05 julho 2015

Desenvolvimento e Democracia no Campo

Analisar o recente processo democrático no Brasil sob a ótica da agricultura nacional representa um grande desafio, e uma excelente oportunidade. O desafio advém de que, nos últimos 30 anos, enquanto nosso sistema democrático se consolidava, a agropecuária passava por profundas transformações, alterando seu patamar produtivo, deixando para trás o atraso oligárquico para assumir a dianteira da modernidade capitalista.

“Muitos se perdem nas árvores,
mas não atinam com a floresta”.
Baltasar Gracián

Introdução:  O novo mundo rural

Analisar o recente processo democrático no Brasil sob a ótica da agricultura nacional representa um grande desafio, e uma excelente oportunidade. O desafio advém de que, nos últimos 30 anos, enquanto nosso sistema democrático se consolidava, a agropecuária passava por profundas transformações, alterando seu patamar produtivo, deixando para trás o atraso oligárquico para assumir a dianteira da modernidade capitalista.
Nesse intenso processo de desenvolvimento, a produção rural se integrou com a indústria e os serviços, gerando complexas teias produtivas que passaram a ser denominadas, em seu conjunto, de agronegócio. Romperam-se as contingências do passado, criando-se um novo mundo rural, fortemente vinculado aos mercados, interno e externo, sob o mando da tecnologia. Afetados pela globalização, que internacionalizou os preços agrícolas, os produtores rurais investem para conquistar qualidade, requisito atual de sobrevivência no ramo1.
Nas últimas décadas, a agropecuária brasileira cresceu espetacularmente. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), entre 1976 e 2013, a produção nacional de grãos se expandiu em 306%, passando de 47 milhões para 191 milhões de toneladas, enquanto a área cultivada aumentou de 37 milhões para 56 milhões de hectares, um acréscimo de 51%. Conclusão: houve extraordinária elevação da produtividade física da terra, o dobro da observada, no mesmo período, na agricultura norte-americana. Segundo José Garcia Gasques, técnico do Ministério da Agricultura, no período de 1975 a 2011, a produtividade total dos fatores de produção utilizados no campo cresceu à taxa média anual de 3,56%, e esse incremento na produtividade explica, matematicamente, 94,4% do crescimento do produto total no período. Antes, na década de 1980, a produtividade era responsável por somente 34% do aumento do produto total. Os economistas rurais classificam isso como uma intensificação da produção2.
As fronteiras do país se expandiram rumo ao cerrado do Centro-Oeste sob o mando da elevada mecanização, especialmente na produção da soja, do milho e do algodão. Por todo o país, a modernização da pecuária alterou a genética dos rebanhos, revigorando a sanidade animal. Antes inculto, o estado do Mato Grosso, sozinho, produz agora 25% da safra nacional de grãos. O espaço agrário apelidado de Mapitoba, que inclui áreas planas nas chapadas do Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia, vazio até há pouco, fornece hoje o benchmarking da lavoura com padrão tropicalizado. O mundo se assombra conhecendo a técnica do plantio direto, sem aração nem gradeação do solo, que promove duas safras sucessivas no mesmo terreno.
A acelerada urbanização, turbinada pelo êxodo rural, desde os anos de 1960, criou nas cidades uma espetacular demanda por gêneros alimentícios, impulsionando os ramos produtivos nas regiões de ocupação tradicional. O crescente, e cada vez mais exigente, consumo urbano expresso nas gôndolas dos supermercados gerou oportunidades ao espírito empreendedor do agronegócio, avantajado mais tarde pela estabilização da economia. A antiga roça de subsistência, cujos excedentes seguiam para os armazéns e atendiam às feiras locais, sofreu um choque de capitalismo e de modernidade tecnológica. Sorte das metrópoles.
Simultaneamente, o dinamismo do agronegócio começou a participar dos mercados externos, destacando-se sobremaneira nos setores das carnes (aves e bovinos), na soja (grãos e farelo) e na celulose. Somados à antiga dominância nas exportações de café e açúcar, o país passou a participar decisivamente do jogo agropecuário global. Os reflexos internos desse movimento econômico se tornaram essenciais: as divisas geradas pelo superávit da balança agrícola, ao redor de U$ 100 bilhões (2014), pagam as contas das importações de bens e produtos industriais. O agronegócio movimenta o Brasil.
Fruto da expansão agropecuária, conjuminada com a oferta urbana de trabalho, praticamente fez desaparecer o desemprego no campo. Acabou o “exército de reserva” da mão de obra rural, a abundância cedeu lugar à escassez e, consequentemente, os salários subiram, acima da média nacional. Quase desapareceram os “boias-frias”.
Desse extraordinário processo de transformação não participaram todos os agricultores e trabalhadores rurais. Como sempre acontece no desenrolar da história, existem vitoriosos, derrotados e acomodados. Os primeiros conseguiram entrar no ciclo virtuoso do progresso; os segundos perderam o bonde da modernidade rural; os terceiros esperam sua chance. Aqui está o xis da questão agrária contemporânea: o sucesso produtivo no campo cada vez mais se garante no acesso à tecnologia e pela integração ao mercado, e não mais pelo domínio da propriedade da terra.
Visto tradicionalmente como passaporte para a felicidade nos programas de reforma agrária, o pedaço de chão começou a valer menos que o uso da tecnologia. Pequenas propriedades, intensivas no uso da terra, passaram a ser mais rentáveis que grandes fazendas extensivas, favorecendo os agricultores menos abastados, que se qualificaram pela produtividade e pela qualidade de sua produção.
Dessa forma, a educação e a capacitação profissionalizante, a assistência técnica e o associativismo, ou o cooperativismo, as condições do financiamento da produção e da comercialização, a participação integrada nos mercados, todas essas ações passaram a ser fundamentais para permitir que os agentes econômicos se aproveitassem das oportunidades oferecidas no mundo em mudanças. Políticas públicas puderam ajudar nesse rearranjo. Mas, a atitude proativa e o empreendedorismo dos produtores e demais agentes econômicos, grandes ou pequenos, funcionaram mais que a velha receita do estatismo.
Novos conceitos precisam ser utilizados na interpretação da realidade agrária. Não se compreende os desafios, socioeconômicos e políticos, trazidos pela produção contemporânea, apegando-se aos esquemas teóricos utilizados para se compreender os dilemas do passado, aqueles que, historicamente, moldaram nossa formação agrária. Somente se desobstruído do paradigma agrarista clássico, de matiz marxista, será possível entender o jogo político que atualmente envolve os personagens que atuam no setor rural.
Aqui surge a oportunidade. É incrivelmente gratificante contribuir, neste ensaio em comemoração aos 30 anos da democracia no Brasil, oferecendo a um público especial da lida jurídica uma visão diferenciada da agricultura brasileira. Acontece que, apesar de ter acontecido um grande desenvolvimento na agropecuária, parte da urbe ainda enxerga o campo como se este vivesse atrasado como no tempo do Jeca Tatu. Vencer essa espécie de preconceito ideológico se torna necessário para desvendar a economia política do campo no século 21.
Reforma agrária no Brasil
O Estatuto da Terra (Lei 4.504) foi promulgado pelo Presidente Castelo Branco em 30 de novembro de 1964, no início do regime militar. Naquela época, há 50 anos, o Brasil ainda era uma economia agrário-exportadora, com nascente parque industrial. A produtividade agrícola dependia da enxada, da foice e do árduo trabalho manual. Segundo o Censo IBGE (1960), 55% da população ainda morava na roça, a maioria vivendo miseravelmente.
O debate político havia colocado a reforma agrária no centro da luta pelo desenvolvimento nacional. Para a esquerda latino-americana, acabar com o latifúndio e livrar-se do imperialismo norte-americano significava receita certa contra a pobreza. Democratizar a posse da terra garantiria ampliar a produção, criar mercado interno para a indústria e promover o crescimento brasileiro. O projeto nacionalista dava à tese reformista um caráter produtivo.
Após a revolução de Fidel Castro em Cuba (1959), toda a América Latina embarcara nessa onda reformista, dentro da política externa comandada pelos EUA, intitulada “Aliança para o Progresso”. A estratégia pretendia fortalecer uma classe média no campo, cujos anseios de consumo poderiam significar um freio às tentações comunistas que inquietavam o continente. Já os setores socialistas imaginavam, ao distribuir a propriedade, abrir as portas para a mudança do regime capitalista. A reforma agrária virou, assim, quase uma unanimidade.
A agitação no campo protagonizada pelas ligas camponesas de Francisco Julião, no Nordeste brasileiro, animaram os reformistas. Mas, ao mesmo tempo, acirraram o golpe militar contra João Goulart. Paradoxalmente, aquilo que parecia inaceitável para os conservadores – a reforma agrária – acabou sendo a primeira das políticas impostas pelo novo regime militar. Ironias da história.
Do papel, porém, nada saiu. A internacionalização do capitalismo e sua rápida expansão nos anos 1960/70 – anos do “milagre” – permitiram que a industrialização brasileira ocorresse, prescindindo da distribuição da terra. Toda a economia cresceu vigorosamente. O crédito rural subsidiado ajudou a promover a “tecnificação” dos latifúndios, que elevaram seus índices de produtividade, transformando-se em grandes empresas agropecuárias. A reforma agrária ficou, assim, esquecida por um bom tempo.
Em meados de 1980, com a redemocratização do país, a questão agrária ressurgiu, mas noutra dimensão. De econômica, a proposta da reforma agrária, reforçada com argumentos idealísticos, ganhou cunho social, vinculando-se ao conceito da cidadania: uma proposta contra a exclusão social. Sua formulação perdeu, dessa forma, o sentido econômico.
A pretenciosa meta do Plano Nacional de Reforma Agrária/PNRA (1986), lançado pelo Governo Sarney no início da Nova República, prometia assentar 1,4 milhão de famílias em quatro anos. Sua ousadia acabou virando enorme decepção. Findo o governo Sarney, apenas 82.690 famílias haviam recebido terras, menos de 6% da meta traçada. O distributivismo agrário fracassara.
Na sequência, os governos de Collor e, depois do impeachment, de Itamar Franco, apenas procrastinaram o problema, adiando decisões enquanto aguardavam a definição, pelo Congresso Nacional, das legislações complementares, exigidas na Constituição de 1988. Após esse interregno, na campanha eleitoral de 1994, o tema da reforma agrária despontou novamente. Eleito Fernando Henrique Cardoso, seu primeiro programa, realista, falava em distribuir terras para 280 mil famílias. Iniciava-se assim, em 1995, um novo ciclo do distributivismo agrário.
Reforma agrária com FHC
Mesmo recebendo críticas sobre sua “lerdeza”, advindas principalmente do MST, entidade que se fortalecera nesse processo político, seguidamente ainda com FHC, depois com Lula e Dilma Rousseff, seguidos projetos de assentamento rural foram sendo instalados alhures, fazendo avançar sobremaneira a reforma agrária no país. Após 30 anos, os dados, pela sua grandeza, surgem impressionantes: ao final de 2014, o Incra registrava 956.453 mil famílias assentadas em 9.128 projetos, ocupando 88,1 milhões de hectares de área reformada. Uma enormidade.
Trata-se da maior distribuição de terras executada no mundo, ocorrida, ademais, num contexto democrático, ou seja, fora de períodos revolucionários. Para comparação, a somatória total da área plantada no Brasil, destinada aos grãos (soja, milho, arroz, etc.) e outras lavouras (café, seringueira, cana-de-açúcar, frutas, etc.) ocupa uma extensão aproximada de 70 milhões de hectares, 20,5% menor que o território reformado. Outro cotejo: a área ocupada pelos estabelecimentos rurais de São Paulo soma 17 milhões de hectares. Quer dizer, a reforma agrária brasileira já distribuiu 5,2 vezes a agricultura paulista.
Se, na quantidade, os números impressionam positivamente, no aspecto qualitativo a reforma agrária é decepcionante. O impacto produtivo dos assentamentos sobre a safra nacional nunca, sequer, foi dimensionado. Afora estudos de caso, alguns mostrando sucesso, desconhecem-se quanto e como se produz, em termos agregados, nos assentamentos. Um descaso na avaliação de resultados da gestão pública.
Além da questão produtiva, os índices conhecidos não autorizam acreditar no êxito social da política. Excluindo-se os assentamentos mais antigos, que há décadas recebem benesses oficiais, o distributivismo da terra não tem conseguido alterar significativamente a pobreza entre seus beneficiários. Em muitos casos, os assentamentos provocaram uma triste “favelização” da zona rural. Inúmeros estudos indicam que a renda monetária auferida pelas famílias depende de outros rendimentos, como aposentadorias e serviços assalariados. Notório é o grau de desistência: cerca de 30% das famílias deixam o lote até o segundo ano do assentamento. Conclusão inequívoca: o modelo tradicional de reforma agrária não tem conseguido promover o desenvolvimento rural.
A baixa qualidade das terras desapropriadas é um dos motivos que explicam esse fracasso. Faltaram também investimentos por parte do Estado. Mas, a baixa qualificação dos assentados representa o maior problema. As invasões de terras aglutinam trabalhadores de todo tipo, em geral desempregados nas cidades, que nem sempre demonstram aptidão para o trabalho agrícola. São pessoas carentes a exigir atenção da política pública, mas longe de configurarem um “sem-terra”, ou seja, aquele excluído do campo. São os miseráveis da cidade.
Desfocada do sentido econômico e produtivo, a reforma agrária se configura na mais cara e ineficaz política social do governo. Na falta de análises oficiais, minhas estimativas sugerem que o custo mínimo dos assentamentos – considerando-se o preço da terra, os investimentos de infraestrutura, os créditos de instalação das famílias e o orçamento do aparelho institucional – atinge 120 salários mínimos, na média nacional, para cada família assentada. Equivale a bancar por dez anos, com um salário mínimo mensal, uma família carente. Na região Sudeste, onde a terra é mais cara, o custo de cada assentamento ultrapassa 300 salários mínimos/família, nos mesmos dez anos.
O conceito do “módulo rural”, criado no Estatuto da Terra, supunha existir um tamanho ideal de propriedade no campo. A ideia está totalmente superada pelo avanço tecnológico. Agora é a tecnologia, e não o tamanho da propriedade, que determina os níveis de rentabilidade e o modo da produção rural. A realidade mostra exemplos interessantes dessa complexa relação entre área, tecnologia e mercados versus rentabilidade na agricultura. Com tecnologia adequada, um pequeno sítio pode ser mais produtivo e lucrativo do que uma enorme fazenda de gado. O confinamento de animais, a irrigação de frutas e legumes, a plasticultura e a hidroponia, a floricultura e o pastoreio rotativo – todas essas alternativas de produção intensiva na agropecuária “economizam” terra.
No mundo contemporâneo não mais adianta apenas produzir no campo: dramático é vender com preços justos, remuneradores. Sendo assim, as políticas fundiárias do século 21, para terem êxito, precisam se fundir com as políticas agrícolas. No Brasil, andamos ao contrário, criando inclusive dois ministérios, separando ao invés de unificar as políticas públicas no campo.
Uma política fundiária contemporânea e democrática abriria, na internet, inclusive, canais de inscrição para os interessados em obter lotes de terra para produzir. Com livre acesso, longe da manipulação política e ideológica, os invasores de terras deixariam de ter exclusividade no processo da reforma agrária. Ganharia a democracia no campo.
Agricultura familiar
Ao se pretender analisar o fortalecimento da democracia brasileira nos últimos 30 anos, há que se considerar outras políticas de apoio ao campo, além da clássica, e controvertida, proposta de acesso à terra por meio dos programas de reforma agrária. A vertente de tais políticas, mais realistas, visa à garantia da produção e da renda dos pequenos agricultores, focando nos trabalhadores “com-terra”, os tradicionais sitiantes, pequenos produtores rurais que, recentemente, no Brasil, passaram a ser intitulados de “agricultores familiares”.
A pequena propriedade rural sempre viveu à margem da economia exportadora. Após a grande crise da economia cafeeira, ocorrida entre 1929 e 1930, houve uma diversificação agrícola. Mais tarde, após o fortíssimo êxodo rural inchar as cidades, surgiu o abastecimento das metrópoles como um problema a ser equacionado e, ao mesmo tempo, uma oportunidade a ser aproveitada. A partir desse momento, a assistência técnica e a extensão rural tornam-se fundamentais no país.
As políticas públicas para a agricultura floresceram. As secretarias de estado da Agricultura, destacando-se em São Paulo, Minas Gerais e Paraná, implantaram sistemas de produção e distribuição de sementes melhoradas, criaram ou reforçaram órgãos de pesquisa agropecuária, abriram faculdades de agronomia e de medicina veterinária. Com o surgimento do sistema nacional de crédito rural, em 1967, o Banco do Brasil passou a disponibilizar financiamento com juros subsidiados, impulsionando a modernização no campo. Esses vários mecanismos, incluindo ainda o associativismo e a qualificação profissional, constituem o núcleo das políticas públicas que defenderam os pequenos agricultores, pelo menos em parte, da fúria concentradora do mercado.
Após a estabilização da economia brasileira, nasceu o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf – Decreto 1946/96), no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Pela primeira vez, a política agrícola reservava uma fatia dos recursos públicos do financiamento rural direcionando-o, obrigatoriamente, para a categoria dos pequenos agricultores, sejam os tradicionais, sejam os novos produtores assentados da reforma agrária. Em 2002, o plano-safra da agricultura familiar já destinava R$ 4,3 bilhões em custeio e investimentos, incluindo obras de infraestrutura, apoio à agricultura orgânica, mulheres agricultoras e formação profissional. Falava-se pioneiramente em sustentabilidade no campo.
No governo Lula, e depois no de Dilma Rousseff, o Pronaf continuou sendo aprimorado, buscando-se a segurança e a proteção da produção e da renda para tal categoria de produtores rurais. Em 2014, o crédito ofertado para a agricultura familiar superava dez vezes aquele verificado em 2002, montando a R$ 24,1 bilhões. Os recursos preveem, inclusive, a renegociação das dívidas de cerca de um milhão de famílias da reforma agrária. O seguro da safra agrícola, no âmbito do Pronaf, passou a garantir 80% da receita bruta esperada pelos produtores. E o Programa de Aquisição de Alimentos, que possibilita a compra direta, pelo governo (Conab), de gêneros produzidos por agricultores familiares e suas organizações, conta com orçamento de R$ 1,2 bilhão. Somados, todos esses programas fortalecem os pequenos produtores no campo.
Aqui, reside o núcleo da questão agrária contemporânea: assegurar a continuidade da produção da maioria dos agricultores. Trata-se de manter o emprego e a renda daqueles que já produzem e se encontram, na competição global, ameaçados em sua sobrevivência. O drama é mundial e antigo. Nos Estados Unidos e na Europa, verificou-se nas últimas décadas drástica redução do número de agricultores, mostrando uma nítida tendência de acréscimo da escala de produção no campo. Em 1935, os Estados Unidos apresentavam 6,8 milhões de produtores rurais, número que caiu para a metade na década de 1960 e, na virada do milênio, para cerca de 2 milhões de pessoas. A França viu o número de seus agricultores cair de 2 milhões, logo após a  Segunda Guerra, para 700 mil, em 1994.
No Brasil, o IBGE indica que a quantidade de produtores rurais, tanto quanto sua área média, pouco tem se alterado recentemente. O Censo Agropecuário (2006) apontou um total de 5.175.636 estabelecimentos rurais, ocupando uma área total de 333,6 milhões de hectares, o que resulta numa área média de 64,5 hectares. Esse valor diminuiu em relação a 1980, quando estava em 70,7 hectares. O índice de Gini, que mede o grau de concentração da posse da terra, embora elevado, manteve-se praticamente igual entre 1985 (G=0,857) e 2006 (G=0,858). Portanto, diferentemente dos Estados Unidos da América e da Europa, o Brasil tem conseguido manter seus agricultores sem piorar a concentração fundiária. Ponto para a democracia.
Um novo paradigma agrário
Influenciadas pelo paradigma agrarista formado há meio século, muitos acreditam, ainda hoje, que a comida do povo é produzida pelo agricultor de subsistência, enquanto o agronegócio capitalista serve apenas ao comércio exterior. Facilmente se demonstra essa ideia ser um grande equívoco.
A ideia conceitual que gerou o termo “agronegócios” não diz respeito ao destino da produção, se direcionada para o mercado interno ou o externo. Muito menos se pode dizer que o “modelo” de agronegócios é elitista, como alguns o consideram, pois a mercantilização da produção rural afeta a todos os tipos de produtores: somente não participam dos agronegócios os agricultores de subsistência, aqueles que plantam para comer. Em outras palavras, inexiste oposição entre os agronegócios e a produção familiar.
Alguns argumentam, por exemplo, que os produtores de soja sejam típicos do agronegócio de commodities destinadas ao exterior. Ledo engano, pois o óleo de soja, o mais barato, de consumo popular, se origina do esmagamento do grão de soja. E, no Paraná e no Rio Grande do Sul, grandes estados plantadores da oleaginosa, 90% da produção advêm de agricultores familiares, ligados às cooperativas exportadoras. Quer dizer, a mesma agricultura que gera divisas na exportação fornece óleo na cozinha do povo. E, com o farelo da soja, resíduo da extração do óleo, elabora-se ração de frangos, cuja apreciada carne abastece tanto o mercado interno quanto o externo. Impossível distinguir.
No café, outro bom exemplo, a maior parte da safra brota das lavouras mineiras, grandemente ligadas às cooperativas. A Cooxupé, maior delas, aglutina 12 mil cafeicultores, sendo 80% pequenos produtores rurais. Do embarque total de grãos nos pátios da cooperativa (2011), perto de 15% se destinaram às torrefadoras do mercado interno; a maior parte seguiu exportada. Pequenos, juntos, ficam grandes e conquistam os consumidores no estrangeiro.
Para cada ramo da agropecuária nacional, pode-se verificar essa junção entre o agronegócio capitalista e a produção familiar. Mesmo na produção de feijão, na qual a grande parcela dos produtores sabidamente advém de pequenos agricultores, a maioria deles representa os altamente tecnificados, empresariais, vinculados às grandes empresas, que distribuem o rico cereal nas cidades.
Ser agricultor familiar não necessariamente significa ser pequeno, muito menos ser pobre. Nos EUA, sabe-se, a mecanização da agricultura provocou, ao mesmo tempo, o aumento da escala de produção e o fortalecimento da gestão familiar, preponderante por lá em 90%. Tal processo se caracteriza, por aqui, especialmente no Mato Grosso, onde enormes fazendas produzem soja e milho, nas lavouras tocadas pelos próprios produtores e seus filhos.
Chega a surpreender como, ainda hoje, muitos continuam raciocinando com os termos do paradigma agrário formulado nos anos de 1950. Existem, sabidamente, muitos aspectos atrasados no campo, como a miséria e a situação social degradante, mas essa perversidade permanece como resíduo da história, não fazendo parte da dinâmica da economia rural. A realidade se impõe: responsável por 27% do PIB nacional, o mundo dos agronegócios, com suas virtudes e defeitos, impera de forma determinante.
Uma decorrência da expansão do capitalismo agrário se verifica na ocupação e no emprego rural. Enormes modificações foram causadas, entre vários fatores, pelo avanço da mecanização agrícola. A desigualdade salarial no agronegócio vem se reduzindo notadamente a partir do início da década de 1990, sendo que nos últimos anos os salários rurais da mão de obra qualificada subiram acima da média nacional, em decorrência da escassez no campo. No Centro-Oeste, as grandes empresas rurais disputam por contratar operadores de máquinas agrícolas, gerentes de produção e técnicos agrícolas. Em Minas Gerais, está difícil recrutar trabalhadores para colher café nas montanhas. Colhedores de laranja rarearam em São Paulo.
Discutir sobre o latifúndio, nos dias de hoje, representa puro saudosismo intelectual. Aquelas imensidões de terra pouco produtivas, com relações de produção quase feudais, cederam lugar às empresas rurais grandes, porém altamente tecnológicas e produtivas. É aqui, no seio do capitalismo agrário, que devemos procurar os caminhos capazes de avançar na democratização das oportunidades no campo.
Emancipação política dos agricultores
Várias razões podem ser evocadas para explicar o extraordinário e recente processo de transformação da agropecuária nacional. Algumas se originam nas forças motrizes da economia capitalista, nesta sua fase globalizada; outras dependeram das políticas públicas, com maior ou menor êxito. Muitas vezes, foram os próprios produtores rurais que se organizaram, lutaram para conseguir seu progresso material e moral. Nesse caso, suas atitudes positivas e empreendedoras fizeram a diferença.
A emancipação política dos pequenos agricultores é a chave para o futuro da agricultura familiar, seja aquela de base tradicional, seja a advinda dos recentes assentamentos de reforma agrária. Somente uma atitude proativa, vinculada à busca do conhecimento, conseguirá levar o pequeno agricultor a romper a barreira que lhe mantém na pobreza.
Chega a surpreender como o traço cultural e político carregado da época colonial moldou um caráter acomodado no brasileiro, acostumado a aguardar, mesmo após quase dois séculos de Independência, as ordens superiores, do poder centralizado, como se fossem as antigas determinações da Corte portuguesa. Essa marca da nossa servidão colonial, oposta ao que ocorreu na sociedade norte-americana, que lá se afirmou na soberania, mantém aqui as pessoas excessivamente críticas e comedidamente propositivas.
Dessa situação se aproveita a política clientelista, cujo nascedouro se encontra nas entranhas da sociedade colonial dependente. As costumeiras benesses públicas, originadas nos favores aos “amigos do Rei”, incluindo generosas porções de terra e títulos de nobreza, quando destinadas ao povo passam a ser intermediadas por uma classe política que privilegia o personalismo e o empreguismo, favorecendo a subordinação pessoal. Esse vício de origem caracterizou o meio político nacional e, mais tarde, já instaurada a República, veio a contaminá-la, maculando a res pública. Como decorrência, o sistema democrático nacional jamais se livrou do fisiologismo.
Os analistas da política brasileira concordam, cada qual a seu modo, com essa perversidade histórica da nossa democracia. Sempre a atribuíram, porém, ao jogo superior do poder, praticada em nome dos interesses das classes dominantes, a começar pelos aristocratas da monarquia, passando pela velha oligarquia agrária até chegar aos mandatários populistas recentes. Poucos estudiosos, contudo, enxergaram, ou destacaram, o mesmo clientelismo permeando as relações de mando na parte de baixo da pirâmide social. Desgraçadamente, porém, a subordinação política e a dominação ideológica no campo se encontram há tempos manipulando consciências, oprimindo pessoas, que reverenciam seus (falsos) líderes para obter variados benefícios sem descobrir que, assim procedendo, perdem sua mais pura liberdade e se distanciam da verdadeira cidadania.
O fenômeno da subordinação política dos pequenos produtores rurais às entidades religiosas e sindicais, ou aos mandatários do aparelho de Estado, de certo modo conhecido no Nordeste e nas regiões mais atrasadas do país, passou a dominar os assentamentos de reforma agrária do Brasil, especialmente decorrente do processo de invasão de terras comandado pelo MST e pelas organizações congêneres. Pesquisas oficiais mostram que 55% das famílias assentadas nos projetos se filiam a esses movimentos, nos quais normalmente se exige pagamentos de taxas e comissões sobre financiamentos obtidos, além de abusarem dos “associados” como massa de manobra política nos momentos reivindicatórios. Tudo disciplinado.
Existe no Incra um programa de consolidação e emancipação de assentamentos, fruto de um acordo firmado, em 2012, entre o governo brasileiro e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mas que atende tão somente a 12 mil famílias, distribuídas por 75 assentamentos. A irrisória ação em prol da emancipação das famílias assentadas se explica pelo lobby das organizações ligadas aos “sem-terra”, que se posicionam contrariamente à titulação dos assentados de reforma agrária. Argumentam que seria o “golpe de morte” na reforma agrária, pois os beneficiários poderiam, tendo a escritura definitiva, vender seus lotes de terra. Ora, o mercado de compra e venda de terras dentro da reforma agrária, embora proibido pela legislação, é reconhecido em todos os lugares, atestando inclusive o mau gerenciamento da política fundiária do país.
Ao negar a titularidade da propriedade rural adquirida no processo de reforma agrária, o Estado frustra a expectativa de direito dos beneficiários, do sonho da terra prometida semelhante ao desejo da casa própria. Essa situação não se coaduna com o avanço da democracia brasileira.
Conclusão:  A revolução pelo conhecimento
Revisitando os 30 anos recentes da nossa história e aplicando os conceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito na análise política do campo, pode-se comemorar. A agropecuária brasileira triplicou de tamanho e deu um extraordinário salto de qualidade. A revolução tecnológica é contínua, e os ganhos de produtividade não cessam. As cadeias produtivas reforçam a integração aos mercados, aprimoram o processamento dos alimentos, facilitando a distribuição e o abastecimento popular. Se, entre os direitos fundamentais da pessoa humana, coloca- se o direito à adequada alimentação, pode-se afirmar que, no Brasil, uma pujante agricultura garante a segurança alimentar da população.
Abriram-se oportunidades nesse processo de expansão da agropecuária. Novos personagens surgiram na abertura das fronteiras rumo ao Centro-Oeste, interiorizando o desenvolvimento nacional. Milhares de filhos de pequenos agricultores deixaram seus lares no Sul do país e foram ganhar a vida no cerrado distante, aventurando-se numa verdadeira epopeia. Além dos níveis elevados na produção de grãos e carne, o êxito dessa trajetória se pode averiguar através dos municípios erigidos nessas regiões, assentados na lavoura e na pecuária, que apresentam os mais elevados IDHs do país.
Por outro lado, esse incrível desempenho do agro nacional está sendo comandado por um seleto grupo de produtores rurais, sejam pequenos, médios ou grandes, que foram capazes de incorporar, através do esforço tecnológico, ganhos de produtividade, aumentando a rentabilidade de seus negócios. Eliseu Alves, notório pesquisador da Embrapa, mostra essa segregação: dos 4,4 milhões de estabelecimentos que declararam o valor da produção ao censo do IBGE, em 2006, somente 500 mil deles se responsabilizaram por 87% do valor da produção. Isso mostra que o dinamismo da agropecuária nacional está sendo comandado por uma dianteira de 11,4% dos agricultores3.
Em contrapartida, os demais 3,9 milhões de estabelecimentos produzem uma pequena fatia de apenas 13% da produção agropecuária, indicando dificuldades na geração de sua renda. Mais grave, porém, é descobrir que, destes, um enorme contingente de 2,9 milhões de estabelecimentos rurais, a base da pirâmide, responde por apenas 4% da produção rural. Esse pífio desempenho produtivo indica haver pobreza nessa enorme faixa de pequenos agricultores, a grande maioria localizada no território nordestino. Dados oficiais do IBGE (2010) comprovam que, dos 29,83 milhões de brasileiros residentes no campo, 25,5% se encontram em extrema pobreza, perfazendo um total de 7,59 milhões de pessoas. Aqui está o drama da pobreza rural, que continua machucando a democracia brasileira.
O Censo Agropecuário do IBGE (2006) atesta que 39% dos responsáveis pelos estabelecimentos rurais não sabem ler nem escrever, enquanto outros 42,35% têm o nível de educação fundamental incompleto. É terrível o quadro da baixa escolaridade no campo. Somente uma vigorosa política de educação e difusão tecnológica poderá elevar a produtividade e promover a geração de renda dessa grande parte de agricultores pobres, que pouco participa da safra nacional. Mesmo assim, certamente, grande parcela deles, especialmente aquela situada no semiárido nordestino, terá que ser beneficiada diretamente pelas políticas públicas de transferência de renda.
Esse contraste indica a superação do desafio histórico na luta contra a miséria rural: em vez do acesso à terra, importa agora inexoravelmente participar do ciclo tecnológico. Chegou a vez da revolução pelo conhecimento, pelo saber fazer. A verdadeira conquista da democracia vai, assim, depender de decididos investimentos na educação e na capacitação profissional. Somente a instrução, direcionada para a juventude rural, conseguirá enfrentar a pobreza que denigre a moderna agricultura.
Nessa jornada que parece interminável, a favor da justiça social, não podemos, ao tagarelar quimeras, cometer o equívoco de D. Quixote, que combatia moinhos de vento. Não haverá retorno ao passado. É no contexto do capitalismo agrário, em sua fase globalizada e tecnológica, que devemos encontrar as condições objetivas da luta política. Em suas entranhas contemporâneas devemos descobrir quais ações, públicas e privadas, se fazem necessárias para configurar a plena cidadania no campo.
Não se trata de um julgamento de valor. Nem de uma capitulação ideológica. Trata-se, simplesmente, de reconhecer a realidade no século 21.


1 Os mais completos e atualizados dados, com excelentes análises, sobre essa nova fase do desenvolvimento agrário se encontram na coletânea de artigos “O Mundo Rural no Brasil do Século 21” (2014), publicação conjunta da Embrapa com o Instituto de Economia da Unicamp, editado por Antônio M. Buianain, Eliseu Alves, José Maria da Silveira e Zander Navarro. * O autor agradece as sugestões de caráter jurídico ao texto oferecidas pela gestora pública Ana Flávia Cabral Souza Leite.


FRANCISCO GRAZIANO NETO, Xico Graziano, é engenheiro agrônomo (ESALQ/USP, 1974), mestre em Economia Agrária (USP, 1977) e doutor em Administração (FGV/SP, 1989). Ocupou vários cargos públicos, destacando-se os de secretário estadual do Meio Ambiente (2007-2010), deputado federal pelo PSDB/SP (1998-2006), secretário estadual de Agricultura (1996-98), presidente do Incra (1995) e chefe do Gabinete Pessoal do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995). Escritor, publicou oito livros sobre os temas da questão agrária, agricultura, sustentabilidade e democracia. Xico Graziano é articulistado jornal O Estado de S. Paulo, consultor em organização,marketing de agronegócios e sustentabilidade. É sócio-diretor da OIA/Certificação socioambiental e diretor executivo do site Observador Político/iFHC.

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