05 outubro 2015

Desatando o Nó da Política

Um paradoxo enreda o Congresso Nacional. Quanto mais popular e politicamente forte a gestão do Executivo federal, mais subserviente é a legislatura da vez, limitando-se a referendar medidas provisórias e a seguir a agenda do Palácio do Planalto. Mas, quando o governo se enfraquece por alguma razão – seja econômica, ética ou ambas –, o Legislativo, por mais que tente implementar uma pauta própria, não forma maioria em torno de um conjunto coerente de ideias e acaba envolvido pelos lobbies dos grupos mais bem organizados.

Um paradoxo enreda o Congresso Nacional. Quanto mais popular e politicamente forte a gestão do Executivo federal, mais subserviente é a legislatura da vez, limitando-se a referendar medidas provisórias e a seguir a agenda do Palácio do Planalto. Mas, quando o governo se enfraquece por alguma razão – seja econômica, ética ou ambas –, o Legislativo, por mais que tente implementar uma pauta própria, não forma maioria em torno de um conjunto coerente de ideias e acaba envolvido pelos lobbies dos grupos mais bem organizados. A agenda se fragmenta e a soma das partes do que é aprovado não cabe no Orçamento Geral da União.
Quem pode mais aprova o que é do seu interesse exclusivo. Ninguém zela pelo interesse comum. Contam-se entre as forças que se destacam nessas ocasiões de fraqueza do Executivo os grupos de pressão do funcionalismo público, das corporações, de setores empresariais e de organizações sociais e religiosas capazes de mobilizar militantes e lobistas. Sem contar os próprios interesses corporativos dos congressistas. Daí a armar pauta-bomba capaz de explodir o gasto da União, Estados e municípios é um pulo.
Nesse cenário, é cada vez mais difícil a aprovação de reformas estruturais e profundas, reformas que não beneficiam ninguém em especial no curto prazo, mas que criam condições para um crescimento sustentável que, após eventual sacrifício inicial, beneficie a maioria da sociedade. Ou a iniciativa parte do Executivo em um momento de alta popularidade, ou não existe. Mas, raros são os governantes que aproveitam essa oportunidade para planejar estrategicamente o longo prazo do país. Afinal, eles sabem que seu cacife junto ao Congresso é finito e escasso. Em regra, preferem gastá-lo com bondades de efeito imediatista do que investi-lo em sementes que ultrapassariam o fim de seu mandato antes de germinarem e produzirem frutos.
A questão, portanto, é como escapar desse paradoxo. Como desenroscar o Congresso dessa simbiose perversa com o Executivo? Como transformá-lo em representante de fato do conjunto da sociedade e não só de seus setores mais poderosos e organizados? A resposta é, em si, também paradoxal. Só outra reforma, a política, poderia criar as condições necessárias para aprovar as demais. E como reformar a política sem contrariar os interesses dos políticos – se são eles que vão aprovar ou não tal reforma?
Para tentar desatar esse nó, vale a pena relembrar o processo que levou nossas instituições a se emaranharem tanto. É necessário compreender suas imbricações, correlações e causalidades para dividir o problema em partes. Só assim, puxando cada fio, desenrola-se o novelo e entende-se a novela.
Governismo  e  coesão partidária
Há uma correlação positiva entre a popularidade do presidente de turno e a taxa de governismo dos partidos que o apoiam. Maior é a aprovação presidencial, maior também tende a ser a fidelidade dos parlamentares da coalizão governista. O fenômeno é facilmente verificável através do Basômetro, ferramenta digital desenvolvida pelo Estadão Dados para medir a proporção de votos dados individualmente por deputados e senadores em comparação à orientação do líder do governo na Câmara e no Senado.
Que, no Brasil, quase todos os partidos se norteiam pelo governo, e não por uma ideologia os cientistas políticos já estão cansados de dizer, escrever e provar. Ao votar qualquer coisa, a maioria dos deputados toma uma decisão binária, a favor ou contra o governante da vez. A origem desse comportamento vem da questão que depurou o homo politicus desde Platão: ele ganha ou perde, naquele momento, apoiando quem dá as cartas e verbas?
A observação da taxa de governismo ao longo do tempo mostra variações que não têm nada de aleatórias. Elas refletem a capacidade do Executivo de atender às demandas dos congressistas por participação no governo e liberação de recursos para suas emendas ao Orçamento Geral da União, mas também estão ligadas à popularidade do governante. Ao longo do segundo e popular mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na presidência, a taxa média de governismo na Câmara dos Deputados nunca ficou abaixo de 78%. Ele fechou seu período como presidente com 80% de popularidade com 85% dos votos dos deputados, em média.
Nem sempre foi assim, porém. Na segunda metade do primeiro mandato, Lula enfrentou uma rebelião da chamada base aliada depois que o escândalo do mensalão derrubou ministros e danificou a imagem do presidente perante a opinião pública. Entre janeiro de 2005 – antes de as denúncias estourarem – e setembro de 2006 – quando o caso já resultara em uma estridente Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) –, a taxa de governismo na Câmara caiu de 91% para 62%. Só voltou a subir nos últimos meses de governo, quando a propaganda eleitoral da campanha da reeleição de Lula resgatou parte de sua popularidade perdida.
Dilma Rousseff (PT) experimentou fenômeno semelhante, mas com oscilações ainda mais bruscas. Embora a dificuldade de articulação política tenha impedido a presidente de alcançar a mesma fidelidade de seu antecessor e padrinho junto aos partidos de sua base de apoio, Dilma manteve-se com uma taxa de governismo em torno de 80% na Câmara desde a posse até meados de 2013. Bastaram as ruas encherem-se de jovens manifestantes a partir de junho para a taxa descer abruptamente a 66%. A partir daí, suas dificuldades com o Congresso só fi zeram aumentar.
Nem a reeleição da presidente em 2014 conseguiu restabelecer uma relação de confiança do Executivo com o Congresso. Ao longo do segundo mandato, a taxa de governismo na Câmara começou já muito mais baixa do que nos governos anteriores, em 64% e com viés de baixa. Caiu a 60% antes de ela terceirizar a articulação política para o vice-presidente Michel Temer (PMDB) e chegou a setembro de 2015 em 63%. Isso custou várias derrotas ao governo no Congresso – traduzidas simbolicamente na incapacidade de aprovar as medidas de ajuste fiscal enviadas pela equipe econômica a fim de tentar equilibrar as contas públicas.
Descontextualizado de sua série histórica, os 63% podem parecer enganadoramente altos. Mas, eles significam, entre outros problemas, que apenas 75 dos 513 deputados federais seguiram a orientação do governo em pelo menos 90% das votações. Esse é o tamanho do núcleo duro da base de apoio de Dilma na Câmara. São quase todos do PT. Para se ter ideia da fragilidade que um núcleo tão pequeno implica, Lula terminou o segundo mandato com quase quatro vezes mais deputados com quem podia contar em 9 de cada 10 votações. No primeiro mandato, a própria Dilma tinha um núcleo duro de apoio duas vezes maior na Câmara do que hoje.
Mais grave, essa base de apoio frágil e inconsistente abriu a possibilidade do impeachment da presidente. Tivesse ela a garantia de poder contar com o voto de pelo menos 172 deputados, fossem quais fossem as circunstâncias, as tentativas de tirá-la do cargo não teriam avançado como avançaram. Quando o núcleo duro do governo no Congresso encolhe demais, sua fragilidade política produz um círculo vicioso que se retroalimenta. Fraqueza produz mais fraqueza até a ingovernabilidade.

A infidelidade não afeta apenas o Executivo. Ela se espalha também na dinâmica interna das bancadas partidárias, dos deputados com seus líderes. A perda de rumo do governo afetou a bússola dos partidos. Desde o mensalão que as bancadas partidárias na Câmara dos Deputados não mostravam tanta falta de coesão interna. Sem o magnetismo do Executivo, os parlamentares perderam seu Norte e vagam a esmo nas votações. Há deputados de um mesmo partido com taxas de governismo tão díspares quanto 21% e 96% (caso do Solidariedade), ou 24% e 84% (PTB), 22% e 91% (PP). Mais do que nunca, a base governista virou base movediça.
Quando o governo sabe o que faz, a oscilação dos partidos ocorre em bloco, com a maioria dos deputados seguindo a orientação do líder de sua legenda. Quando a força de atração do governo é fraca, a coesão interna dos partidos também diminui. Desde que a operação Lava Jato da Polícia Federal começou a encher as carceragens com poderosos, houve uma revolução na física partidária. A força gravitacional exercida pelo governo diminuiu tanto que o cálculo sobre a conveniência de apoiar ou não Dilma complicou-se. Não basta o governo atender às demandas dos deputados por verbas ou cargos. Na hora de votar, eles também consideram o impacto que seguir a orientação do líder do governo, ou mesmo do líder de seu partido, terá sobre a opinião pública e, por tabela, em sua capacidade de se reeleger.
Pouca identificação com os partidos
Tome-se o PP, por exemplo. Era tão governista que tinha direito a ministro e diretoria na Petrobras. Até o começo de 2014, mais de 80% dos votos do partido seguiam a orientação do governo. Vieram as ordens de prisão do juiz Sergio Moro, as delações premiadas e a taxa de governismo do PP despencou abaixo de 60%. Ficou mais perto da taxa do principal partido de oposição, o PSDB (27%), do que da do PT (94%). Ao mesmo tempo, a coesão interna da bancada do PP se desintegrou. Houve votações em 2015 em que 21 deputados do partido votaram a favor do governo e 15 votaram contra – como na apreciação da chamada lei dos caminhoneiros. Já na votação do orçamento impositivo pela Câmara, sua bancada dividiu-se novamente em 21 a 15, dessa vez contra o governo.
O mesmo fenômeno de desagregação repete-se com maior ou menor intensidade em quase todos os partidos da suposta base governista. Existe um indicador científico para medi-lo. Chama-se índice de Rice e também pode ser verificado em outra ferramenta desenvolvida pelo Estadão Dados. Sua escala vai de 0 a 1. Quanto maior o valor, maior a coesão partidária. Quanto mais próxima de 0, mais desagregada e dividida é a bancada.
Por muito tempo, e até o final de 2014, o índice de Rice de praticamente todos os partidos com representação na Câmara oscilou entre 0,8 e 1, indicando coesão forte. A partir do momento em que a relação de confiança do Congresso com o Executivo desanda, tanto a taxa de governismo cai, quanto a desagregação partidária aumenta na maioria das agremiações.
Em dezembro de 2014, todos os principais partidos da base governista tinham índice de Rice alto: PMDB, PSD e PP, por exemplo, estavam com 0,9. O PT chegava a 1, enquanto o PTB marcava 0,8. Com o agravamento da crise política e a perda de popularidade de Dilma, as bancadas perderam coesão rapidamente. A desagregação é mais grave, pela ordem, no PP e no PTB (Rice de 0,5), depois no PSB (0,6), mas atingiu também os dois partidos estrategicamente mais importantes para o governo na Câmara: PMDB e PSD viram seu índice cair para 0,7.
As únicas das maiores agremiações que conseguem se manter coesas são as que estão nas extremidades do espectro político. Os deputados do PT e PCdoB de um lado e do PSDB e DEM de outro têm se comportado em bloco na maioria das votações, uns a favor e os outros contra o governo, mas juntos nas diferenças.
Quanto maior a desagregação partidária, mais difícil o governo aprovar o que precisa. Em setembro de 2015, um modelo estatístico desenvolvido pelo Estadão Dados projetava, com 90% de acerto, que a probabilidade de o Executivo conseguir aprovar um mero projeto de lei – ou seja, obter maioria simples dos votos dos deputados em plenário – dependia do apoio dos líderes do PMDB e do PSD. Sem sua declaração explícita a favor do projeto, o governo tinha uma chance em três de ser derrotado. Se fossem contra o projeto, o risco subia para 2 chances em 3.
Em votações que demandam quórum qualificado – como a apreciação de leis complementares à Constituição, necessárias, por exemplo, para a criação de impostos – a dificuldade do governo cresce exponencialmente. Mesmo com o apoio explícito dos líderes do PMDB e do PSD, a chance de o governo não alcançar maioria absoluta (257 votos) e perder era meio a meio. E para obter os 308 votos necessários à aprovação de uma emenda à Constituição – como para a restaurar a CPMF, ou promover as reformas tributária e previdenciária – o governo precisaria não apenas do apoio de PMDB e PSD, mas também o da oposição (da minoria e do PSDB). Sem isso, sua chance de derrota nesse tipo de votação era de 61%.
Como se vê, um governo enfraquecido perante a opinião pública – e sem disponibilidade financeira para atender a todas as demandas de liberação de recursos orçamentários de sua base – perde a capacidade de capitanear qualquer votação expressiva no Congresso, ainda mais as reformas constitucionais. Como efeito colateral, a coesão interna dos partidos se perde e aumenta o risco de todo o tipo de lobby aprovar o que lhe interessar. Poderes externos – tanto do dinheiro quanto das forças capazes de mobilizar claques para ocupar as galerias da Câmara e do Senado – aumentam sua influência sobre as decisões do Congresso.
É um agravante ao problema que abordaremos a seguir.
Financiamento eleitoral e corrupção
Quanto mais o postulante a um cargo legislativo arrecada, maior a chance de ele conseguir se eleger. Juntos, os cerca de 1,5 mil deputados federais, estaduais e senadores gastaram 29% mais do que a soma dos gastos dos mais de 13 mil candidatos que não se elegeram. Os vencedores arrecadaram R$ 1,4 bilhão, contra R$ 1,1 bi dos derrotados. Na média, os eleitos gastaram 11 vezes mais do que os não eleitos. Em outras palavras, o dinheiro elege.
A diferença entre o gasto médio de vencedores e vencidos varia de cargo para cargo. A disputa financeira menos desigual é no Senado. São menos candidatos – média de 4 por vaga – e os partidos podem canalizar mais recursos para as candidaturas. Entre os concorrentes a senador, a campanha dos eleitos custou 4,3 vezes mais do que o dos derrotados: R$ 4,9 milhões, em média, contra R$ 1,1 milhão para os que não chegaram a Brasília.
Na eleição para a Câmara dos Deputados é que o cofre pesa mais. Os 513 vencedores gastaram, em média, R$ 1,422 milhão para se eleger, em um gasto total de R$ 723 milhões. Já os milhares de candidatos que ficaram pelo caminho gastaram, juntos, cerca de metade disso. Na média, suas campanhas custaram 93% menos do que a dos eleitos. Mesmo assim, gastaram R$ 397 milhões à toa.
O dinheiro faz tanta diferença na eleição para deputado federal que há faixas de sucesso e de insucesso, proporcionais a quanto o candidato gastou. Por exemplo: todos aqueles que arrecadaram mais de R$ 5 milhões se elegeram. Foram dez, como Sergio Sveiter (PSD-RJ), que angariou R$ 5,7 milhões para conquistar 57 mil votos, média de R$ 99 por voto – a mais cara da Câmara.
Se o candidato à Câmara não puder gastar tanto, mas quiser assumir um risco de não se eleger menor do que 10%, ele terá que gastar entre R$ 3 milhões e R$ 5 milhões. Foram 59 os candidatos que gastaram nessa faixa, dos quais 54 se elegeram. O que gastou menos nesse grupo, Carlos Sampaio (PSDB-SP), declarou R$ 3 milhões. Mas, não é garantido. Outros cinco não tiveram a mesma eficiência – como foi o caso de Newton Lima (PT-SP), que gastou R$ 3,6 milhões, mas nem assim conseguiu voltar à Câmara.
Dos que gastaram mais de R$ 1 milhão (e menos de R$ 3 milhões), 65% tiveram sucesso. Já entre os candidatos à Câmara que arrecadaram menos de R$ 500 mil, só 3% conseguiram se eleger.
É claro que as chances de ser eleito dependem não apenas dos votos do candidato, mas da soma de sufrágios de sua coligação – e que isso varia de partido para partido e é diferente em cada estado. Por isso não é possível afirmar que os valores desta eleição sejam uma regra replicável em pleitos futuros.
Os dados tampouco provam o sentido da correlação. Uma corrente da ciência política advoga que o fato de um candidato já ser favorito facilita a arrecadação de recursos para sua campanha e a torna mais rica. Mas, a maioria dos pesquisadores concorda que o oposto é mais determinante: mais dinheiro, mais votos.
Certo é que a regra não vale igualmente para todos. Ao menos não com a mesma intensidade, como lembra o professor de ciência política da USP, Bruno Speck. Especialista em financiamento eleitoral, seus estudos mostram que o peso do dinheiro depende muito se o candidato concorre à reeleição ou se ele é um novato.
O incumbente já larga com 60% de chance de ser eleito, e aumenta essa probabilidade em função da quantidade de recursos que consegue arrecadar. Já o novato parte com uma chance muito menor, que beira o zero, e vai aumentando suas possibilidades na razão direta de quanto ele consegue de doações. Assim, o dinheiro alavanca mais o novato do que o candidato à reeleição.
O dinheiro só pesa pouco para um tipo de deputado: o que está inserido em redes sociais com interesses homogêneos e que se mobilizam para eleger um representante por sua ideologia.
O voto mais barato desta legislatura foi o do pastor Marco Feliciano (PSC-SP), que representa eleitores evangélicos e defende valores sociais tradicionais. Não por acaso, o segundo voto mais barato foi o de seu antípoda, Jean Willys (PSOL-RJ), que defende o casamento gay e a legalização da maconha. O primeiro custou R$ 0,37, e o segundo, R$ 0,47. Na média, seus futuros colegas gastaram R$ 12,60 por voto para chegar à Câmara.
Diante de um poder tão determinante no resultado das urnas quanto o do dinheiro, é natural que os políticos busquem cada vez aumentar mais a sua arrecadação eleitoral. O resultado tem sido o crescimento contínuo dos custos de campanha.
Os deputados e senadores eleitos em 2014 arrecadaram R$ 200 milhões a mais do que os parlamentares que se elegeram em 2010. A campanha dos novos 513 deputados federais saiu 34% mais cara. Já os novos 27 senadores arrecadaram 16% mais do que a média dos seus colegas que foram eleitos quatro anos antes.
O resultado desse novo aumento do custo das campanhas eleitorais é que, pela primeira vez, o Congresso Nacional angariou uma simbólica cifra de 10 dígitos para se eleger. Foram R$ 721 milhões arrecadados pelos deputados federais e R$ 125 milhões obtidos pelos 27 novos senadores. Somando-se os R$ 274 milhões gastos pelos 54 senadores eleitos em 2010 (eles têm mais quatro anos de mandato), a conta total chega a R$ 1,120 bilhão.
O custo para eleger os novos deputados e senadores cresceu 11% acima da inflação do período. Nunca houve um Congresso tão caro – mas essa constatação se repete a cada quatro anos. Se nenhuma reforma política sair do discurso para a lei, a tendência é que as campanhas de 2018 custem ainda mais do que esta. Foi assim em 2006 na comparação com 2002, e em 2010 em relação a 2006.
Com uma conta cada vez mais cara, aumenta o poder de influência sobre os congressistas de quem paga a fatura. As empresas bancam a maior parte dos custos da eleição para o Congresso. Dos R$ 721 milhões arrecadados pelos deputados federais da atual legislatura, nada menos do que R$ 553 milhões foram doados por pessoas jurídicas, o equivalente a 77% do total. Outros R$ 148 milhões vieram de pessoas físicas (as mais “generosas” delas são os próprios candidatos), e os R$ 20 milhões restantes foram financiados pelo Fundo Partidário – ou seja, o Tesouro.
Há grande concentração nas doações de pessoas jurídicas. Os 67 maiores entre os 4.422 doadores doaram 50% de tudo o que deputados e senadores eleitos receberam de empresas. Ou seja, 1,5% dos doadores deu metade do dinheiro. A concentração aumenta o potencial de influência política dos grandes contribuidores.
Sete de cada dez deputados federais eleitos recebeu recursos de pelo menos uma das dez empresas que mais fizeram doações eleitorais em 2014. Os top 10 doadores contribuíram financeiramente para a eleição de 360 dos 513 deputados da nova Câmara: 70%. É uma combinação inédita de concentração e eficiência das doações por parte das empresas que contribuíram.
Uma das principais razões para isso ter acontecido foi que, como suas assessorias costumam dizer, as empresas não privilegiam “nenhum partido, candidato ou corrente política”. Ao contrário, elas buscam o mais amplo espectro possível. Os 360 deputados que elas financiaram estão distribuídos por 23 partidos diferentes.
A maior bancada é a do bife. Empresas do grupo JBS (ou que têm os mesmos sócios) distribuíram R$ 61,2 milhões para 162 deputados eleitos. Dona dos maiores frigoríficos do País, a JBS deu recursos para a cúpula de 21 dos 28 partidos representados na nova Câmara, incluindo todos os grandes. Foram as direções partidárias que redistribuíram o dinheiro aos candidatos. A tática mostrou-se eficaz. Além de ter sido a maior doadora, JBS e companhia acabaram elegendo a mais numerosa bancada da Câmara – mais do que o dobro da do maior partido, o PT.
A JBS não foi a única que tentou não deixar nenhum partido a descoberto. O Grupo Bradesco doou R$ 20,3 milhões para 113 deputados eleitos por 16 partidos. É a segunda maior bancada empresarial. Ficou à frente do grupo Itaú, que contribuiu para a eleição de 84 novos deputados de 16 partidos. Mas, o concorrente foi mais econômico com o dinheiro: gastou “só” R$ 6,5 milhões. Há 42 deputados que foram financiados por ambos os bancos. O Bradesco privilegiou as direções partidárias. O Itaú fez mais doações a candidatos.
Como setor, as empreiteiras têm a maior presença entre os top 10 doadores da nova Câmara. Cinco delas entraram na lista: Construtora OAS, Construtora Andrade Gutierrez, Construtora Norberto Odebrecht, UTC Engenharia e Construtora Queiroz Galvão.
A OAS investiu R$ 13 milhões para ajudar a eleger 79 deputados de 17 partidos – do PT ao PSDB, passando por PMDB e todos os demais grandes partidos. Já a Andrade Gutierrez gastou quase o mesmo valor e ajudou a eleger 68 deputados federais. A Odebrecht doou R$ 6,5 milhões para 62 deputados, a UTC deu R$ 7,2 milhões para 61 deputados e a Queiroz Galvão, R$ 7,5 milhões para 57 parlamentares. Mas, há muitas sobreposições.
Descontando-se as doações dobradas ou triplicadas que vários novos deputados receberam de mais de uma empreiteira, a bancada  do concreto na nova Câmara tem 214 deputados de 23 partidos. Isso não inclui parlamentares que receberam doações de empreiteiras que não entraram nos top 10, como C.R. Almeida.
O grupo Vale elegeu a terceira maior bancada empresarial. Foram 85 os deputados eleitos – de 19 partidos – que receberam uma parte dos R$ 17,7 milhões doados pela empresa. Entre quem recebeu, um ex-presidente da Comissão de Minas e Energia da Câmara. Como a JBS, outra empresa voltada ao consumo popular se destacou nestas eleições: foi a Ambev (dona das marcas Brahma e Antarctica, entre outras), que doou R$ 11,7 milhões e ajudou a eleger 76 deputados de 19 partidos. A bancada do churrasco, que recebeu do frigorífico e da cervejaria, soma 25 deputados.
O retorno do investimento feito pelas empresas pode vir de várias maneiras diferentes: não convocação para depor em CPIs (como ocorreu com os donos da JBS), tratamento camarada para os que são convocados (como ocorreu com o dono da Odebrecht), aprovação de projetos de lei de interesse das empresas, arquivamento daqueles que não lhes interessam – e por aí vai. Não há nada na legislação que proíba um parlamentar de usar seu cargo para agir em favor de quem financiou sua campanha. Nem mesmo quando o conflito de interesses é evidente.
Isso abre caminho para a corrupção: 199 deputados estaduais, 178 deputados federais e 16 senadores têm financiadores de suas campanhas eleitorais presos pela Polícia Federal no âmbito da Lava Jato. Duas das empreiteiras que tiveram seus presidentes encarcerados pela operação Lava Jato doaram juntas cerca de R$ 150 milhões a candidatos de duas dezenas de partidos nas eleições de 2014: R$ 94 milhões pela Andrade Gutierrez e R$ 48 milhões pela Construtora Norberto Odebrecht. Considerando-se apenas as doações para deputados e senadores, o valor soma R$ 64 milhões. O dinheiro foi distribuído entre todos os principais partidos, tanto da base governista quanto da oposição.
Levantamento do Congresso em Foco descobriu que pelo menos 130 deputados federais (26% da Câmara) são alvo de investigações ou inquéritos no Supremo Tribunal Federal – inclusive seu presidente. No Senado, a taxa é ainda maior: 40%.
A necessidade de impor limites à influência do capital nas eleições é tão evidente que o STF, por 8 votos a 3, votou pela inconstitucionalidade das doações eleitorais por empresas. A decisão demorou a ter efeito porque um ministro da corte ficou examinando o processo por mais de um ano, enquanto esperava o Congresso legislar a respeito. Câmara e Senado não conseguiram chegar a um acordo. Enquanto os deputados incluíram as doações eleitorais de pessoas jurídicas na Constituição, os senadores tentaram proibi-la em lei. No braço de ferro entre as duas Casas, prevaleceu a Câmara, que conseguiu incluir a contribuição empresarial em lei, com limite de R$ 20 milhões por empresa doadora. A decisão do STF tornou esse artigo inconstitucional, porém – e, a menos que os congressistas mudem a Constituição, é apenas uma questão de tempo até as contribuições de empresas saírem de cena nas eleições –, ao menos na contabilidade oficial.
Tão importante, porém, quanto determinar quem pode doar é estabelecer limites em valores absolutos para as doações. O sistema atual é proporcional: 10% da renda. Quem ganha mais pode mais. Ao favorecer os mais ricos e poderosos, o método reforça a percepção de que o poder político pode ser comprado. O ideal é que se estabeleçam valores máximos que cada pessoa possa doar.
Também é recomendável a adoção de tetos de gastos de campanha na lei, e não mais pelos próprios candidatos. Foi o que acabou sendo aprovado na reforma eleitoral, com limites inferiores aos maiores gastos declarados nas eleições anteriores. Espera-se assim reverter a tendência atual, de encarecimento das campanhas a cada nova eleição.
É cedo para saber o impacto que essas mudanças terão no jogo eleitoral. Mas, tendo em vista a constante preocupação dos parlamentares de preservar a própria espécie, é de se desconfiar que as novas regras não atrapalhem a recondução de quem já está no poder ou a eleição de seus herdeiros.
Crise de representação
Dos 513 deputados federais da legislatura passada, 401 tentaram se reeleger em 2014 e 290 conseguiram. Sua taxa de sucesso foi de 72%. Nada se correlaciona mais com a vitória na eleição parlamentar do que já ser um parlamentar. Visto de outra maneira, se “apenas” 290 estão de volta a Brasília pode-se imaginar que 223 são novos. Não é o caso. Pelo menos 25 são ex-deputados que, após breve interregno, voltaram à Casa.
A atual legislatura da Câmara tem 198 neófitos de direito. Formalmente, é a maior taxa de renovação desde 1998: 39%. Mas, grande parte das caras novas têm sobrenomes ou nomes de guerra velhos conhecidos do Congresso. Mudam só os prenomes: Bruno em lugar de Mario, Clarissa em vez de Anthony. Às vezes nem isso, basta acrescentar um “júnior”, um “neto” ou até um “bisneto” no final. São quase todos herdeiros do poder. É um dos legados da monarquia que a república brasileira conserva com mais zelo.
Entre os neófitos, quem não chegou lá por ser parente de político se encaixa em pelo menos uma dessas categorias: já passou por outro cargo eletivo (prefeito, deputado estadual), exerceu alguma função pública (policial, promotor), é celebridade – com exceções que confirmam a regra. Não houve renovação de fato. As oligarquias reeleitas são as de sempre.
Há que se perguntar o motivo pelo qual numa eleição em que 70% dos eleitores diziam querer mudança a maioria dos vencedores pertence ao velho clube dos donos do poder. A resposta é o círculo vicioso do sistema político brasileiro. Quanto mais ojeriza a política provoca, mais ela fica restrita aos políticos profissionais e seus parentes.
Nunca, desde o fim da ditadura militar, tão poucos brasileiros se identificaram com uma agremiação partidária. O Datafolha mostrou que 3 a cada 4 não têm, hoje, simpatia ou preferência por qualquer partido. E não é por falta de opção: nunca houve tantas siglas partidárias no Brasil. Para 75% dos brasileiros, os 32 partidos cheiram igual – e, embora rime, não é a perfume.
Esse desencanto com a política partidária se deve principalmente ao desprestígio do Partido dos Trabalhadores. O PT foi o único grande partido que cresceu consistentemente nos últimos 15 anos nos municípios. Entre 2000 e 2014, dobrou o número de vereadores e triplicou o de prefeitos. Isso se refletiu em aumentos das bancadas de deputados e senadores do partido. Os escândalos de corrupção em série somados à crise econômica puseram fim a esse ciclo. Hoje, há um terço dos simpatizantes petistas que havia um ano atrás. E nenhum partido de oposição – nem aliado – conseguiu aproveitar a derrocada do adversário para ocupar esse vácuo.
O eleitor se desiludiu
A perda de prestígio dos partidos é só um dos sintomas. Todas as instituições democráticas têm dificuldades para passar pelas narinas da população. O Executivo nunca foi tão mal avaliado. E a impopularidade não é apenas do governo federal. Governadores e prefeitos também sofrem tendência de baixa. Os deputados e senadores mal haviam tomado posse e metade dos brasileiros já achava que eles eram ruins ou péssimos em seus mandatos.
O Índice de Confiança Social de 2015 do Ibope mostra queda abrupta do prestígio de tudo relacionado à política. Congresso Nacional e Presidência da República desmancharam aos olhos do público. Numa escala em que 0 é desconfiança total e 100 implica confiança absoluta, ambos empataram em míseros 22 pontos. A confiança na instituição presidência caiu pela metade desde 2014. Tinha 44 e perdeu 22 pontos. Já a nos congressistas perdeu 13 dos 35 pontos que tinha. Mais indigente só a confiança da população nos partidos políticos. Seu prestígio esfarelou: caiu de 30 para 17 pontos em um ano.
Nunca houve tão poucas filiações partidárias no Brasil quanto em 2015. E este não é um ano qualquer. É o momento-chave do ciclo político de sete anos que está começando. É quando os partidos deveriam aproveitar o interesse paroquial dos futuros candidatos a vereador e a prefeito para multiplicar suas bases nos municípios. Na maioria dos partidos ocorre o oposto: há menos filiados hoje do que havia no fim do ano passado. Na soma das 32 legendas, houve uma redução de 3 mil militantes desde dezembro.
Quatro anos atrás – também na véspera de um ano de eleições municipais –, o total de filiados a partidos políticos cresceu em 1 milhão de eleitores: pulou de 14,2 para 15,2 milhões entre 2010 e 2011. Há oito anos, de 2006 para 2007, o aumento havia sido maior, de 1,7 milhão de filiados. E há 12 anos, o incremento fora mais volumoso ainda: 2,3 milhões, entre 2002 e 2003.
Por que isso acontecia? A eleição local é a porta de entrada na política partidária. Para disputá-la, os candidatos precisam estar filiados pelo menos um ano antes. Além disso, os aspirantes a poderosos precisam filiar o maior número possível de pessoas para conquistarem maioria nos diretórios municipais, que depois formarão a chapa de candidatos a vereador e a prefeito nas eleições subsequentes. É o ano zero da política. Pois não há sinal de que o fenômeno esteja se repetindo em 2015.
O eleitor se desiludiu. Não lhe faltam motivos: cada vez menos gente acredita em partidos, o custo de entrada no sistema eleitoral é muito alto, as estruturas partidárias seguem dominadas por velhas oligarquias. É o círculo vicioso em ação: não há interesse porque não há renovação, e não há renovação porque não há interesse. O problema é que a desilusão com a política partidária tem repercussões mais graves e profundas.
Pesquisa de opinião feita em 2014 pelo Barômetro das Américas, da Universidade Vanderbilt (EUA), mostra que 48% dos brasileiros acham um golpe militar justificável diante de muita corrupção. É o dobro do que no Chile e dois terços mais do que na Argentina e no Uruguai. É preocupante, mas menos extraordinário se tomarmos os EUA como base. Lá, um terço concorda com a tese golpista.
Tudo isso se resume em uma ideia, cada vez mais frequente e popular entre os brasileiros: o sistema político não funciona. Isso ficou muito claro nas manifestações de 2013, mas sempre é bom colocar as coisas em perspectiva e comparar com outros países. O apoio ao sistema político no Brasil é o mais baixo do continente: 38%. Perde até para a dividida Venezuela (42%). Toma de goleada da Costa Rica (62%), Canadá (60%) e Argentina (55%).
Fica difícil de contraditar a ideia de que o sistema é ineficiente quando se sabe que esta é a Câmara dos Deputados mais pulverizada desde a redemocratização. Não apenas pelo número recorde de 28 agremiações partidárias com cadeiras na Casa. Os partidos surgidos depois de 1990 nunca tiveram tanto espaço e poder. As novas siglas somam 143 deputados federais – mais do que o dobro do que elegeram em 2010. A pulverização do poder faz o preço da governabilidade ficar mais caro, quase impagável.
Ao ganho de poder dos nanicos emergentes corresponde uma perda de representação dos partidos históricos. Quase todos estão menores do que eram até 2014. São os casos de PMDB, PT, PDT, PR, DEM, PP e PCdoB. Os que não encolheram não cresceram: PSDB e PSB. Com exceção desta última, todas as siglas históricas estão menores do que já foram um dia. O PT teve, em 2014, seu pior desempenho na eleição para a Câmara desde 1998. A bancada petista é 23% menor do que a de 2002. A do PSDB está 45% menor do que chegou a ser em 1998.
Em números absolutos, o PMDB é o mais decadente. Elegeu quase duas centenas a menos de deputados do que em 1986, o ponto alto do partido. Porém, mesmo com uma bancada 75% menor do que aquela, os peemedebistas comandam a Câmara. De novo. Operando como “dono” de uma S/A, Eduardo Cunha alavancou os 67 votos do PMDB, conseguiu transformá-los em “golden shares” e elegeu-se presidente da Casa. Fez a mágica através de alianças com outras siglas minoritárias para formar um bloco majoritário com 151 votos e, a partir dele, comandar os 513 deputados.
A pulverização que dificulta e encarece a governabilidade não é responsabilidade exclusiva do Congresso. O Supremo Tribunal Federal tem, possivelmente, a maior cota de culpa. Primeiro, o tribunal acabou com a cláusula que barrava os partidos nanicos, cassando-lhes o tempo de TV e o dinheiro do Fundo Partidário. Mais recentemente, o STF deixou aberta a janela da criação de novos partidos para burlar a fidelidade partidária. Depois disso, os micropartidos só se multiplicaram.
Diante desse quadro de pulverização partidária, crise de representatividade do sistema político, encarecimento progressivo das campanhas eleitorais, perpetuação das oligarquias, influência crescente do capital no resultado das eleições e nas decisões do Congresso Nacional, a reforma política é mais do que necessária. É urgente.
Enquanto não surgem novas gerações de cidadãos dispostos a se engajar em uma militância que venha a renovar de fato as estruturas de poder, resta aproveitar as raras oportunidades que se abrem em votações no Congresso e em julgamentos no STF para, aos poucos, reformar as normas que regem o sistema político brasileiro – parágrafo por parágrafo, inciso por inciso, alínea por alínea. Para desatar tão grande nó, só um fio por vez. O fim das doações empresariais para candidatos pode ser o primeiro.


P.S.: este artigo faz uma compilação de versões editadas, atualizadas e revisadas de textos publicados por mim no jornal O Estado de S.Paulo ao longo dos últimos anos.


Tem 49, é jornalista desde 1986. Criou e coordena o Estadão Dados e escreve duas colunas por semana sobre política que são publicadas em O Estado de S.Paulo e em vários outros jornais regionais. É presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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