01 janeiro 2011

Democracia e Regulamentação da Mídia

A regulamentação de mídia deve impedir o monopólio das atuais empresas e evitar que a entrada em cena das operadoras de telecomunicações, fortes e poderosas, forme novos nichos de domínio, ampliando a concentração de mercado, opina o autor. Para Dirceu, “nosso novo marco legal deve garantir o espaço das produções de conteúdo nacional e estimular as iniciativas independentes e locais, valorizando nossa abundante, intensa e fecunda cultura. Esse é o sentido da tão alvejada e rechaçada proposta de regulamentação de mídia. Não podemos aceitar o engodo da autorregulamentação”.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, que demarca em definitivo a suplantação do regime militar e a instituição de um novo conjunto de princípios e valores legais que norteiam a refundação da democracia brasileira, nosso país vem galgando, passo a passo e sucessivamente, o amadurecimento de suas instituições. Nesse recente processo de pouco mais de duas décadas, não raro identificamos momentos em que a “velha ordem”, por assim dizer, anacronicamente, se manifesta. Mas é indubitável que tais obstáculos não constituíram empecilhos à consolidação de nossa democracia.

Aliás, diga-se, é o que se espera do desenvolvimento dos processos históricos, em que o ciclo em derrocada já embute as forças irrefreáveis da ordem vindoura, que, por sua vez, não extingue de imediato todos os sustentáculos da etapa anterior. Nesse sentido, a auspiciosa e inescapável conclusão é que, nos dias de hoje, a democracia brasileira se apresenta significativamente mais vivaz, robusta e dinâmica do que há 25 anos.

Recentemente, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esse processo se acentuou, com a adoção de medidas e a aprovação de arcabouços legais capazes de transformar nosso país a ponto de ter início, de fato, a experimentação do nosso tão prometido novo patamar de desenvolvimento socioeconômico.

O Brasil projetou-se internamente e para o mundo como uma nação atraente porque se tornou bem-sucedida no enfrentamento de graves problemas sociais, como a fome, a miséria, o desemprego e a estagnação do crescimento econômico, descortinando um novo conjunto de desafios igualmente importantes, mas inicialmente menos urgentes há uma década. Foram as políticas desse período Lula que nos possibilitaram avançar no caminho do incremento de nossa democracia, valorizando-a. Interesses que alimentam quimeras 

A despeito desse avanço democrático, difunde-se, com frequência, a nebulosa tese de existência de riscos à liberdade de imprensa e, por conseguinte, à democracia. O argumento a que se apegam é o da intenção do governo de regulamentar o setor de comunicações , carente de tal iniciativa desde que o Supremo Tribunal Federal derrogou a antiga Lei de Imprensa, assinada pela Junta Militar que governou o País em 1969, e, especialmente, a partir da nova Carta Constitucional que orienta o Poder Legislativo a aprovar leis federais para o setor.

Não por acaso, os que alimentam tais suspeitas de temores antidemocráticos são justamente muitos daqueles que, por vias diversas e obtusas, apoiaram e colaboraram com o regime militar – este, sim, por ilegítimo e ditador, supressor da democracia e de todas as liberdades individuais, inclusive a de imprensa. Sob um prisma mais amplo, fazem-no porque, com o avanço da caminhada democrática no Brasil, em que, progressivamente, os direitos e o exercício da cidadania deixam de apenas adornar o rol de avanços das leis e passam a se tornar realidades cotidianas, enterram-se os últimos estertores da “velha ordem”; sob o olhar específico do setor de comunicações, buscam manter intocados seus quinhões preservados há décadas e que se encontram ameaçados pelo avanço da “nova ordem” democrática.

Não pretendem, em suma, ver sucumbir suas derradeiras expectativas de dominação sobre os rumos políticos e econômicos da nação. O propósito dos avanços democráticos – experimentados especialmente na última década de inclusão de grandes massas de outrora miseráveis no acesso a bens e direitos básicos a uma vida minimamente digna, o que é, inclusive, determinado em nossa Constituição – é o de substituir os mecanismos que favorecem o controle e a dominação dos meios econômicos por instrumentos que estimulem a ampliação da participação social nos mais diferentes ramos da economia. Na medida em que essa substituição se avizinha, aumentam os ataques dos antes detentores dos mecanismos de domínio contra os atores políticos – notadamente, no caso das comunicações, o governo federal – que se articulam para aprovar os novos instrumentos de funcionamento do setor. Ora, a razão última desses despautérios é a tentativa de desgastar e fustigar os objetivos de uma nova legislação capaz de oxigenar ramo tão estratégico para o País, alterações legais que devem sempre atender ao interesse de fortalecimento da democracia e à valorização dos princípios constitucionais. A SIP e o Brasil.


Primeiramente, fundamental se faz separar o que é divergência de opinião no bojo deste debate do que é interesse econômico e de dominação, estes os verdadeiros combustíveis das irresponsáveis afirmações de risco à liberdade de imprensa. Sem tal distinção, não se faz um debate consistente sobre o tema, produzindo-se apenas alaridos infrutíferos. É o caso do comportamento da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa), que recentemente encerrou sua 66ª Assembleia Geral em Mérida (México) com um documento contra as políticas do Brasil para o setor. O estopim dos ataques da SIP ao Brasil é a identificação de tentativas de monitoramento, controle e até censura aos meios de comunicação nacionais. Buscam igualar as propostas regulação do setor com imaginárias ameaças à liberdade de imprensa e de expressão, em ação apoiada por associações brasileiras. O interesse maior, contudo, é encobrir o monopólio das comunicações e satisfazer interesses econômicos e comerciais, não raro utilizados politicamente – não nos esqueçamos de que a SIP, pelo silêncio e conivência, na prática, apoiou, em 2002, o golpe militar que depôs por dois dias o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. O PT e a imprensa.


O artifício de criação de “mitos” e “assombrações” acaba por atentar contra o próprio desenvolvimento da democracia brasileira, na medida em que, além de obstruir a regulamentação do setor de comunicações, atua no intuito de cristalizar ignomínias, como as que impingem ao Partido dos Trabalhadores um viés “autoritário” e “antiliberdade de imprensa”. Cumpre ressaltar que o PT, como diversos outros atores políticos nacionais, tem destacado papel na história do Brasil de luta, formulação, debate, trabalho, exercício e estímulo à retomada, desenvolvimento e aprimoramento da democracia. Não é pouco dizer que, sem o PT, a democracia no País não teria o grau de avanço que possui hoje.

No governo, e fora dele, o partido deu mostras seguidas e sistemáticas de apreço pelas instituições democráticas e de respeito pela Constituição que ajudou a elaborar e aprovar.

É, ademais, em benefício da Carta Constitucional que busca a regulamentação da mídia, cujos artigos 220, 221 e 222 pedem a aprovação de lei federal desde 1988. Ambos integram o Capítulo V da Constituição (Da Comunicação Social), que estabelece, entre outros princípios, que:


1) “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” (art. 220);
2) “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística” (art. 220, § 1º); e
3) “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220, § 2º).
A leitura de tais dispositivos constitucionais permite um único entendimento categórico: não se admite, sob qualquer hipótese, sequer obstrução, quiçá censura, ao “pensamento, criação e expressão” de ideias ou à livre circulação de informações jornalísticas. A decorrência imediata desse entendimento é inevitável: independentemente do conjunto legal que vier a ser aprovado no cumprimento da determinação constitucional de regulamentar o funcionamento da mídia, não pode haver ofensa à liberdade de pensamento, criação, expressão e difusão da informação. Portanto, não há que temer ou falar em riscos à atividade jornalística e em ameaças à democracia quando a intenção é regular o setor de comunicações. Pelo contrário. O processo de formulação das novas leis federais sobre mídias – que acontecerá em conjunto com a sociedade e com seu apoio, porque se dará no fórum adequado, o Congresso Nacional – deve ter como resultado a ampliação dos princípios democráticos já expressos na Constituição de 1988. Notem que nossa Carta Magna determina, igualmente, que:


1) “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (art. 220, § 5º);


2) As leis federais para regulamentação do setor devem “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão” (art. 220, § 3º, inc. II); e
3) “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (art. 221).
Em suma, regulamentar o funcionamento dos meios de comunicação social brasileiros não pode ser considerado um atentado à liberdade de imprensa e/ou à democracia, porque antes se revela uma necessidade expressa, há muito, em nossa Constituição. Uma necessidade com dimensões evidentes nos âmbitos jurídicos, políticos, sociais, culturais e econômicos. Buscar um debate profundo – na sociedade, no Congresso, nas organizações sociais e nos veículos de comunicação – sobre uma nova lei de mídia é perseguir valiosos princípios democráticos em nosso país. A condição única, e sobre a qual há consenso, é que a nova legislação deve ter como somatória: dar maior segurança aos agentes econômicos, ampliar a competição, estimular processos de inovação e desenvolvimento tecnológico, garantir os direitos dos cidadãos quando ofendidos em sua honra, multiplicar os meios de oferta de informação, valorizar a produção regional e promover o conhecimento via comunicação. Experiência internacional.


Superada a mixórdia acerca da importância de regulamentação da mídia, afastando qualquer tentativa de aproximar esta crucial iniciativa das supostas intenções ocultas de reintroduzir no País a abominável prática da censura, abre-se espaço para discutir de que forma avançaremos no caminho do novo marco legal. A observação de como procederam ao tratar do tema nações de tradição reconhecidamente democrática constitui ato de prudência, sapiência e aprendizado. Países como França, Portugal, Reino Unido e EUA (pasmem os que advogam contra a regulamentação em nosso Brasil!), para ficar em apenas alguns exemplos, trabalharam suas legislações de comunicação social tendo em alto valor o estabelecimento de deveres e garantias de direitos .

Na desequilibrada relação entre corporações de mídia e cidadãos, a preocupação tem sido a de assegurar os direitos de defesa perante a calúnia e a difamação que perpetuam a destruição de reputações e que em nada têm de exercício da liberdade de expressão – tratou-se de criar mecanismos em obediência ao que determina o inc. II do § 3º do art. 220 de nossa Constituição . No Reino Unido, a liberdade de imprensa está assegurada pela Lei de Direitos Humanos de 1998, que garante a livre expressão e protege fortemente qualquer pessoa em seu direito à privacidade e contra qualquer tipo de difamação por parte dos veículos de comunicação.

A cultura jurídica britânica preserva fortemente a inviolabilidade judicial, ao contrário do que se pode imaginar com a profusão de tabloides de fofocas e noticiários acerca dos hábitos, passeios, opções, enfim, dos detalhes “bisbilhotados” da família real. Na Inglaterra, a privacidade é tida como um direito essencial. Qualquer pessoa, quando difamada, pode processar a imprensa com o intuito de obter reparação. Além disso, prevalece o sigilo em alto grau dos julgamentos, sendo vedada aos jornalistas a publicação de detalhes dos processos judiciais, bem como sobre provas de um crime.

Os mecanismos de proteção contra a difamação e a inviolabilidade dos processos judiciais estão no mesmo patamar da garantia de liberdade de imprensa no país. No que concerne aos meios audiovisuais, vigora no Reino Unido o modelo de exploração público-estatal, cujo maior exemplo é a rede BBC inglesa, uma referência jornalística e sinônimo de respeitabilidade internacional. Trata-se de uma empresa pública independente e financiada por uma licença de TV, paga pelos cidadãos ingleses.

Ao todo, a BBC detém o controle de 14 canais de televisão, cinco de emissoras de rádio nacionais, além de dezenas de rádios locais e serviços internacionais em 32 línguas – entre elas, o português da BBC Brasil. O predomínio na audiência pela BBC é compensado por políticas de forte incentivo ao pluralismo. Desde 2005, o governo britânico concede licenças às rádios comunitárias com o intuito de valorizar a produção local, chegando a oferecer, inclusive, verbas para que sejam legalizadas. Reino Unido, EUA e França.

Os EUA, costumeiramente chamados pela imprensa brasileira de “a maior democracia mundial”, têm como princípio maior de sua atividade de imprensa a Primeira Emenda da Constituição americana, elaborada em 1787. Complementarmente, têm uma Lei de Comunicação de 1934, voltada principalmente para emissoras de rádio, e possuem também, há alguns anos, uma legislação no mesmo sentido para a televisão e o setor audiovisual.

Embora não exista uma lei única de imprensa, os EUA adotam várias regras em suas legislações – inclusive nas estaduais, posto que os estados americanos guardam maior autonomia legislativa do que as unidades da Federação brasileira. Os jornais e, mais recentemente, a internet não têm regulação governamental. Todavia, invariavelmente, quaisquer publicações de teor difamatório ou calunioso geram processos por parte das vítimas, em ações que tramitam dentro de normas e leis vigentes no país. Prevalece o princípio de que o mercado e a opinião pública regulam o conteúdo das informações, com um mínimo de interferência do governo.

Mas um dos pilares da preservação desse funcionamento é a Justiça, que atua com grande rigor para proteger as eventuais vítimas daqueles que cometem os crimes de calúnia e difamação, com a aplicação de multas pesadas que incentivam os mecanismos internos de controle de conteúdo e inibem comportamentos irresponsáveis por parte das empresas. As regras escritas sobre a comunicação nos EUA são voltadas, principalmente, para a regulação dos canais de TV e das emissoras de rádio. O audiovisual é supervisionado pela FCC (Comissão Federal de Comunicações, ou Federal Communications Commission), por comissões parlamentares e por decisões da Suprema Corte. A FCC, instituída pela Lei de Comunicação de 1934, tem por prerrogativa monitorar as leis de outorga e as concessões públicas, válidas por oito anos para emissoras de rádio e televisão. Finalmente, existem normas que regulam a exibição de cenas consideradas inapropriadas a determinados horários e estabelecem a exigência de três horas semanais de programas educativos para as crianças.


Berço da moderna democracia e inspiração para os regimes democráticos ocidentais, a França tem uma das mais antigas leis de imprensa do mundo. Em vigor desde 29 de julho de 1881, a legislação francesa influenciou a de inúmeros países, como Espanha, Itália e Portugal. O norte do arcabouço legal francês é proteger tanto a liberdade de expressão, quanto o direito de privacidade. Nesse sentido, tal qual o exemplo britânico, pressupõe ações judiciais para reparação em caso de difamação. Há ampla garantia à livre circulação dos jornais – atualizada também à internet – mas o incitamento ao ódio, à violência e à discriminação são crimes passíveis de punição com supressão da liberdade e multas severas.

Em solo francês, nenhum grupo de mídia pode controlar mais de 30% da imprensa diária, o que abate no nascedouro qualquer tentativa de monopólio no setor de comunicações. A França convive também, sem constrangimentos ou preocupações, com uma agência reguladora independente: o CSA (Conselho Superior do Audiovisual). Trata-se de órgão competente para regulamentar toda a atividade das emissoras de rádio e televisão. Formado por nove representantes, cujas indicações são divididas proporcionalmente entre o governo, o Senado e a Câmara dos Deputados, o CSA francês escolhe os diretores dos canais públicos e é responsável pela outorga das licenças privadas.

As concessões de rádio valem por cinco anos, e as de televisão valem por dez anos. Cabe ao CSA suspender, encerrar ou negar os pedidos de concessão, além de aplicar multas e sanções. Criado para garantir a diversidade da cultura francesa, monitorar o cumprimento das funções educativas e proteger os direitos autorais, o CSA atua para garantir a pluralidade de opiniões e, consequentemente, a democracia – na França, os concessionários de televisão e rádio são obrigados a garantir o pluralismo político, abrindo espaço aos diferentes candidatos e partidos.


A consequência dessa legislação é a coexistência de rádios anarquistas, socialistas e até mesmo de extrema-direita, bem como um grande número de emissoras que representam grupos minoritários. Como se verifica em outros ramos da economia francesa, a preocupação com a produção de conteúdo nacional nas comunicações também está presente. Assim, a disseminação e a preservação do idioma francês são garantidas por uma legislação de mídia que fixa cotas para a veiculação de músicas francesas nas rádios e obriga as emissoras de TV a transmitirem 60% de conteúdo europeu em sua programação – 40% de origem nacional.

Em Portugal, a regulamentação da mídia tem como um de seus baluartes a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), cujo objetivo é garantir transparência na produção e veiculação dos conteúdos de comunicação, bem como o pluralismo cultural e a diversidade de expressão. Criada em 2005, a entidade tem seus conselheiros indicados pelo Parlamento e aprovados pelo presidente da República. Cabe ao órgão a concessão de outorgas de rádio, televisão, telefonia e telecomunicações – os mesmos ramos que, junto com os impressos, blogs e sites, são regulados pela ERC.

As concessões de rádio e TV têm validade de 15 anos, mas são reavaliadas a cada cinco anos. Adicionalmente, a ERC é responsável por colaborar na elaboração de políticas públicas para o setor de comunicação. É a ERC, também, quem recebe as reclamações quando algum órgão de mídia extrapola de seu direito de informar e adentra o campo das ofensas à honra. A entidade é especialmente sensível às questões que envolvem a privacidade e os direitos das minorias e dos públicos infantil e jovem. Autorregulamentação.


No Brasil, o vácuo legal deixado pela decisão do STF em relação à Lei de Imprensa e a ausência de regulamentação até hoje do Capítulo V da Constituição de 1988 começou a ser preenchido com a realização da 1ª Confecom (Conferência Nacional de Comunicação), que marca a retomada definitiva do debate sobre o setor. Interessante notar que a Confecom é iniciativa de ampla participação da sociedade, sendo a resultante nacional das conferências estaduais e municipais, onde participaram os movimentos negros, das mulheres, estudantis e indígenas e os sindicatos, além de algumas grandes mídias impressas e grandes emissoras de rádio e televisão.

As empresas de maior porte e as associações que as representam abandonaram as mesas de negociação no início do processo que culminou com a Confecom, mas, recentemente, com a evidência de que o governo federal apresentaria um projeto de lei baseado nas conclusões da conferência, dispararam um processo paralelo de “autorregulamentação”.

Com o respaldo dos grandes empresários de comunicação, o Conselho Nacional de Autorregulamentação dos jornais é considerado pelos próprios como o modo adequado “de evitar qualquer controle externo”. A base da “autorregulação” será o código de ética do Estatuto da ANJ (Associação Nacional dos Jornais), que fixa compromissos com: a defesa da liberdade de expressão, dos direitos humanos, da democracia e da livre iniciativa, o sigilo das fontes de informação, a pluralidade de opinião e a correção de erros cometidos nas edições.

A iniciativa dos donos de jornais visa a reagir à formação dos conselhos de comunicação social nos estados – entre outros, Ceará, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Piauí, Alagoas e Bahia. Não é preciso ir a fundo para desnudar as reais preocupações: ao perceberem que não será possível impedir o iminente aprofundamento do debate em torno da regulamentação, tentam agora blindar seus interesses para esvaziar a proposta no Congresso Nacional e oferecer a autorregulamentação como alternativa. Ora, mas o controle externo foi instituído para a magistratura em 2005 e não representou nenhuma ameaça à independência dos juízes.

Ademais, a experiência de outros países democráticos, algumas mencionadas acima, comprova que a existência de órgãos reguladores não constitui riscos à independência da mídia, à liberdade de expressão e à atividade jornalística.

O contrário, por sua vez, foi possível verificar: a regulação e os órgãos fiscalizadores instituídos em países democráticos garantiram a liberdade de imprensa e de informação, o pluralismo, impediram o monopólio da informação e dos veículos de comunicação, defenderam as minorias, os direitos humanos, a cultura nacional e a indústria cultural. Inegável que a participação dos grandes veí­culos de comunicação brasileiros é importante e desejada, ainda que tenham inicialmente tentado impedir a continuidade do debate na Confecom. Mas não podemos aceitar o engodo da autorregulamentação, que se constitui iniciativa para perpetrar monopólios e perpetuar os atuais descasos com os direitos constitucionais dos cidadãos.

A inexistência de respeito por parte significativa da grande mídia aos direitos de resposta e de preservação da imagem; a ausência de concorrência no setor; e o controle da distribuição de jornais e revistas pelos mesmos grupos empresariais são provas inequívocas da necessidade de fazer a regulamentação via Congresso Nacional. Novas mídias, nova regulação
Em diversas oportunidades, tenho insistido em que a mídia não é um segmento econômico qualquer. Desde os volumes de faturamento – na casa dos bilhões anuais – ao seu produto final –que são os fatos, as opiniões e as ideias determinantes para a formação de consensos – passando pelo importante papel de fiscalização dos Poderes Públicos, trata-se de um ambiente econômico singular. E poderoso.

A concentração desse poder nas mãos de poucos, algo histórico no Brasil, torna-se ainda mais preocupante quando se observam os avanços quase que diários das novas tecnologias, capazes de incrementar as comunicações com a introdução de novas mídias. O advento de novas leis nos países europeus busca atender a esse novo patamar de desenvolvimento da comunicação e da transmissão de informações e dados.

Não podemos deixar o Brasil ficar para trás. Aqui, nossa necessidade de revisão legal é mais ampla, pois a legislação da radiodifusão data de 1962 e está mais do que ultrapassada. A internet e a convergência tecnológica, que possibilita o uso de uma mesma rede para múltiplas tarefas e serviços, praticamente nos obriga a encontrar um novo marco de leis. Em muito breve, seremos capazes de, pelo celular e com alta capacidade de armazenamento e transmissão de dados, acessar a internet, ler notícias, trocar e-mails e mensagens instantâneas, jogar, ouvir músicas e assistir aos programas de televisão.

Será essa a nova realidade de comunicação multimídia que trabalharemos em breve – qualquer palpite temporal é certeza de erro, tamanha a velocidade das transformações nesse campo do conhecimento humano. Novamente, manter os atuais mecanismos de concentração econômica é altamente nocivo aos interesses nacionais. Arrisco-me a dizer que constitui gravíssimo ato de irresponsabilidade do Governo e do Congresso permitirem que nosso país se lance na próxima década sem uma nova legislação que regulamente a comunicação social. É inconcebível que se possa defender o vácuo como garantia de segurança jurídica e ambiente democrático desejável.


A regulamentação de mídia deve se configurar para impedir o monopólio das atuais empresas e evitar que a entrada em cena das operadoras de telecomunicações, fortes e poderosas, forme novos nichos de domínio, ampliando a concentração de mercado. Deve estabelecer as condições pelas quais a parte mais fraca da cadeia (o cidadão, pessoa física) possa exercer seu direito de defesa, reparação e restabelecimento da honra ante a parte mais forte (o veí­culo de comunicação, pessoa jurídica). Acima de tudo, nosso novo marco legal deve garantir o espaço das produções de conteúdo nacional e estimular as iniciativas independentes e locais, valorizando nossa abundante, intensa e fecunda cultura. Esse é o sentido da tão alvejada e rechaçada proposta de regulamentação de mídia, tratada como produto indigesto pelos grandes grupos empresariais do setor de comunicação. Há que concluir que nutrir o medo e incentivar a demonização do novo marco regulatório têm como motivação o desconhecimento do debate, aqui e no exterior, ou a defesa de interesses particulares que se interpõem ao avanço da sociedade e da democracia brasileiras. E, neste caso, é preciso que se acostumem a ter a vontade popular acima das suas próprias.


65 anos, é advogado, ex-ministro da Casa Civil, membro do Diretório Nacional do PT.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter