09 outubro 2024

Desenha-se uma aliança não escrita entre Brasil e Estados Unidos

Nos últimos 200 anos, os Estados Unidos mantiveram uma relação de altos e baixos com a segunda nação mais populosa do hemisfério ocidental, o Brasil. Em fevereiro do ano passado, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, emitiram uma declaração conjunta projetada para aprimorar e aprofundar o relacionamento bilateral. Em setembro de 2023, os dois presidentes se encontraram novamente para inaugurar uma parceria global para os direitos dos trabalhadores. Em 2024, no bicentenário do reconhecimento da independência brasileira pelos EUA, ainda mais deve ser feito para fortalecer o relacionamento entre os dois gigantes hemisféricos.

Antecedentes históricos

Após declarar sua independência de Portugal em 1822, o Brasil teve sua soberania reconhecida por seu vizinho Argentina (já independente da Espanha) em 1823. Ao receber o representante do Brasil em Washington DC, em 1824, os Estados Unidos se tornaram o segundo Estado a reconhecer a independência brasileira (embora o reconhecimento formal só tenha ocorrido no ano seguinte).

Durante a maior parte do século XIX, quando o Brasil era um império com monarquia, as relações entre EUA e Brasil eram distantes. Os EUA às vezes viam o Brasil como um representante da Europa nas Américas e um potencial rival de Washington. O imperador brasileiro Dom Pedro II simpatizou com a Confederação durante a Guerra Civil dos EUA, embora o Brasil fosse oficialmente neutro em relação aos dois lados. Na guerra entre Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, de 1864 a 1870, os Estados Unidos apoiaram o Paraguai e forneceram armas ao país.

No entanto, durante a Primeira República brasileira (1889 a 1930), as relações Brasil-EUA formaram o que o historiador E. Bradford Burns chamou de “aliança não escrita”. Embora a ajuda mútua militar e a cooperação não estivessem envolvidas, houve engajamentos diplomáticos muito ativos e laços comerciais bem desenvolvidos que contribuíram para uma forte amizade entre os dois gigantes hemisféricos. A posição brasileira foi moldada pelo Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores do Brasil de 1902 a 1912, que viu que a ordem mundial dominada pelos estados europeus estava mudando, e que os Estados Unidos eram uma potência ascendente e um mercado cada vez mais influente para as exportações brasileiras.

Houve períodos de aproximação e distanciamento entre os dois poderes hemisféricos ao longo do último século, dependendo do período e da questão política. No entanto, nas palavras da estudiosa Monica Hirst, “a identidade americana compartilhada, somada aos atributos de poder de ambas as nações – território, população e tamanho da economia – sempre constituíram fatores de atração um para o outro”.[1]

Brasil e EUA têm muitas experiências em comum. A história compartilhada do colonialismo europeu, independência, presença das primeiras nações indígenas, seguida por sua trágica subjugação e extermínio, em muitos casos, o escravismo comercial de povos africanos, a emancipação formal com os objetivos ainda não alcançados de plena justiça racial, imigração massiva de todos os cantos do mundo o legado contemporâneo de reconhecimento e legitimação do poder coletivo dos trabalhadores e dos sindicatos com o New Deal e o Wagner Act de FDR e o Estado Novo e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) do presidente brasileiro Getúlio Vargas constituem algumas das muitas similaridades históricas entre os dois países.

Oportunidades do momento

A importância geopolítica, comercial, econômica, cultural, migratória, ambiental, de saúde pública e de segurança global do Brasil para os Estados Unidos é evidente por si só. A população brasileira é a sétima maior do mundo, com mais de 203 milhões de habitantes, e a força de trabalho brasileira ultrapassa os 100 milhões. O Brasil se recuperou no crescimento econômico durante o terceiro governo de Lula e representa o oitavo maior PIB do mundo. Embora a China tenha substituído os Estados Unidos como o principal parceiro comercial do Brasil, há cerca de duas décadas, os EUA continuam a ter um papel de liderança em relação ao investimento estrangeiro direto, e o relacionamento comercial entre ambas as nações é extenso e volumoso. As empresas multinacionais brasileiras aumentaram significativamente seus investimentos e operações nos Estados Unidos, nos últimos anos. Por exemplo, JBS e Marfrig estão entre os maiores produtores de proteína animal do mundo e constituem os maiores empregadores de trabalhadores sindicalizados em frigoríficos americanos. Mais de um milhão de brasileiros vivem nos EUA, incluindo milhares que trabalham nos setores formais e informais da economia americana.

Como o ex-embaixador dos EUA no Brasil Thomas Shannon colocou, ambas as nações se “dedicaram à construção de estruturas de diálogo político e cooperação que em grande parte mantiveram a paz no Hemisfério Ocidental” e “em um mundo cada vez mais moldado por conflitos e confrontos, isso é uma realização notável.” [2] Shannon caracteriza “a combinação de propósito nacional e ambição global” como única para ambos os países, mas acrescenta: “definir isso apenas em termos estratégicos seria limitá-lo. A parceria que define o relacionamento é cada vez mais não apenas de governos, mas também de sociedades.” [3] Os laços históricos e contínuos entre os movimentos trabalhistas brasileiros e americanos, ambientalistas, defensores dos direitos humanos, acadêmicos, artistas, músicos e ativistas pela igualdade de gênero e racial, para citar apenas alguns exemplos, apoiam a argumentação perspicaz e convincente de Shannon.

A cúpula entre os presidentes Joe Biden e Lula em 10 de fevereiro do ano passado em Washington, D.C., produziu um plano aspiracional para maximizar o potencial do relacionamento bilateral, como exemplificado pela declaração conjunta após a reunião. O documento afirma que “fortalecer a democracia, promover o respeito aos direitos humanos e lidar com a crise climática permanecem no centro de sua agenda comum.” Houve um compromisso explícito de “revigorar o Plano de Ação Conjunta EUA – Brasil para Eliminar a Discriminação Racial e Étnica e Promover a Igualdade para beneficiar mutuamente comunidades raciais, étnicas e indígenas marginalizadas, incluindo pessoas de ascendência africana, em ambos os países.” [4]

Ambos os presidentes se comprometeram a trabalhar juntos em “mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável e transição energética”, por meio da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e do Grupo de Trabalho sobre Mudança do Clima Brasil-Estados Unidos criado em 2015. Ambos os líderes “expressaram sua determinação em combater a fome e a pobreza, aumentar a segurança alimentar global, promover o comércio e remover barreiras, promover a cooperação econômica e fortalecer a paz e a segurança internacionais”, incluindo os seguintes contextos: o conflito Ucrânia-Rússia, a presidência do Brasil no G20 (que começou em dezembro de 2023) e uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, incluindo a possibilidade de expandir o número de assentos permanentes para as nações da África e da América Latina. A reunião de 10 de fevereiro acertou em cheio e foi seguida por um compromisso dos EUA de US$ 500 milhões para o Fundo Amazônia, dedicado a iniciativas de desenvolvimento sustentável no Brasil.

Em 20 de setembro de 2023, após seus discursos na sessão de abertura da Assembleia Geral da ONU, os presidentes Biden e Lula inauguraram a “Parceria Global EUA-Brasil para os Direitos dos Trabalhadores” em Nova York, com a participação do Diretor-Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Gilbert Houngbo. Líderes sindicais brasileiros e americanos também estavam presentes. A parceria significa um momento sem precedentes na história das relações Brasil-EUA, uma vez que é a primeira vez que ambos os países lançam uma iniciativa ambiciosa de direitos trabalhistas no nível presidencial em benefício dos trabalhadores no Brasil, nos Estados Unidos e no resto do mundo.

Dado o papel reconhecido globalmente de Lula na construção do “novo sindicalismo” do Brasil, que desafiou a ditadura militar e a ordem corporativista das relações trabalhistas do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, e com Joe Biden sendo possivelmente o presidente mais pró-sindicalista da história americana, a parceria é poderosamente simbólica. Embora a parceria seja sem precedentes e promissora, persistem perguntas sobre os próximos investimentos necessários e os compromissos financeiros, além de como garantir que a iniciativa seja duradoura, seja qual for o resultado das eleições nos EUA em novembro de 2024.

Desafios e possíveis obstáculos

Dada a existência de crises globais, incluindo a guerra Israel-Hamas e o conflito entre a Ucrânia e a Rússia, Washington não está prestando muita atenção à relação Brasil-EUA e seu potencial. Infelizmente, o Brasil foi mais uma vez relegado ao papel de uma prioridade relativamente baixa, um lugar que normalmente ocupa na história da política externa dos EUA.

A dinâmica positiva da colaboração Biden-Lula poderá ser interrompida abruptamente em poucos meses, dependendo do resultado das eleições de novembro nos Estados Unidos. O acordo prévio entre os ex-presidentes dos EUA, Donald Trump, e do Brasil, Jair Bolsonaro (2019-2022), tentou fazer alguns avanços em termos de comércio entre os dois países, mas também propiciou uma colaboração antidemocrática profana em ambas as nações, como evidenciado nos trágicos eventos de 6 de janeiro de 2021, no Capitólio dos EUA, e de 8 de janeiro de 2023, na praça dos Três Poderes, em Brasília.

Uma parceria mais estreita entre os dois parceiros hemisféricos também é dificultada pela dinâmica política interna no Brasil, incluindo pressões da esquerda brasileira. Esta última há muito suspeita das intenções e da hegemonia dos EUA, e por boas razões, considerando o papel ativo dos Estados Unidos no golpe de Estado de 1964, que deu início a mais de 20 anos de ditadura militar.

Washington não está satisfeito com certos aspectos da diplomacia ativa e altiva de Lula em relação, por exemplo, ao conflito Ucrânia-Rússia e à China. O apoio de Lula à recente iniciativa sul-africana contra Israel perante o Tribunal Internacional de Justiça, na qual os sul-africanos argumentaram que as ações de Israel em Gaza poderiam constituir genocídio, também esfriou as relações EUA-Brasil[5].

O que deve ser feito?

Os Estados Unidos e o Brasil devem tornar suas iniciativas de cooperação atuais, incluindo aquelas delineadas na declaração conjunta Biden-Lula de 10 de fevereiro de 2023 e na parceria global de trabalho de 20 setembro de 2023, o mais sustentáveis e duradouras possível. Se isso for feito, a cooperação pode resistir às variações políticas e mudanças em ambos os países, especialmente diante das próximas eleições nos Estados Unidos, em novembro. Isso exigirá foco diplomático e burocrático, compromisso e prontidão de ambos os lados.

Os Estados Unidos e o Brasil devem assumir conjuntamente papéis de liderança internacional e cooperar ativamente em prol da promoção e proteção da democracia no mundo, especialmente diante da coincidência nefasta (se não de ligações diretas) entre as tentativas de golpe de 6 de janeiro de 2021 e 8 de janeiro de 2023, em Washington DC e Brasília, respectivamente, e o provável teste de estresse das instituições democráticas em ambos os países num futuro imediato.

Os governos atuais de Biden e Lula, representando os dois maiores poderes no hemisfério ocidental, devem maximizar todas as oportunidades de colaboração no sistema interamericano, incluindo na Organização dos Estados Americanos (OEA), para promover uma agenda virtuosa e orientada para resultados em relação às crises de migração e refugiados, combate às drogas e segurança, crescimento econômico e igualdade, inclusão social, proteção ambiental, direitos trabalhistas e humanos, democracia e Estado de Direito.

Washington deve entender que a diplomacia mais ativa e altiva de Lula não representa uma ameaça aos interesses americanos de paz, democracia e segurança globais. A credibilidade de Lula com grande parte do Sul Global poderia beneficiar os Estados Unidos, e Washington deve cultivar sua relação com o Brasil para maximizar esse potencial. Por exemplo, nem as economias brasileira e americana podem se dar ao luxo de se desvincular da China, e os governos de Biden e Lula devem discutir ativamente como ambos podem trabalhar juntos para garantir que os investimentos e operações globais da China estejam em conformidade com os padrões comerciais e trabalhistas defendidos tanto pelo Brasil quanto pelos Estados Unidos. A posição e liderança do Brasil no BRICS e no Sul Global não deve ser vista como uma ameaça aos EUA, mas como um benefício e uma oportunidade.

Para maximizar o potencial do relacionamento Brasil-EUA, ambos os países precisam criar um quadro formal e sistemático no mais alto nível. Mesmo com diferenças marcantes sobre a iniciativa da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a guerra no Iraque, os governos de Lula e George W. Bush conseguiram convocar a única cúpula interministerial entre ambos os governos em junho de 2003. Foi um evento sem precedentes, que precisa ser revisitado neste momento crítico. Como o embaixador Shannon notou habilmente, o relacionamento precisa ser cultivado e aprofundado não apenas entre líderes governamentais, mas também entre nossas duas sociedades. Chegou a hora de uma renovação da “aliança não escrita” entre os dois maiores poderes nas Américas.   n


[1].
 Monica Hirst, Understanding Brazil-United States Relations. Brasília: Alexandre de Gusmão Foundation, 2023, p. 29.

[2].
Thomas Shannon, Uma Verdade Delicada Sobre Uma Velha Parceria [An Exquisite Truth About an Old Partnership], Revista Crusoé/DefesaNet, 1 January 2021, at: https://www.defesanet.com.br/tfbr/tfbr-thomas-shannon-a-delicada-verdade-sobre-uma-velha-parceria/.

[3]. Shannon, op. cit.

[4]. White House Joint Statement – Biden-Lula – February 10, 2023.

[5].
See Daniel Buarque, “Com posicionamento sobre genocídio em Gaza, Brasil põe pé fora do muro” in Interesse Nacional January 25, 2024 at: https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/daniel-buarque-com-posicionamento-sobre-genocidio-em-gaza-brasil-poe-pe-fora-do-muro/.


Anthony W. Pereira é diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House

Stanley A. Gacek é advogado trabalhista internacional e membro do Council on Foreign Relations, do Conselho Consultivo do Instituto Brasil e do Woodrow Wilson Center. Foi diretor da missão da Organização Internacional do Trabalho no Brasil de 2011 a 2016

É diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House

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