04 julho 2018

Desburocratização e Cidadania: Um Projeto de Revitalização Democrática

Em célebre discurso, o escritor anglo-saxão David Foster Wallace[1] conta a seguinte parábola:
“Dois jovens peixes estão nadando e encontram, ao acaso, um peixe mais velho nadando na direção contrária, que acena para eles e diz: ‘Bom dia, meninos, como está a água?’ E os dois jovens peixes continuam nadando por um tempo, até que um deles olha para o outro e fala: ‘O que diabos é água?’

Em célebre discurso, o escritor anglo-saxão David Foster Wallace[1] conta a seguinte parábola:
“Dois jovens peixes estão nadando e encontram, ao acaso, um peixe mais velho nadando na direção contrária, que acena para eles e diz: ‘Bom dia, meninos, como está a água?’ E os dois jovens peixes continuam nadando por um tempo, até que um deles olha para o outro e fala: ‘O que diabos é água?’ ”[2]
O autor esclarece que o ponto da história é mostrar que nossas realidades mais importantes e óbvias são muitas vezes mais difíceis de serem detectadas e discutidas.
Entendo que isso diz muito sobre a relação do brasileiro com a burocracia. Por aqui, os entraves burocráticos estão para o cidadão e para a empresa como a água está para os jovens peixes da história de Wallace. Naturalizamos sua existência e, com isso, acabamos por perder gradativamente a capacidade crítica de perceber obrigações burocráticas como necessárias ou excessivas; elas são, simplesmente, parte da vida. Isso não quer dizer, contudo, que essa assimilação foi pacífica ou mesmo que não gerou efeitos deletérios.
Ao contrário, neste artigo, argumento que esse processo de burocratização irrefletida é um dos aspectos mais subestimados do processo de erosão democrática que vivenciamos. Para além dos escândalos de corrupção e das recorrentes crises políticas e econômicas que marcaram os últimos anos, o processo de afastamento cada vez maior entre Estado e cidadão é reforçado por um sentimento de impotência perante a máquina pública e de oposição entre as exigências estatais e as reais necessidades da sociedade. É justamente nesse contexto que uma agenda de desburocratização deve assumir prioridade.
Defendo a construção de uma política permanente de desburocratização que tenha como alvo o cidadão e assuma como princípio-guia a confiança nas relações Estado-sociedade. Em linha com o que já anunciava há décadas Helio Beltrão, é preciso voltarmos nossos esforços ao óbvio e alçar como objetivos “três coisas muito simples de enunciar e muito difíceis de levar a cabo”[3], nomeadamente (i) fazer funcionar aquilo que já existe; (ii) obter um mínimo de coordenação entre os vários órgãos do governo; e (iii) executar, com ânimo determinado, as soluções que estão no consenso geral.
A tarefa de simplificação tem como principal adversário um processo crescente do que chamo de institucionalização do sentimento de desconfiança recíproca. Isso se reflete em uma lógica estatal legiferante que parece crer cegamente em leis e regras detalhistas como fórmula para evitar fraudes e controlar, nos mínimos detalhes, a conduta de agentes públicos e privados. O resultado é, invariavelmente, o oposto do pretendido: o cipoal de regras e obrigações impostas sem qualquer tipo de análise do custo e do benefício ou controle de estoque regulatório gera enorme insegurança jurídica e cria complicações excessivas justamente aos sujeitos de boa-fé, abrindo, por outro lado, novos espaços para a atuação de interesses espúrios que se socorrem da burocracia justamente para praticar corrupção. A precariedade da solução conferida por essa cultura da desconfiança tornou-se até ditado popular; “são criadas dificuldades para se vender facilidades”.
Como vencer esse desafio? Proponho um olhar para o futuro que seja bem informado pelo passado, buscando as virtudes e os descaminhos de políticas de simplificação no Brasil, e beba na fonte de experiências exitosas de outros países. Em particular, resgato o Projeto Cidadão de Helio Beltrão como uma iniciativa que esteve centrada no foco correto e que merece ser resgatada. Além disso, explicito uma experiência recente que abrangeu inovações institucionais bem-sucedidas na realização de uma agenda de desburocratização permanente e atenta às reais necessidades da sociedade, nomeadamente o programa Simplex, implementado em Portugal.
A essência de minha tese é que a implementação de uma agenda de desburocratização é a mais promissora estratégia política de revitalização da democracia brasileira. Mais consensual do ponto de vista técnico que propostas de reforma tributária e menos contaminada por interesses partidários que sugestões de reforma política, a implementação de uma política radical e permanente de desburocratização oferece um caminho para reaproximar governantes de cidadãos, a partir de mecanismos que os tornem efetivos participantes e tomadores de decisões.
Isso não implica, contudo, uma visão ingênua que percebe essa mudança como decorrente de mera tomada de decisão ou petição de princípio. Os desafios para que se alcancem resultados positivos são consideráveis. Por isso, um exame dos fracassos e conquistas de nosso passado pode fornecer lições fundamentais. Ao fim e ao cabo, apenas a partir de ações concretas nos planos técnico, político e cultural poderemos unir desburocratização e cidadania como um projeto efetivo de revitalização democrática.
O que é desburocratização?
Em primeiro lugar, é preciso abandonar uma ideia equivocada que caracteriza a desburocratização como antônimo de burocracia. Essa perspectiva está associada a duas conclusões apressadas: (i) a de que o melhor desenho institucional é aquele que reduz o aparato burocrático do Estado ao patamar mínimo possível; e (ii) a de que a tarefa de desburocratização envolve uma cruzada contra burocratas e a estrutura estatal.
Quanto ao primeiro ponto, é de fundamental importância a distinção entre considerações de ordem político-ideológica sobre o tamanho ideal do Estado e o cerne da desburocratização. A desburocratização não diz respeito a um olhar interno à administração que concentra atenções sobre a racionalização de processos e reformulação de organogramas. Seu alvo deve ser a ponta do processo: as necessidades do cidadão, da empresa e da sociedade civil em geral. Igualmente, não se cuida de uma visão pré-concebida sobre o tamanho ideal do Estado, mas antes uma prática institucional que verte todo funcionamento da máquina à realização de seu fim último: servir ao público.
Por isso mesmo Cass Sunstein, professor da escola de direito de Harvard e coautor da aclamada teoria do nudge com o economista Richard Thaler, afirma que “sem uma redução substancial em suas funções, o governo pode ser bem mais efetivo, bem menos confuso, bem menos contraproducente e muito mais útil se optar, sempre que possível, por maior simplicidade”[4]. O autor norte-americano traz uma imagem que ilustra bem qual deve ser o papel de um governo mais simples. Não se trata de um Estado mínimo, mas antes de um Estado que funcione como um tablet: intuitivo, voltado para o usuário, claro e muito simples, não obstante ser resultado de um complexo encadeamento de diferentes tecnologias.
É justamente por isso que a simplificação não se associa a uma posição ideológica específica e assume contornos mais consensuais na agenda política. Não há discordâncias quanto à necessidade de um governo que funcione melhor para o cidadão (ao menos antes de descermos a detalhes de cada programa específico).
Em segundo lugar – e pelos mesmos motivos –, deve-se enfatizar que a desburocratização não é um processo de desvalorização de servidores públicos. Estes, aliás, são algumas das principais vítimas de excessos. Como bem lembrado pela clássica obra de Herbert Kaufman, “os custos, inconveniências e encargos de entraves governamentais oprimem funcionários estatais tanto quanto qualquer outra pessoa”[5]. Sendo assim, a burocracia estatal deve ser aliada, e não adversária, de uma agenda transformadora de desburocratização.
Do ponto de vista conceitual, a desburocratização deve ser enquadrada como um direito do destinatário de serviços públicos, seja o cidadão, a empresa ou a sociedade civil em geral. A essência do conceito é tornar todo o ciclo de vida desses agentes mais simples e descomplicado, abandonando o culto à autoridade em favor de um viés finalístico e “amigável ao usuário” (user friendly) da máquina pública.
Ou seja, não cabem objeções à agenda de desburocratização a partir de uma defesa teórica do conceito weberiano de burocracia. Tal como percebido pelo sociólogo germânico, o avanço em prol de um corpo burocrático técnico e insulado politicamente constitui passo fundamental para a superação do autoritarismo. Não é essa burocratização weberiana que se combate aqui, mas antes aquela burocratização bem ilustrada na obra de Franz Kafta, a partir da qual entraves burocráticos se descolam de sua nobre pretensão inicial e acabam por conformar um fim em si, com requintes sórdidos de irracionalidade. Aqui, a burocratização kafkaniana apenas serve para afastar o Estado da sociedade, colocando o cidadão em segundo plano, na condição de mero súdito (ou administrado, na roupagem conferida pela linguagem jurídica contemporânea).
É esse conceito popular de burocracia, assim encarada como a complicação desmedida e injustificada imposta pelo governo, que deve constituir o cerne de uma política que retome o fim último do aparato governamental. Creio que esse é um caminho pouco explorado e com maior potencial de realização prática de um profundo processo de reaproximação entre Estado e sociedade, ressignificando nosso processo democrático.
Como a obra de Kafka deixa claro, não estamos diante de uma jabuticaba, um problema peculiar do contexto brasileiro. Podemos identificar em diferentes contextos alguns problemas comuns decorrentes dessa burocratização desvirtuada. Aspectos como obrigações irrelevantes ou desnecessárias, obrigações sobrepostas ou contraditórias, obrigações obsoletas decorrentes de inércia estatal são reclamações recorrentes da sociedade em face do Estado[6]. O que parece ser particular à realidade tupiniquim é o grau dessa insatisfação e a dificuldade em se gerar um movimento de ruptura.
Alguns dos alvos dessa agenda de simplificação, por conseguinte, devem ser (i) o culto ao papel[7], aos processos e aos controles, em uma tentativa de virada cultural contra o princípio da desconfiança; (ii) impulsos centralizadores com vocação autoritária e pouco atentos às particularidades de cada região do país; (iii) o desconhecimento do sentido prático de ritos e exigências desnecessárias; e (iv), mais recentemente, a digitalização da burocracia desnecessária, em uma deturpação da tecnologia como potencial ferramenta de simplificação.
Afinal, as vítimas da burocracia excessiva são o cidadão e a empresa, mas, em última instância, a própria democracia. Esse custo é bem apurado por pesquisas de opinião, como o levantamento de 2015 da CNI/Ibope, em que 77% dos entrevistados consideraram o Brasil um País muito burocrático ou burocrático, 74% achavam que o excesso de burocracia faz o governo gastar mais do que o necessário e 72% concordavam com a afirmação de que a redução da burocracia deveria ser uma das prioridades do governo. Em pesquisa mais recente da Fiesp/IPSOS, de 2017, o percentual da população que considerava o Brasil burocrático subiu para 84%, enquanto 78% acreditavam que a burocracia é um estímulo à corrupção e, de outro lado, apenas 36% consideravam que o governo tem condições de implementar políticas de desburocratização.
Em termos de competitividade global, de outro lado, os efeitos da burocratização são claramente elevados no Brasil em comparação com outros países. Não por outra razão, o País ocupa posições preocupantes no relatório Doing Business 2018, publicado pelo Banco Mundial. No ranking, o Brasil ocupa o 125º lugar entre os países mais fáceis para se fazer negócios; enquanto na categoria “abertura de negócios”, estamos no 176º lugar; e na categoria “pagamento de impostos”, ocupamos apenas o 184º lugar.
Helio Beltrão e o Programa Nacional de Desburocratização
O Programa Nacional de Desburocratização, planejado e instituído no âmbito dos esforços de modernização dos anos de 1970 e liderado por Helio Beltrão, constitui até os dias de hoje uma experiência paradigmática no combate à complicação governamental. O grande pioneirismo do Programa foi a instituição de um esforço centrado no cidadão, com a compreensão da desburocratização como um direito humano (algo especialmente radical se considerado o contexto autoritário da época). O autor norte-americano Gerald Caiden destaca o aspecto inaugural da agenda brasileira de desburocratização: servimos de exemplo para a América Latina e nossa abordagem foi replicada em tentativas de reforma administrativa ao redor do mundo[8].
Formalmente iniciado em 1979, o Programa tinha como objetivos básicos a eliminação de exigências desnecessárias, a substituição de controles prévios por controles posteriores e fiscalização por amostragem, a melhora no atendimento ao público e, fundamentalmente, a defesa do princípio de presunção da veracidade. O ideal era a formatação de todo sistema administrativo a partir da crença na honestidade das pessoas, conferindo-se mais importância ao fato do que ao documento e sem atormentar o cidadão com excesso de controles. Isso, aliás, não pode ser confundido com ingenuidade do administrador: a presunção de veracidade estabelece a confiança como premissa, porém também se embasa em um sistema punitivo rigoroso e eficiente para combater os casos de fraude, que são perniciosos, mas sempre minoritários. Como dizia Beltrão, “a administração pública herdou do passado e entronizou em seus regulamentos a centralização, a desconfiança e a complicação. A presunção da desonestidade, além de absurda e injusta, atrasa e encarece a atividade privada e governamental”[9].
Outro traço inovador do Programa foi a metodologia de trabalho, fundada na verificação in loco das reais necessidades da sociedade, inclusive a partir de pesquisas de opinião. Para se estabelecer um roteiro eficaz, houve a compartimentalização entre o Projeto Cidadão, o Projeto Empresa e o Projeto Administração. Além disso, a estratégia de mobilização da sociedade civil conferiu prioridade a medidas de maior alcance popular, num esforço constante de comunicação, alicerçada em uma clara demonstração de apoio da cúpula política.
Algumas das medidas importantes no âmbito do Projeto Cidadão estiveram centradas na substituição de atestados por declarações do interessado, a dispensa de autenticação de cópias, a simplificação de procedimentos burocráticos, como a concessão de passaporte e a obtenção de carteira de motorista[10]. Ocorre que muitas dessas medidas acabaram sendo revertidas com o passar do tempo, demonstrando a força dos interesses incrustados na burocracia desnecessária. Por mais que a criação dos juizados de pequenas causas e a lei da microempresa tenham sido legados duradouros do Programa, os retrocessos posteriores em outras frentes podem ser reputados à dificuldade de manutenção de uma agenda permanente, com prioridade política e a sociedade civil mobilizada.
Ou seja, o projeto de revitalização democrática a partir da desburocratização parece depender da criação dessa agenda permanente[11]. Ocorre que a frustração parece inevitável quando percebemos que impulsos momentâneos dos sucessivos governos nessa temática não lograram êxito nessa construção institucional. Desde o regime militar, o único presidente que não emitiu decreto sobre desburocratização foi Itamar Franco[12]. Reputo esse fracasso à descontinuidade de iniciativas e à ausência de transparência e monitoramento, que geram falta de engajamento da alta administração e da sociedade como um todo, que segue nadando nas águas burocráticas de Foster Wallace sem contestar sua existência.
A experiência portuguesa como virada institucional
Defendo que a mudança de nossa trajetória institucional, a partir de uma reconstrução da agenda de desburocratização que seja apta a aproximar sociedade de Estado, revitalizando o sentimento de cidadania, passa por quatro aspectos: (i) precisamos mobilizar a população a participar do esforço de simplificação a partir da criação de novos espaços institucionais; (ii) devemos incorporar novas ferramentas tecnológicas a partir de uma lógica simplificadora; (iii) além de também aprender com as melhores práticas internacionais; e (iv) precisamos nutrir incentivos ao engajamento político no tema.
A experiência portuguesa diz muito sobre isso. Marcado por uma cultura cartorial que também foi importada pela colônia americana, recentemente Portugal realizou um movimento de virada que se promoveu pelo programa Simplex. Enquanto por aqui ainda há aqueles que se colocam como vítimas de um passado insuperável, decorrente da herança portuguesa, por lá, os gajos já cuidaram de transformar sua realidade e reformatar o funcionamento do Estado.
Iniciado em 2005, o Simplex também abordou de forma diferenciada a simplificação do ciclo de vida de cidadãos e empresas. Entre outras diretrizes, teve particular importância uma integração promovida entre diferentes pastas da administração a partir de uma coordenação central que manteve preservadas as particularidades de cada espaço e que contou com o prestígio político da cúpula de governo. Como afirma a responsável pela criação do Simplex, a necessidade de se criar estruturas de coordenação para o desenvolvimento desse tipo de projeto, situada no centro do governo, pode ser explicada “não tanto pela sua complexidade técnica, mas muito mais pela colaboração permanente que exigem entre diferentes serviços, desde a fase de concepção à sua implementação e financiamento”[13].
Essa interoperatividade governamental foi combinada com a instrumentalização de mecanismos participativos para se aferir as necessidades sociais prementes. Entre os princípios arrolados, portanto, estão (i) a regulação proporcional ao risco; (ii) a partilha de informações entre diferentes órgãos de governo; (iii) a fixação de um ponto único de contato para facilitar a comunicação do cidadão com o Estado (balcão único); (iv) a adoção de linguagem simples e clara, (v) o fomento à participação; (vi) a abertura de dados da maneira mais transparente possível; e (vii) a criação de métodos de mensuração de custos burocráticos, combinada com uma cultura de avaliação.
Isso tudo se deu no âmbito de grandes eixos da modernização administrativa. As ideias de simplificação e qualidade foram alçadas a princípio tanto da relação Estado-cidadão como da relação Estado-mercado. Isso demandou uma reorganização completa dos serviços públicos, com desmaterialização promovida por tecnologia e reavaliação de procedimentos a partir de seu fim social último. Nesse contexto, a sociedade civil foi instada a participar do processo não apenas como detentora de direitos, mas também como partícipe responsável pelo espaço público[14].
Os resultados são impressionantes. O país deixou posições modestas em rankings internacionais para ocupar posição de vanguarda, na avaliação de entes como Banco Mundial e OCDE. Ainda em 2007, a Comissão Europeia já reconhecia que Portugal “ultrapassava todos os países membros” e rumava à posição de grande benchmark europeu. Mais do que isso, os lusitanos continuam, por mais de uma década, com uma agenda perene nessa temática.
As grandes lições para o contexto brasileiro parecem ser as seguintes:

  1. importância de momentum político e eleição de prioridades (vitórias rápidas e representativas);
  2. reforma como uma agenda permanente – institucionalização de comitês e mecanismos de coordenação;
  3. estabelecimento e cumprimento de metas rígidas;
  4. mensuração de resultados e monitoramento ao longo do tempo;
  5. criação de orçamento próprio para o programa facilita engajamento dos órgãos públicos.

Revitalizando nossa democracia
Neste artigo, apresentei um diagnóstico que também reputa ao afastamento entre burocracia e necessidades sociais uma das causas do momento de desilusão com a democracia. A partir de tal premissa, tentei construir o argumento de que o caminho mais promissor para a revitalização de valores democráticos seria pela construção institucional de uma agenda perene de desburocratização. Isso se deveria ao teor consensual dessa pauta, em contraste com outras reformas estruturantes que enfrentam forte oposição política.
O desafio, contudo, não é pequeno. Por isso, busquei jogar luz sobre alguns pontos que devem ser enfrentados com coragem. A experiência portuguesa merece ser estudada profundamente por representar uma solução bem-sucedida em um contexto cultural que não se distancia muito do nosso. E é justamente no campo da cultura que reside nosso principal entrave: precisamos vencer o princípio da desconfiança, em um contexto no qual dados apontam para patamares sem precedentes de desconfiança nas relações interpessoais[15].
Nesse cenário, percebo 12 diretrizes principais para uma política efetiva de simplificação no Brasil, levando-se em conta suas dificuldades culturais, suas dimensões continentais e sua história político-social:

  1. eleger como fim último o interesse do cidadão, contribuinte e usuário de serviços públicos, e não apenas o interesse da própria administração;
  2. reconhecer o caráter político do empreendimento, o que demanda vontade e ação da cúpula dos três poderes;
  3. reconhecer o desafio cultural de modificar posturas, rotinas e comportamentos;
  4. identificar, de forma seletiva e gradual, as prioridades;
  5. valorizar o servidor público e seu papel imprescindível como agente de mudança;
  6. estabelecer alianças com as “ilhas de excelência e experiência” da administração e proteger o gestor inovador;
  7. assegurar o tratamento diferenciado a distintas realidades (desigualdades regionais, mpes), abandonando soluções padronizantes;
  8. investir na cidadania como mecanismo de fortalecimento de nossa democracia;
  9. mobilizar a sociedade civil para que ela participe e monitore os esforços de desburocratização;
  10. fomentar espaços transparentes e perenes de diálogo público-privado;
  11. incorporar novas tecnologias para melhorar a vida do usuário, digitalizando serviços úteis;
  12. desenvolver técnicas e metodologias de mensuração de custos e benefícios de serviços, como parâmetro para melhorar a qualidade das regras e eliminar obrigações excessivas.

[1].
Devo a referência a Cass Sunstein, na obra “The ethics of influence: government in the age of behavioral science”, publicada em 2016, pela Cambridge University Press.
[2].
Tradução livre de: “There are these two young fish swimming along and they happen to meet an older fish swimming the other way, who nods at them and says ‘Morning, boys. How’s the water?’ And the two young fish swim on for a bit, and then eventually one of them looks over at the other and goes ‘What the hell is water?’”. Um filme de curta duração com a versão completa do discurso pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=fGCo_wx97mo
[3].
BELTRÃO, Helio. (2002) Descentralização e liberdade. Brasília: Instituto Helio Beltrão e Editora da Universidade de Brasília, p. 54-55.
[4].
SUNSTEIN, Cass. (2013) Simpler: the future of government. New York: Simon & Schuster, p. 11.
[5].
KAUFMAN, Herbert. (2015) [1977] Red tape: origins, uses, and abuses. 2. ed. Washington, D.C.: Brookings Institution Press, p. 22.
[6].
Ver capítulo I de KAUFMAN, Herbert. (2015) [1977] Red tape: origins, uses, and abuses. 2. ed. Washington, D.C.: Brookings Institution Press.
[7].
Para uma análise antropológica desse culto a documentos, ver DaMATTA, Roberto. (2002) A mão invisível do Estado: notas sobre o significado cultural dos documentos na sociedade brasileira. Anuário Antropológico, n. 99, pp. 37-64.
[8].
Relacionando os principais elementos da desburocratização, Caiden observa que “All these elements are contained in the National Debureaucratization Program in Brazil, a model for other countries in Latin America, first launched in 1967 by Helio Beltrao”, além de registrar que “The main thrusts of the Brazilian program—deregulation, decentralization, modernization, personalization, and greater public accountability—have been repeated elsewhere around the globe.” CAIDEN, Gerald. (2001) Administrative reform, in: Ali Farazmand (org.), Handbook of comparative and development public administration. New York: Marcel Dekker, p. 659.
[9].
BELTRÃO, Helio. (2002) Descentralização e liberdade. Brasília: Instituto Helio Beltrão e Editora da Universidade de Brasília.
[10].
BELTRÃO, Helio. (1981) Programa Nacional de Desburocratização. Revista de Direito Administrativo, v. 15, n. 3.
[11].
Para um argumento aprofundado sobre como construir uma agenda permanente no contexto brasileiro de crise, ver artigo que publiquei nesta Revista Interesse Nacional, juntamente com João Geraldo Piquet Carneiro, intitulado “A desburocratização como agenda permanente”.
[12].
E.g. Decretos 83.740/79, 92.486/86, 99.179/90, 3.335/00, 5.378/05, 8.414/15 e 9.094/17. Para uma análise crítica sobre a resiliência do reconhecimento de firma, ver BASTOS JR., José Constantino. (2018) Reconhecimento de firma – burocracia que custa a morrer. Espaço Democrático.
[13].
MARQUES, Maria Manuel Leitão. (2009) Serviço público, que futuro? Lisboa: Almedina, p. 32.
[14].
MARQUES, Maria Manuel Leitão. (2009) Serviço público, que futuro? Lisboa: Almedina, pp. 23-25.
[15].
Ver https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/so-7-dos-brasileiros-confiam-nos-outros-como-superar-a-desconfianca-0v4qlubk0vbqvotrm8na4rqj5


Daniel Bogéa é diretor-executivo do Idesb - Instituto Desburocratizar. Advogado e cientista político, possui mestrado em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo e é mestrando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Foi bolsista do Tarello Institute for Legal Philosophy da Universitá degli Studi di Genova (Itália) e realizou treinamento em regulação na London School of Economics and Political Science (Reino Unido). Membro da Comissão de Juristas da Desburocratização do Senado Federal. É profissional certificado pela APMG International, em programa concebido pelo Banco Mundial para atuar em parcerias público-privadas (CP3P-F). E-mail: daniel@desburocratizar.org.br

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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