnacionais, podem produzir tensões de risco, como já produziram no passado. Essas razões para conflitos são, na verdade, uma crescente preocupação mundial: já existem contenciosos relacionados com os hidrocarbonetos e a água doce e começam a emergir sinais de contenciosos relacionados com a questão ambiental/climática, cuja real dimensão ainda depende de mais conhecimento científico. Não será surpreendente se alguns assumirem dimensões inquietantes.
Na América do Sul tivemos nos anos 1930 a guerra do Chaco, Paraguai × Bolívia, inspirada na suposta existência de petróleo na região, há quarenta anos Bolívia e Chile viveram o litígio do rio Lauca, típico litígio por água doce, há trinta anos Brasil e Argentina viveram o Itaipu × Corpus (aproveitamento hidroelétrico do rio Paraná) e Argentina e Uruguai vivem hoje o das papeleras, que poluiriam o rio Uruguai. O gás boliviano e a energia de Itaipu são vulnerabilidades de interesse para a segurança nacional brasileira, sujeitas às nuanças da política na Bolívia e no Paraguai; vulnerabilidades que, se construído, o aventado gasoduto Venezuela–Argentina irá ampliar. O que dizer da posição da Bolívia sobre as usinas hidrelétricas no rio Madeira, alegando danos ambientais à montante? O aqüífero Guarani (subsolos do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai) já apareceu na mídia argentina em termos de segurança nacional!
Problemas dessa natureza estão aí, nos cenários global e regional, se bem que na América do Sul seja pouco provável, embora não decididamente improvável, que eles venham a chegar (como chegaram no caso do Chaco) a níveis inadministráveis via negociação. Mas, se isso acontecer, é razoável supor que no nosso subcontinente, onde não existe clima psicopolítico e cultural para conflitos radicais, eles se manterão limitados em intensidade, no espaço e no propósito. O conflito Peru × Equador nos anos 1990 não ultrapassou o nível de escaramuças na selva: seu motivo não entusiasmava os dois povos e os dois países não tinham o mesmo fôlego para intensificá-lo.
Dadas as dimensões do Brasil, suas várias e extensas fronteiras e seus interesses transnacionais – economia, infra-estrutura, brasileiros radicados em paises vizinhos –, há que admitir como possível a ocorrência de contenciosos que o envolvam. A probabilidade de chegarem a proporções graves é diminuta, por ser o Brasil um país tradicionalmente propenso à negociação equilibrada e atenta aos interesses legítimos da(s) outra(s) parte(s). É bem verdade que esses contenciosos podem ser inflados, caso aconteçam em nossos vizinhos dificuldades socioeconômicas e seus conseqüentes retrocessos não-democráticos, que alimentam ou deixam que se desenvolvam contenciosos externos, para dissimular problemas internos: Itaipu × Corpus e o affaire Beagle, ambos na segunda metade dos 1970, foram úteis ao regime argentino de então e a aventura das Malvinas (1982) teria propiciado condições para seu fim tranqüilo, se bem-sucedida. Mas, mesmo nesses casos singulares, o processo de negociação deverá acontecer porque essa é a tendência brasileira, mais ainda se o Brasil contar com respaldo estratégico capaz de persuadir moderação no trato de interesses brasileiros – uma primeira de várias advertências que ocorrerão neste artigo sobre a conveniência de compatibilização das políticas externa e de defesa.
Conflitos étnico-ideológicos
A baixa probabilidade de conflitos na América do Sul limita-se aos interestatais clássicos, não se estende aos irregulares, político-ideológicos, étnicos – que podem incluir desdobramentos da “questão indígena” – ou resultantes da criminalidade organizada, eventualmente associados, como ocorre na Colômbia hoje. Nem sempre eles são contidos nos respectivos territórios nacionais e o Brasil, com sua extensa fronteira, é vulnerável à extravasão. Principalmente, embora não apenas, nas permeáveis fronteiras da Amazônia, cujo controle transcende a capacidade policial e exige forte se não protagônica participação militar. Esses conflitos irregulares internos em princípio não devem criar antagonismos entre os Estados, mas a interferência externa pode gerá-los, e a Venezuela atual sugere atenção a essa hipótese.
Um parêntese sobre a “questão indígena”. Não existem na América do Sul problemas étnicos radicais, como existem na África, mas as tensões dela resultantes estão aumentando no Peru, Equador e principalmente Bolívia, países em que ainda é sensível alguma herança cultural incaica e é grande a participação indígena na população. Ela já recomenda cuidados no Brasil, onde vem sendo estimulado nos nossos índios, por entidades públicas e não-governamentais, seculares e religiosas, nacionais e estrangeiras, bem intencionadas ou nem tanto, um sentimento indigenista que os distingue dos demais brasileiros, incoerente com a realidade propensa à integração. A associação desse sentimento, com nossas áreas indígenas demarcadas à revelia da verdade demográfica e da aculturação e integração que fazem dos índios cidadãos brasileiros similares aos nossos demais cidadãos rurais, é vulnerável à estranha idéia de autonomia aventada na Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, da onu, assinada, mas ainda não ratificada pelo Brasil. Seu preceito autonomista dissemina o vírus capaz de, mais dia menos dia, abalar as estruturas dos Estados nacionais construídas ao longo da história, justificando preocupações de segurança. É curiosa essa contraditória tendência: no Brasil a questão ambiental, de reflexos supranacionais irrefutáveis, desperta manifestações de soberania nacionalista, mas somos tolerantes com a intrusão no processo de inserção de cidadãos brasileiros de etnia indígena na nação brasileira de que eles fazem parte! Parêntese fechado.
Prioridade à Amazônia
Em razão da crescente conexão política, econômica e infra-estrutural regional e do peso brasileiro nela, os conflitos na América do Sul, internacionais clássicos e irregulares internos, em algum grau acabam afetando o Brasil. No pós-Primeira Guerra Mundial, o isolacionismo dos eua facilitou as condições que conduziram à Segunda Guerra Mundial. Resguardadas as proporções, o mesmo se aplica ao Brasil na sua região geopolítica, onde sua estatura relativa é incompatível com o absenteísmo, exige sua presença em prol da tranqüilidade regional, de acordo com a natureza do problema, é claro que começando pelo empenho na intermediação negociadora, preferencialmente legitimada por organização internacional (onu, OEA, Grupo do Rio, outras). Em suma: se ocorrerem razões de preocupação de segurança, pouco prováveis, mas não absolutamente improváveis na América do Sul, impõe-se ao Brasil a coerência com sua estatura relativa e correlata responsabilidade.
Tanto no cenário regional clássico, menos provável, de conflito entre Estados, como no hoje mais provável, o irregular, a prioridade estratégica tradicional-histórica, a da bacia do Prata, perdeu a força do passado porque não existem razões para continuá-la e assim prosseguirá, mais ainda se a difícil união econômica e infra-estrutural vier a ser razoavelmente encaminhada. A insegurança da dinâmica da história no longo prazo sugere discreta atenção ao Sul/Sudoeste, mas a Amazônia merece agora maior atenção. Não se trata de ameaça de Estados vizinhos, que para isso não há motivos nem condições – essas o atual instigante armamentismo venezuelano pode vir a construir –, mas de ameaças irregulares transfronteiriças e da possibilidade de que eventuais ainda que improváveis conflitos entre eles perturbem a estabilidade e a ordem na região.
Quanto à por vezes aventada hipótese de intervenção de grande(s) potência(s), por motivos ambientais/climáticos, tema em que realça a questão da floresta amazônica, ela é improvável ao menos no curto/médio prazo. Para influenciar o comportamento do Brasil é por ora mais prática e menos arriscada a coerção econômica a que somos vulneráveis: embargos, cotas, certificações restritivas, condicionamentos financeiros. Mas, com o aumento das preocupações ambientais/climáticas, o insólito droit d’ingérance citado pelo presidente Mitterand, sem mencionar de forma clara a hipótese militar, pode de fato vir a crescer como ameaça virtual, no correr do século XXI. É de esperar, porém, que os cuidados adequados à inserção sadia da Amazônia no desenvolvimento nacional, fundamentada no conhecimento da realidade e protegida tanto dos excessos permissivos dos interesses econômicos como dos excessos restritivos do preservacionismo à outrance, venham a proporcionar tranqüilidade – sobretudo se apoiados por convincente capacidade de dissuasão estratégica, que sugira a conveniência de solução negociada.
O reaparelhamento militar na América do Sul
As considerações a respeito do cenário político-estratégico da América do Sul merecem um complemento sobre sua dimensão militar.
Chama de imediato a atenção uma tendência geral à região, ainda que com nuanças decorrentes das diferentes possibilidades, limitações e peculiaridades (é o caso da Colômbia) nacionais: o reaparelhamento em curso indica que o preparo concernente à defesa clássica tomou fôlego no pós-Guerra Fria, justificado ostensivamente como substituição de material obsoleto. A obsolescência existe realmente, mas seria ela a única razão da tendência? Paradoxalmente, embora de conformidade com a tradição sul-americana, com exceção da Argentina (a Argentina do pós-redemocratização nos 1980), os paises sul-americanos continuam a prever legalmente a possibilidade da atuação militar na segurança interna e em atividades de natureza não-militar. Um caso emblemático: a ocupação de refinarias de capital estrangeiro pelo Exército boliviano, no início do governo Morales… Quanto aos valores envolvidos, as diversas fontes oscilam de acima de 3% dos respectivos pib no Equador, Chile e Colômbia a menos de 1% no Paraguai. Cito a seguir alguns casos significativos.
É natural que na Colômbia, envolvida há quatro décadas no seu conflito interno, o orçamento da defesa seja relativamente alto, além de ser a Colômbia o país regional que mais recebe ajuda norte-americana, orientada para o combate à narcoguerrilha. Um tanto diferente dos demais, seu sistema militar, compelido pela realidade, aparenta estar mesmo mais condicionado pela contraguerrilha. O interesse pelo avião Supertucano, da Embraer, adequado a essa atividade, demonstrou a racionalidade da orientação colombiana.
Quanto ao Chile, seu preparo militar clássico – navios, aviões, tanques – caminha bem, apoiado por orçamento situado em percentual alto do pib (na hierarquia da América do Sul) e em lei que vincula à defesa uma parte da receita da exportação de cobre. O que inspira esse esforço além da substituição do material obsoleto? Seria uma compensação para o recesso dos militares na vida política nacional? Seria reflexo de preocupações relativas aos limites com o Peru, à saída boliviana para o mar e ao acerto austral com a Argentina? De qualquer forma, trata-se de preparo militar que, em princípio, não inspira preocupação, já que ocorre em país que progride com democracia e tranqüilidade.
No tocante à Argentina, a situação é diferente daquela de trinta anos atrás, quando ela chegou a ter uma boa capacidade militar para os padrões sul-americanos. Nos últimos 25 anos tem sido grande a contenção orçamentária, mas o disponibilizado, em torno de 1,5% do pib nacional, é direcionado, com competência, para a defesa clássica. A Argentina reviu sua lei de defesa nacional, reequacionada quanto à organização, doutrina e inserção na estrutura de poder do Estado. E está fazendo um esforço de revitalização do desenvolvimento tecnológico-industrial de interesse militar, que já foi razoável e regrediu. Sua presença tem sido eficiente em forças de paz da onu.
O enigma sul-americano preocupante hoje é a Venezuela, onde o ritmo do rearmamento (a substituição de material obsoleto?) aumentou muito, apoiado na receita do petróleo. A mídia tem noticiado que estão sendo negociados e/ou adquiridos navios, aviões, helicópteros de ataque, tanques, submarinos e equipamento antiaéreo, sobretudo da Rússia. Um detalhe merece destaque: os aviões de interceptação e ataque, os excelentes Sukhoi russos, subverterão o poder aéreo na América do Sul. O calcanhar-de-Aquiles do programa venezuelano é a manutenção de todo esse material tecnologicamente complexo: deverá ser grande a dependência do apoio russo.
O programa sugere dúvidas. Salvo na modalidade guerrilha, há sentido na retórica do presidente Chávez de que os cem mil fuzis comprados à Rússia destinar-se-iam à defesa contra a invasão do “império”? Seria o programa uma manifestação de pretendido destaque regional? Pretensão que, diga-se de passagem, está refletida no noticiado acordo de defesa entre Venezuela e Bolívia, que já provocou manifestações no Chile, Peru e Paraguai (antes de Lugo; agora isso pode mudar). Seria para apoiar, em algum momento futuro, a solução dos contenciosos territoriais ainda cultivados na Venezuela? Seria mesmo para resistir à invasão norte-americana, finalidade que mais parece retórica mobilizadora de apoio ao regime do que propósito real?
Embora relativamente pequeno em percentual do pib, inferior a 2% há anos, o valor absoluto do orçamento de defesa do Brasil tem sido rotineiramente o maior da América do Sul. Deve-se notar, porém, que o gasto com pessoal representa cerca de 75% do total. Sem esquecer que a dimensão relativa do Brasil no quadro político, econômico e demográfico regional, como já dito antes, impõe ao país atenção e responsabilidade coerentes com sua posição nele.
Os maiores fornecedores de armamentos para a América do Sul são os eua (sobretudo para a Colômbia), Espanha, França e Rússia; fornecedora recente, basicamente para a Venezuela, a Rússia provavelmente ganhará posições. Os maiores compradores vinham sendo o Chile, Colômbia e Brasil, hierarquia que a Venezuela está mudando. O rearmamentismo sul-americano por enquanto não é relevante no mundo. Na lista dos quinze maiores orçamentos de defesa não há país sul-americano: eua (mais do que a soma dos outros 14), Inglaterra, França, Japão, China, Alemanha, Rússia, Índia, Itália, Arábia Saudita (receita de petróleo e autoritarismo, combinação que intranqüiliza…), Coréia do Sul, Canadá, Austrália, Espanha e Israel. Mas, apesar de pouco expressivos na comparação global, os orçamentos de defesa dos países sul-americanos, somados, como proporção do pib regional, têm crescido e é provável que continuem crescendo. De qualquer forma, não há ainda razão para preocupação – se bem que, como nossa região está vivendo a ascensão de governos neopopulistas de propensão salvacionista, aberta ao escapismo dos “bodes expiatórios”, há que manter algum cuidado com o rearmamentismo em curso.
É adequado o preparo militar do Brasil?
Cabe agora uma pergunta: diante do exposto são corretos nossa política de defesa, nosso modelo estrutural, organizacional e territorial militar e nosso preparo militar? Essa pergunta está na agenda de quem se preocupa com o tema. Precisamos respondê-la identificando e avaliando nossos problemas de defesa verossímeis, definindo nossas vulnerabilidades e preocupações prioritárias e procurando compatibilizar o preparo da defesa com o sufoco fiscal – compreensível diante de nossas demandas socioeconômicas, errado é ele atuar menos por criteriosa opção racional e mais no bojo da apatia política e societária. E precisamos fazer tudo isso sem devaneios ufanistas, mas conscientes de que o mundo não funciona condicionado apenas pela utopia e pelo jurisdicismo, imunes às injunções do poder. O peso relativo do Brasil no funcionamento tranqüilo desse mundo imperfeito será inferior ao potencial sugerido por suas circunstâncias geográfica, econômica e demográfica, se não contar com o respaldo de poder militar compatível – a já citada compatibilização das políticas externa e de defesa.
Apresento a seguir um esboço de resposta. Não caberia aventar aqui a configuração concreta do sistema militar, encargo profissional do Ministério da Defesa e das Forças: o esboço é figurado sobre propósitos básicos do preparo militar, como depreendidos do texto anterior – propósitos por ora atendidos aquém do adequado. Convém que esse preparo construa:
1. um poder militar ágil/móvel, com capacidade para, de conformidade com os cenários geofísicos em que ocorrerem – o que inclui das operações clássicas à guerrilha/contraguerrilha – abortar rapidamente agressões ao Brasil ou no mínimo deixar claro que, se praticadas por potências de grande nível estratégico, elas não teriam custo baixo. Ou seja, um poder militar útil para dissuadir agressões e estimular soluções negociadas;
2. um poder militar, novamente ágil/móvel, coerente com o Brasil na sua região – América do Sul e Atlântico Sul, ao menos o ocidental –,
capaz de apoiar nela a conciliação pacífica de contenciosos e contribuir para a tranqüilidade e ordem regional. Complementarmente, capaz de cooperar, coadjutória ou simbolicamente, para a consecução das mesmas finalidades, no mundo. Em ambos os casos, respeitada a racionalidade das razões, sancionada por consenso internacional; e
3. um poder militar capaz de prover a ação militar necessária à tranqüilidade, segurança e respeito à lei brasileira e à internacional adotada pelo Brasil, no seu território terrestre e marítimo, bem como, excepcionalmente e de conformidade com a lei, necessária à garantia da ordem constitucional e legal, se ameaçada além da capacidade policial. Embora se refira ao Brasil lato sensu, essa meta exige particular atenção à Amazônia e suas fronteiras permeáveis, mar costeiro (com suas instalações de petróleo e gás, de peso crescente na segurança nacional) e espaço aéreo. Ela não inclui o uso rotineiro das Forças Armadas na segurança pública, atribuição policial.
O preparo militar pautado por esses propósitos deve compreender, além da configuração material – meios, sistemas de armas – e da segurança logística necessária ao uso soberano dos meios e sistemas, o encaminhamento modernizante de problemas culturalmente sensíveis, que afetam a capacidade militar. Incluem-se no foco dessa modernização: a integração (estratégica, operacional, logística e de inteligência) das Forças, sua estruturação organizacional e distribuição territorial – em cuja revisão pesará a mudança do enfoque geoestratégico prioritário e a mobilidade moderna –, suas doutrinas, o modelo do serviço militar (adequabilidade do atual e sua revisão, se conveniente e possível) e as dimensões dos efetivos ante a tecnologia.
Particularmente importante: a questão tecnológica e industrial. Dos anos 1930 aos 1970 as Forças Armadas estimularam a indústria de base e de transformação, entendidas como necessárias à segurança nacional. Essa idéia aplica-se agora com mais razão à alta tecnologia, determinante decisivo da capacidade militar moderna. Há que associar o preparo militar ao complexo nacional de alta tecnologia: instituições de pesquisa e desenvolvimento e empresas capazes de desenvolvimentos autóctones, indispensáveis ao menos quanto àquilo cuja transferência é cerceada pelas maiores potências (de que são exemplos a propulsão naval nuclear, missilística e espaço, guerra eletrônica) e/ou capazes de absorver e praticar a tecnologia transferida, condição imprescindível ao uso soberano dos meios e sistemas de armas importados.
A inserção da defesa na vida nacional e a superação da apatia
Não haverá sucesso na inserção da defesa na vida nacional enquanto persistir a apatia política e societária pelo assunto. E tampouco haverá enquanto não lhe for assegurada uma moldura legal satisfatória.
A apatia decorre de várias razões interconectadas:
1. o preconceito gerado pelas interveniências militares na vida nacional;
2. o mérito objetivo da defesa não gera votos e no sistema militar não há espaço para o clientelismo inerente à nossa cultura – o que reduz o já precário interesse político pela defesa;
3. o despreparo de nossas elites, prejudicial porque o país precisa de políticos – de civis em geral – aptos a oferecer à defesa um aporte competente, mais ainda com Ministério da Defesa;
4. a não-percepção de ameaças externas graves; e
5. depois de Rio Branco, que via papel para o poder militar no cenário internacional, particularmente no regional, nossa política externa pouco tem considerado o respaldo militar. No início dos 1900, Estanislao Zeballos, notável diplomata argentino, dizia que a “diplomacia desarmada” (título de livro seu) prejudicara a Argentina. Essa assertiva não nos caberia hoje como advertência?
A superação dessas razões e a melhora da sensibilidade nacional para a defesa – se vierem a ocorrer – constituirão um processo longo pelo qual, sem ufanismo e sem apelar para ameaças infladas, se difunda no mundo político, universidade, mídia e sociedade um ideário sensato, que contextualize o país na região e no mundo, sob a perspectiva da segurança e defesa. Sem isso, será difícil dirimir o processo vicioso que volta e meia enseja dúvidas sobre as finalidades do poder militar: defesa externa, contra quais ameaças imagináveis? Garantia da lei e da ordem? Apoio ao desenvolvimento e às populações marginalizadas? Participação em intervenções sob mandato internacional? Um reflexo sintomático desse imbróglio: o Ministério da Defesa é visto mais por seu papel nas rotinas da vida nacional do que na defesa; raramente citado nos percalços da Força Aérea, sua interveniência no transporte aéreo o exponenciou nas atribulações da Varig, nos acidentes com os aviões da Gol e TAM, nas crises dos controladores e nos “apagões” aéreos.
Há um sintoma sugestivo da apatia: não se pode pretender do Congresso dedicação detalhada, mas na votação do orçamento os recursos são concedidos ou negados sem a atenção aos efeitos sobre a defesa nacional, embora numa democracia o Congresso também seja responsável por ela!
O fato é que em tempos recentes nosso poder militar vem sendo tratado como desimportante, lembrado (mal lembrado) apenas na síndrome da insegurança pública. Nas pesquisas de opinião as Forças Armadas são bem situadas no quesito confiabilidade, aferido sobretudo em termos de correção ética num universo público venal: a defesa é preocupação secundária, ou praticamente ausente. É comum a crítica à autonomia das Forças Armadas brasileiras: não seria ela estimulada, se não compelida pela apatia alienante? Na nossa época globalizada, de revisão restritiva do conceito de soberania, tendemos ao menoscabo do poder militar, ferramenta da soberania!
Vejamos a moldura legal da defesa, influente na compatibilização das dimensões política e econômica, com a estratégica.
A Constituição de 1988 prescreve corretamente as finalidades básicas das Forças Armadas: “[…] destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Mas o preceito é insuficiente como orientação, e isso não foi resolvido pelas versões de 1992 e 1999 da Lei Complementar que regula as Forças, na profundidade que dirimisse dúvidas e coordenasse visões setoriais (a emenda de 2004 visou basicamente a atuação interna).
Em 1996 foi promulgada uma política integrada de defesa, que deveria preencher o vácuo, orientando o preparo militar e compatibilizando defesa, política externa e desenvolvimento. Preparada em processo marcado por idiossincrasias setoriais, ela acabou sendo um conjunto de generalidades de consenso fácil, com objetivos e diretrizes vagos, praticamente aberto às diversas perspectivas sobre o tema. Em 2005 aquela primeira versão foi substituída por nova, mais bem estruturada e menos vaga, embora ainda merecendo aprofundamento quanto às preocupações e vulnerabilidades verossímeis, que permitam induzir prioridades para o sistema militar integrado. É sintomático observar que a política de defesa não tem merecido atenção crítica nas Comissões de defesa e política externa da Câmara e do Senado.
A complicada criação do Ministério da Defesa, adotado em todo o mundo “que conta”, refletiu as dificuldades da integração militar, da ajustagem da tradição à realidade. Cabe-lhe compatibilizar a defesa desejável em função do cenário político-estratégico atual e presumível, com as possibilidades brasileiras – o que exige ser o Ministério capaz de desenvolver a conexão entre política, burocracia, sociedade, economia e defesa, rever concepções tradicionais e superintender o planejamento estratégico da defesa e o conseqüente preparo das Forças, promovendo a integração possível. Ainda há muito que avançar nesse sentido.
Conclusão
Como vimos, a defesa nacional desenvolve-se em dois fronts.
O externo, cuja condução correta exige a compatibilização das políticas externa e de defesa, dividido em dois cenários: o global, em que a interveniência brasileira deve ser, por ora, caracterizada por cooperação coadjutória, ou simbólica para indicar posição; e o regional, conceituado na premissa no início do artigo, de interesse mais direto e prioritário, que recomenda atenção coerente com o Brasil na região.
E o interno, que remete a política de defesa à prática do preparo do poder militar, sua moldura legal, organização, estrutura, distribuição territorial, dimensões, doutrina(s) e outras particularidades do sistema de defesa.
O desenvolvimento do front interno exige medidas simples, outras abrangentes e demoradas, algumas sujeitas a controvérsias e objeções, outras estruturadas sobre planejamentos projetados no tempo, mutáveis com as circunstâncias, exige a associação do preparo militar com o desenvolvimento tecnológico-industrial brasileiro. As controvérsias e objeções explicam-se: as Forças Armadas, organizações hierarquizadas e de formação homogênea, são naturalmente propensas às concepções de suas heranças culturais como, por exemplo, as que mantiveram historicamente nosso Exército orientado para a bacia do Prata (e para a presença territorial/ordem interna), a Marinha por decênios obcecada com a defesa anti-submarina do tráfego marítimo e a Aeronáutica voltada para a aviação civil. Mas isso está mudando rapidamente, numa indicação de receptividade militar para a evolução positiva, para a compatibilização da defesa nacional com as vicissitudes do mundo atual e presumível – e do Brasil nele.
Finalmente, o desenvolvimento de todo o processo será mais fácil se ocorrer a inversão do descaso político e societário, que venha a conferir mérito à defesa na vida nacional, será mais fácil se apoiado no entendimento político e societário de que fraqueza e pacifismo não asseguram o progresso em tranqüilidade e felicidade social, de que vivemos num mundo cujas imperfeições sugerem a conveniência de respaldo estratégico, comedido, mas convincente, à tradição brasileira de buscar soluções negociadas para os contenciosos internacionais.
Não há na história caso de grande país bem-sucedido no cenário internacional que não tenha resolvido satisfatoriamente a coerência entre suas dimensões geográfica, econômica, demográfica e estratégica, sem que o sentimento nacional compreendesse e apoiasse as preocupações sensatas, concernentes à defesa. Uma vez deslanchada a evolução que conduza a essa coerência, crescerá naturalmente a presença do Brasil na ordem internacional; mais dia menos dia, acontecerá a condição de membro permanente do Conselho de Segurança/onu – um destaque que não ocorre por mera volição política, exige capacidade para honrá-lo.
Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado).
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