Dilma: do Desafio Histórico à Tecnocracia
O ciclo histórico de Dilma Rousseff não está completo: há tempo de mandato e espaço suficiente para alterar a visão do presente. Seu governo ainda será o que as circunstâncias permitirem e a política souber forjar. Logo, esta análise é, naturalmente, limitada, e o futuro poderá desdizê-la. E seria mesmo positivo que o fizesse. A vantagem do pessimismo é que vale a pena estar errado.
Mas, de um ponto de vista objetivo, até aqui, o governo Dilma realizou pouco e aguarda-se o momento de seu despertar. As incongruências do presente se originam no passado. No processo, estão as chaves explicativas de sua natureza estrutural.
É necessário, então, compreender esse processo para que se percebam desafios, impasses e limites do governo em curso. Um processo longo, de transformação do Brasil, que começa lá atrás, nos tempos de Fernando Henrique (FHC) e Lula, nas escolhas do passado que geram efeitos de longo prazo e ecos que ainda ressoam.
Para isto, é necessário superar a cegueira da euforia e soltar as amarras do preconceito. Veremos que nesta tentativa de explicação, pelo menos como alerta, muito do que se revela vai além do governo e implica um grande problema do país.
Este artigo pretende explicar o governo Dilma, mas também compreender a crise mais geral que vivemos. Sem julgar, busca aprofundar um diagnóstico. Se injustiças foram cometidas, elas são menores do que a vontade de que tudo se reverta e que o Brasil possa reencontrar os caminhos de seu desafio histórico.
Desafios históricos: 16 anos de ouro
Todo governo tem seu desafio histórico. Alguns mais dramáticos, outros menos perceptíveis, porque as circunstâncias não revelam tantas angústias. Dilma Rousseff assumiu o governo em condições menos dramáticas que seus antecessores. Todavia, seus desafios também estavam postos. Para compreendê-los, voltemos ao processo de transformação do país, levado a cabo por Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Para além do Fla-Flu que se tornou a política brasileira, o fato é que ao fim de quatro mandatos presidenciais, o Brasil promoveu uma interessante síntese, e graves problemas foram superados. Em primeiro lugar, concluiu-se delicada transição política. Em 1995, a memória do regime militar era viva. FHC assumia um país ainda ressentido com o impeachment de Fernando Collor de Mello. Oito anos depois, o ministro da Defesa era civil, os direitos humanos se fortaleciam, a normalidade eleitoral se fixava, a alternância de poder se dava com a eleição de Lula. Em oito anos mais, uma mulher, ex-guerrilheira, seria eleita. Alternância e diversidade: é um Brasil incomparável com seu passado.
Em segundo lugar, são marcantes os avanços econômicos: a inflação, que desorganizava a economia e alargava a desigualdade social, foi controlada. Econômica e socialmente, o Plano Real significou a profunda modernização do país. Iniciou um processo de distribuição de renda, redefiniu o papel e o tamanho do Estado, fez a mais decidida abertura comercial, até então.
Com FHC, houve inegável aperfeiçoamento institucional: foram criadas as Agências de Regulação, mecanismos para orientação e incentivo do mercado, foi estabelecido o imperativo da responsabilidade fiscal. Some-se a isto, a universalização do acesso ao ensino fundamental, e o país começou a ser outro.
A importância de Lula tampouco pode ser ignorada. Em primeiro lugar, porque sua moderação pôs fim ao “risco PT” – uma histeria apenas parcialmente justificada que animava a vida de operadores de mercado e trazia intranquilidade e indecisão, retraindo investimentos. Em segundo lugar, a continuidade do processo iniciado por Fernando Henrique não pode ser rebaixada à “usurpação”. A decisão não apenas foi pragmática, mas corajosa.
A começar, porque a eleição de 2002 fora “mudancista”, e o eleitorado sinalizara cansaço com os tucanos. Persistir na mesma linha seria frustrar expectativas populares e populistas, relevar um basismo atávico e enfrentar radicais. Era, claro, possível fazer diferente e piorar tudo terrivelmente. Isto não ocorreu. É estranho, mas há críticos que parecem condená-lo por ter agido corretamente.
Num país como o Brasil e na América Latina, os sensos de realidade e moderação devem ser celebrados como qualidades, e não como defeitos. Não foi fácil desdizer o que reverberava dos palanques havia anos. Realismo político e pragmatismo. Se alguma crítica deve ser feita, será à interrupção do aperfeiçoamento institucional, sobretudo, no controverso entendimento das Agências de Regulação.
Todavia, avaliemos pelo saldo: Lula avançou numa agenda social que circunstâncias fiscais anteriores não permitiam – e a ideologia de setores do governo de FHC descartava categoricamente. De algum modo, Lula buscou a estabilidade com crescimento e distribuição: mantendo cautela macroeconômica, utilizou instrumentos que, em anos anteriores – peremptória, às vezes, sectariamente –, seriam descartados por implicar “custos fiscais” e riscos ao controle inflacionário.
Goste-se ou não, medidas como o Bolsa Família, o Prouni ou as cotas raciais, somadas à estabilidade da moeda, foram relevantes no conjunto das transformações históricas.
Os esforços e as realizações dos dois presidentes devem ser reconhecidos, não apenas per se, mas pela síntese que realizaram. Houve virtù diante da fortuna que coube a cada um.
Claro, o Brasil se transformava até porque também o mundo mudava vertiginosamente com tecnologia, revolução nas telecomunicações e globalização. O capitalismo informacional – na expressão de Manuel Castells – ou a lancinante circulação de capitais, tudo isto empurrava o país na direção de uma economia e de uma sociedade dinâmicas, voltadas para o futuro.
Ao fim e ao cabo, a estabilidade monetária e o crescimento econômico transformaram-se em valores sociais e políticos. Impedir a volta da inflação, manter o emprego e sustentar a inclusão social e o consumo passaram a ser imperativos categóricos da política nacional.
Considerando nossa jovem democracia, não foi fácil, não foi pouco e foi rápido. Todavia, é um projeto inacabado que exige continuidade e aprofundamento. O desenvolvimento e a inclusão social despertaram a necessidade de mais investimento, mais produção, mais consumo, mais escola e qualificação, melhor ambiente de negócios, instituições mais robustas. Um círculo virtuoso se for alimentado; perverso, se interrompido.
Os mecanismos utilizados por FHC e Lula já não bastavam. Juros, câmbio, superávits, políticas distributivistas, incentivos fiscais e crédito são ferramentas importantes, mas insuficientes. É necessário eliminar gargalos: a infraestrutura precária e insuficiente, insegurança jurídica, legislações arcaicas, mentalidades antigas. É preciso melhorar a qualificação do trabalhador. Supor manter o consumo sem garantir a produção é um erro crasso.
Desse modo, a tarefa de Dilma Rousseff seria darcontinuidade à transformação: liberar o fluxo do desenvolvimento, sustentável, sem retorno à inflação. Fazê-lo com inclusão social e aperfeiçoamento institucional. Eis seu desafio histórico. A questão que cabe discutir é se Dilma tem cumprido a contento este papel.
A crise da política e os esgotamentos de instrumentos
O país se modernizou, mas está longe de ser plenamente moderno. Muito ficou pelo caminho, e novas iniciativas são indispensáveis. Chegou o tempo em que obstáculos estruturais precisam ser removidos, o que compreende conflitos de interesses ainda mais profundos. E quando se vislumbra o conflito, chega-se ao nervo da política.
Mas, se a economia e a sociedade se modernizaram, o mesmo não ocorreu com a política. Dada a emergência das questões dos anos 1990, a transformação do sistema político tornou-se preocupação de segunda ordem. A dramaticidade daquele tempo, por si só, pressionou o sistema que, por autopreservação, mesmo arcaico, respondeu à pressão das circunstâncias dando fluxo às reformas de então.
Com efeito, modernizar a política, no ritmo da economia e da sociedade, implicaria custos pouco produtivos, no curto prazo. As tangentes eram várias, os incentivos, poucos. Nenhum governo se animaria ao desgaste não fosse inevitável. E havia margem para agir, independentemente da política ou apesar dela. Mais prático foi gerir o sistema a partir de suas características próprias ou, antes, defeitos.
A urgência impôs o primado da economia e do mercado sobre a política. Não foi apenas no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, a crise do Estado de Bem-Estar Social também despertou um ethos de valorização do indivíduo, acima da sociedade. “Sociedade não existe, existem os indivíduos e suas famílias”, teria afirmado Margaret Thatcher. As relações e os interesses econômicos passaram a ser entendidos como superiores. Foi um erro, pois esvaziou a inescapável política.
O interesse decaiu, a participação recuou. A política envelheceu, perdeu eficácia e qualidade de quadros. A tecnocracia passou a ser valorizada e ascendeu ao poder em várias partes do mundo. O “tempo do mercado” se impôs, as maiorias parlamentares – inevitáveis – precisavam ser disciplinadas, maleáveis, menos questionadoras. A supressão da política dá velocidade ao processo, mas é incapaz de aperfeiçoá-lo.
No Brasil, essa disposição foi favorecida pelas características de seu presidencialismo de coalização. Baseando-se no vício – “é dando que se recebe” –, a concessão ao fisiologismo virou virtude. Mas, fez com que o ambiente se deteriorasse. Deu-se uma seleção adversa de quadros: os melhores nem se aproximaram, perdeu-se visão de futuro. Os preconceitos em relação à política e aos políticos se sedimentaram. Política tornou-se, antes de tudo, um adjetivo depreciativo.
Quem lê Max Weber – “Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída” (1918) – assombra-se com o déjà vu que sente em relação ao Brasil atual. Avaliando o saldo do poder de Otto von Bismarck (1815 – 1898), Weber constata o apequenamento da política, esvaziada de sua nobreza, subjugada à grandeza do chanceler, dominada por sua burocracia.
Política, no entanto, não apenas é inevitável, mas necessária. A solução para os conflitos, arbitragem de perdas e ganhos e a criação do novo se dão por seu intermédio. A burocracia apenas cumpre e encaminha, elabora e decide. A burocracia é, antes, manutenção. A política, transformação. Na Alemanha de 1918, Weber sentia sua falta:
“O que faltava era a direção do Estado por um político – não um gênio político, o que se espera ocorra uma vez em alguns séculos, nem mesmo por um grande talento político, mas simplesmente por um político.” (Weber, 1980: 28)
Se à Dilma foi deixado um processo vigoroso de modernização e desenvolvimento, também lhe foi legado um país esvaziado de política, sujeito ao fisiologismo, capaz de confundir burocracia e tecnocracia com o bom governo. É dessa tecnocracia que Dilma surge e de onde retira sua força aparente.
Esgotamento dos instrumentos
É possível que sob Fernando Henrique e Lula tenham se dado os estertores do talento de uma geração que lutou pela democratização; um ciclo que se encerra . O fato é que FHC conduziu um projeto no momento em que a urgência impunha o pragmatismo do Congresso como preço da sobrevivência. Ele fez com que sua base compreendesse que ou bem a política viabilizava a economia, ou a inflação destruiria os governos.
Não foi um governo de puros. FHC dividiu recursos e espaços com aliados . Mas, teve a virtude de perceber o desafio histórico e durante algum tempo, pelo menos, explorar a emergência das circunstâncias, o apoio de setores empresariais e aprovar importante agenda estrutural. Sua base resistiu e até boicotou, mas também aquiesceu – “não por boniteza, mas por precisão”. Ainda que pouco pelejasse pela reforma do sistema – a renovação da política –, conduziu o barco num tempo de turbulência.
A calmaria, suposta, chegou anos depois, com o arrefecimento das crises mundiais e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio. O fim do “risco PT” também ajudou. As condições externas melhoraram muito. Mas, os instrumentos políticos internos pioraram. Lula também lutou suas batalhas, diferentes das de FHC, mas batalhas.
No princípio do governo, o petista negociou com o Legislativo a aprovação de duas reformas parciais – a da Previdência e a Tributária –, que, tão ou mais importantes que seus conteúdos, eram também fundamentais como símbolos. Lula mostrava-se pragmático, o que muitos duvidavam. Na fragilidade dos primeiros meses, a curva de aprendizado se deslocou rapidamente. Novamente, a pressão serviu de dínamo para a mudança.
Até o final de 2004, ainda que tenuamente, o governo expressava disposição reformista: o ministro Antônio Palocci, pela composição de sua equipe, simbolizava a manifestação política da racionalidade econômica. Buscava retomar uma “agenda perdida”, por meio do diálogo, inclusive, com a oposição. A antiga pauta do Partido dos Trabalhadores perdia força no governo.
No Congresso, no entanto, faltavam operadores de qualidade. Novatos ou de pouca expressão assumiam cargos relevantes. João Paulo Cunha (PT-SP), por exemplo, assumiu presidência da Câmara dos Deputados, sabemos no que deu. A necessidade de formar maioria fez com que Lula buscasse pequenos partidos, aliados históricos e, também, adesistas de toda ordem. Ainda que, inicialmente, o PMDB fosse vetado, Lula repartiu seu governo, digamos assim, de um modo clássico. Mais uma vez, se contornava o problema.
Diante da voracidade do Congresso, o Executivo, pragmático, passou a buscar alternativas ao envolvimento do Legislativo. Sem agenda, o Parlamento ficou à sorte de seus interesses fragmentados – sempre um grande perigo. Política também é condução, liderança.
Com a eclosão do Mensalão, isto se tornou mais dramático. Para se proteger da agenda negativa da oposição e do oportunismo de aliados, o governo buscou reforçar a maioria não pela reforma, mas pelo aprofundamento dos instrumentos de que dispunha: a distribuição de espaços no governo, o fisiologismo.
Com a queda do ministro-político-pragmático Antônio Palocci a visão estratégica do governo, que já declinava, perdeu amplitude. Assumiu-se dinâmica tecnocrática, paulatinamente ideológica, de curto prazo. Os quadros de elaboração e operação política de maior alcance, capazes de traduzir a medida técnica e negociá-la, politicamente, no Congresso e na sociedade, começaram a escassear.
A indisposição de implementar uma pauta de mudanças estruturais acomodou-se às dificuldades: instrumentos extraparlamentares, portarias ministeriais e medidas provisórias foram privilegiados; vetos presidenciais agiriam em última instância. Data desse período, a emergência da hegemonia da equipe técnica autônoma em relação ao parlamento e à sociedade, a partir do presidente, articulada com setores escolhidos. Uma burocracia técnica, com forte teor ideológico, insulada em relação à sociedade e ao sistema político.
Governar é fazer escolhas. Fechado com seu corpo técnico – ideologicamente orientado –, Lula escolheu contornar o sistema político não pelo projeto ou pela coerção das circunstâncias, como FHC, mas pela radicalização na distribuição de recursos em tempos mais fartos. Realmente, o bom momento é mau conselheiro. Com isso, por fora do sistema, formou um amplo e poderoso bloco no poder. Setores e parceiros escolhidos: fundos de pensão, investidores internacionais, bancos, grandes conglomerados, movimentos sociais, centrais sindicais e os dois maiores partidos do Brasil, o PT e o PMDB.
Heterogêneo e fragmentado, porém, esse bloco no poder não se interessava pelo encaminhamento de uma pauta estrutural ampla e geral. Negociava, individualmente, nos guichês da tecnocracia, interesses e demandas setoriais e específicos. Quem possuía organização e interlocução encontrou espaço. Foi esse poderoso bloco no poder que deu vigor e sustentação à candidata Dilma, escolhida por Lula.
A reforma do sistema político, mais uma vez, foi desconsiderada; aos poucos, sumiu dos discursos oficiais. Bastava que, satisfeito, o Congresso assumisse a disciplina quando convocado. Tornou-se uma não questão, não porque tenha sido solucionada, mas pela desistência de transformá-la.
FHC e Lula tiveram instrumentos que lhes permitiram pressionar o Congresso ou passar ao largo dele. O primeiro, pela premência de uma agenda; o segundo, em virtude do bom momento e de recursos instalados capazes de permitir a retomada do crescimento, sobretudo, após a crise internacional de 2008, quando pôde lançar mão das tais políticas anticíclicas.
A crise, a propósito, foi a janela de oportunidade para a emancipação do desenvolvimentismo de setores não exatamente do PT, mas de uma tecnocracia nacionalista. Com justificadas razões, instrumentos antes temidos como supostos incentivos à volta da inflação foram utilizados. O país cresceu e, em 2010 – ano de eleição –, experimentou um momento de enorme euforia. “Nunca antes, na história deste país”, era o bordão de Lula. Eleita, até hoje, Dilma explora a inércia daquele movimento.
O crescimento de 2010 foi responsável pelo triunfalismo que inebriava o governo e parte do empresariado nacional – inclusive os bancos, hoje, os maiores críticos do governo. A euforia e o triunfalismo, a partir de 2011, permitiram a expansão do desenvolvimentismo, com revisão da política macroeconômica. Isso levantou suspeitas quanto à qualidade do desenvolvimento – que não veio –, colocando em questão a autonomia do Banco Central, por exemplo, e o compromisso em relação à inflação.
Políticas anticíclicas se esgotam, porém. O governo e a economia do país patinam em minúsculos índices de crescimento, projetos de execução controversa, medidas conjunturais de fôlego limitado, sentimento de deterioração da qualidade das instituições e piora do ambiente de negócios. Isso tudo aumenta o temor, a aversão ao risco. Afugenta investimentos, que traduzem cada sinal como intervenção, protecionismo e rompimento de contratos. O prazo de validade da Carta ao Povo Brasileiro teria chegado ao fim? Certo ou errado, o governo perde a batalha de opinião com os atores econômicos. Quando começa assim, não para por aí.
Ponto de exaustão do presidencialismo de coalizão
Na política parlamentar, a situação não é melhor que na economia. Em primeiro lugar, há que se compreender o ponto de exaustão do presidencialismo de coalizão. Em casos de primeiro mandato, com alternância de poder, o novo presidente da República tem a sua disposição milhares de cargos para compor o governo e formar maioria.
Independentemente da agenda, atrai todo o adesismo nacional. Fala-se até em lua de mel entre governo e Congresso. Com o tempo, os acordos perdem validade e a cada novo projeto se exigirá nova negociação; a cada crise, a base se agita, quer mais.
Com a reeleição, este cenário se agrava: para garantir a continuidade do apoio, mas também aumentar tempo de TV, capilaridade partidária e palanques na campanha, o Executivo cede as joias da coroa que antes negava: diretorias de estatais, autarquias, fundos de pensão. O governo cria novos ministérios. Sua competitividade eleitoral cresce deveras e a reeleição é mais ou menos “favas contatas” diante da exuberância de recursos de que dispõe.
A fonte não se esgota, mas a sede permanece grande. Na sucessão, após a reeleição – a terceira eleição, como foi o caso de Dilma –, essa negociação é ainda mais complexa: quem já foi atendido quer mais e novos aliados exigem também a sua parte. A demanda cresce mais rápido que a oferta de espaço, e, por parte do Executivo, os acordos não podem ser cumpridos. Uma guerra de dossiês e denúncias se desenvolve na base.
No primeiro ano de mandato de Dilma, esta dinâmica foi a responsável pela queda de seis ministros. A imprensa a chamou de “faxina”, uma determinação espontânea de fazer limpeza. Aqui, no entanto, os problemas são contingentes: vasos se quebram e é necessário juntar os estilhaços. Mas, como reposição, os partidos tendem a indicar peças feitas do mesmo barro .
A grande base é uma ilusão numérica, politicamente frágil. Além da diversidade e da fragmentação de um grupo tão vasto, a voracidade fisiológica canibaliza os projetos do governo. Derrotas legislativas tornam-se mais frequentes e as vitórias, mais custosas. Votações como o “Código Florestal”, “Royalties de Petróleo” ou a “Lei Geral da Copa” são exemplos de uma dinâmica complicadíssima.
A oposição, sem formular discurso alternativo, esconde-se na retórica moralista. Mas, vê também em seus quadros os efeitos do fisiologismo: um número expressivo de seus parlamentares se ressente da falta de sinecuras e migra para a base governista. Forjam-se fusões e criações de novas legendas. Inadvertidamente ou não, ao constranger o Executivo com denúncias e pedidos CPIs, a oposição eleva o preço da proteção aliada, torna-se, ela mesma, instrumento do achaque.
Quando o presidencialismo de coalizão brasileiro chega ao paroxismo, a oposição passa a residir na própria base aliada. Pode-se culpar os operadores do governo no Congresso Nacional – de qualidade realmente precária –, mas o problema é estrutural. Problemas estruturais exigem soluções estruturais.
Porém, o consenso que se estabelece é que não interessa enfrentá-los; melhor garantir a governabilidade e não elevar ainda mais os custos de negociação com o Congresso ou entes federativos. Bloqueia-se a agenda das reformas – política, tributária, trabalhista e regulatória. Não se discute o sistema político necessário para implementar agendas. Deixar isto por conta dos partidos é renunciar à mudança. Chega-se à disfuncionalidade e ao impasse. Que fazer?
O bloco no poder, que permitia a Lula articular por fora do Congresso, também vai se esgotando em suas contradições: as arestas de sua diversidade interna e a divergência de interesses só podem ser aparadas em tempos de opulência. Na baixa, o conflito explode e a defecção de setores antes aliados é inevitável.
Supunha-se que a equação da popularidade de Dilma viesse a ser resultado do maior desenvolvimento alcançado sobre a menor inflação auferida. Mas, isto dependeria de incentivos para o investimento e a infraestrutura e dependeria de reformas. O governo, no entanto, resigna-se em trocar desenvolvimento por baixos índices de desemprego e alta expectativa de consumo. Para isso, briga com o rabo, estimulando o consumo, correndo atrás de juros menores, câmbio maior e mecanismo contábeis duvidosos para chegar a superávits.
É pouco, diante do desafio. Resignado, o governo não supera os impasses. Sem ter por onde ir, buscam-se as saídas do passado, no nacional-desenvolvimentismo tardio.
O esgotamento do modelo impõe ao governo pelo menos três requisitos fundamentais: 1) um diagnóstico preciso; 2) criatividade econômica na formulação de uma nova agenda – uma agenda reformista que exigirá debate e negociação na sociedade e no Parlamento; e 3) capacidade de articulação política para aprovação dessa agenda. Tudo a que a tecnocracia se nega a fazer.
Até aqui, não há clareza em nenhuma dessas dimensões: 1) o diagnóstico é impreciso e eivado pela ideologia do desenvolvimento, e avesso ao mercado – há pouca mediação entre polos e facilmente perde-se o equilíbrio pragmático; 2) a agenda raramente escapa do curtíssimo prazo, não há elaboração mais sofisticada do que medidas “prudenciais” e não se estabeleceu um debate mais amplo sobre um rol de iniciativas e incentivos estruturais capazes de alterar a percepção de agentes econômicos e políticos; e 3) a articulação no Congresso é, paradoxalmente, rude e resignada, incapaz de estabelecer uma pauta política – até porque se ressente de diagnóstico e formulação.
Refém da própria falta de criatividade e da pressão das corporações e do Congresso, o governo vive uma “síndrome de Estocolmo”: parece apaixonado por aquilo que o sequestra. Ainda assim, paradoxalmente, a popularidade governamental é extraordinária. Como explicar isto?
A confusão entre política e gestão
Um sucesso de público e um fracasso de crítica. Esta é a situação do governo e da presidente. Mesmo diante do baixo desempenho econômico, em dezembro de 2012, extraordinários 78% da população aprovavam Dilma, e seu governo registrava um formidável índice de 62% entre “ótimo” ou “bom”. As áreas mais bem avaliadas eram “combate à fome e à pobreza” (62%), “combate ao desemprego” (56%) e “meio ambiente” (52%) .
A presidente é popular e as políticas sociais são seu cartão de visita. Questões estruturais não têm alcance imediato e, no Brasil, culturalmente, o futuro sempre esteve muito distante. Dada a composição social do eleitorado, eleitoralmente, o governo acerta em cheio. Mas, só isso não define o estadista.
Durante a campanha eleitoral, Dilma foi uma revelação: portou-se extraordinariamente bem para uma iniciante. Preparada pela genialidade de João Santana e aconselhada pela experiência de Lula, favoreceu-se das circunstâncias econômicas e dos erros do adversário, José Serra. Mas, não se trata de uma política, na melhor acepção do termo.
Defeito? Para Max Weber e, possivelmente, para a maioria dos leitores deste artigo, sim. Mas, considerados o senso-comum, o universo político do país e o desgaste causado por inúmeros escândalos, é possível que não. Dilma é bem-vista como uma gerente competente e isto é dito com orgulho e presunção.
O sucesso de Dilma reside na confluência das políticas públicas do governo com a popularidade de Lula, em seu perfil técnico e no sentimento antipolítico da classe média, sobretudo. Sua aura é da gerente resoluta, “tecnocrata competente e honesta”, como assinalou Delfim Netto . Executiva zelosa que não se envolve com o comum dos políticos, promove “faxinas” e não pactua com a corrupção.
Para a ex-senadora Marina Silva, a “apologia do gerente” se tornou, “talvez, um erro de quem fez sua campanha” , a campanha de Dilma. Engana-se Marina. Eleitoralmente, a “apologia do gerente” tem enorme apelo popular. Transforma Dilma num símbolo político de desvalorização da política e mitificação do espírito técnico. É aprovada em níveis até mais elevados que os de seu antecessor. Na verificação dos desafios históricos de seu governo, porém, percebe-se que isto não basta.
Trata-se de um governo que se ressente de política e de um projeto que, por falta disto, refugia-se no passado do nacional-desenvolvimentismo, tecnocrático e autocrático, assemelhado ao estilo Geisel.
Isto transparece no estilo de “governança” da presidente. Não há debates – só muito recentemente, para acomodação do PMDB que se agiganta, a presidente tem prometido rearticular o Conselho Político do governo. Não há integração na elaboração dos diversos grupos em torno de um núcleo capaz de gerir a política mais ampla com vistas ao futuro.
Uma miríade de núcleos, mais ou menos dispersos e pouco conectados entre si, dependentes do acesso direto à presidente da República, se estabelece. A presidente, por sua vez, intervém e controla, elabora e avalia, propõe e decide. Ela centraliza. Como pode estar acima e ser parte, ao mesmo tempo?
Todo governo costuma ser dirigido por um pequeno grupo capaz de tomar para si a responsabilidade de decisão política estratégica. Mas, sob Dilma é difícil identificá-lo com clareza. Quem compõe o núcleo-duro deste governo? Há multiplicidade de grupos, com vários núcleos, esferas diversas e esparsas que se organizam por áreas ou por facilidade de aproximação com a presidente. Pessoas a quem Dilma eventualmente escuta e outras a quem dá ordens. De todo modo, grupos com pouca conexão entre si.
Esses grupos estariam, por exemplo, na 1) formulação e operação de políticas de desenvolvimento; 2) na articulação política com setores sociais; 3) no relacionamento sempre tenso e precário com o Congresso Nacional; 4) na pressão de operadores políticos independentes; e 5) no aconselhamento, também independente, de influentes interlocutores para a política econômica e a gestão .
Mas, compreendida a verdadeira dimensão da Política, é provável que sua falta esteja a cobrar um preço elevado, e este seja – se não o principal – pelo menos um dos elementos mais perniciosos que fazem o governo patinar no esgotamento de instrumentos antigos, na incapacidade de descoberta e na viabilização de novos caminhos.
A experiência de Dilma com a política, enquanto atividade voltada à elaboração mais ampla do que as questões setoriais, vinculada ao debate parlamentar, à negociação com a sociedade e ao consenso, é pequena. Executiva, Dilma é um quadro vinculado ao fazer, não ao negociar e articular. Recentemente, foi aconselhada por Lula a buscar a sociedade, receber políticos, ouvir o movimento sindical. Ainda assim, pergunta-se, para tecer que tipo de consideração? Pode ficar emparedada pela pressão eleitoral e pelas pautas corporativas.
Dilma montou um governo à sua imagem e semelhança: técnico, mas de baixa densidade política; comprometido pela convicção, com diagnóstico controverso. Isto se agravou após a (segunda) desgraça de Antônio Palocci – que iniciou o mandato de Dilma na estratégica Casa Civil da Presidência da República, mas não resistiu aos primeiros seis meses de governo e fogo amigo.
Ao qualificar a presidente como “uma tecnocrata competente, trabalhadora”, irônico e ao mesmo tempo sincero, o ex-ministro Delfim fala nas entrelinhas: uma “tecnocrata”, competente e trabalhadora, não é uma política. A ação de Dilma, pelo tempo que lhe resta deste ou de mais um eventual próximo mandato, dará a resposta se isto basta. Ainda assim, é irresistível voltar à Max Weber:
“Quem tornou possível o absurdo inaudito da tal situação? Enquanto tais acontecimentos forem passíveis de repetição, a nação não pode esquecer que foi a burocracia conservadora a responsável por este estado de coisas: em momentos decisivos ela colocou burocratas nos postos-chave do governo, os quais deviam, contrariamente, ser ocupados por políticos – homens [ou mulheres, no caso] experimentados em pesar os efeitos de declarações públicas, homens com o senso de responsabilidade do político e não com o sentido do dever e de subordinação do burocrata, que é adequado em seu lugar, mas pernicioso em política” (Weber, 1980: 61)
O burocrata, movido pela ética da convicção, é capaz de, em nome de suas certezas, insistir nos erros. O político, da ética da responsabilidade, voltado a fins, revê meios, renegocia processos. Independentemente de sua figura, bem-vista, o governo da presidente e o país carecem de política e de políticos, na acepção pura e gloriosa do termo. O país e o governo não sofrem pelo excesso, mas pela falta de política, o que parece ser o pior da crise.
Antecipação eleitoral
Exaurido, o presidencialismo de coalizão apresenta ainda maiores dificuldades na alocação de recursos para uma “superbase”, grande, mas pouco operacional. A criação do Ministério da Pequena e Micro Empresa, de forma a acomodar o PSD, de Gilberto Kassab, ou a tentativa de incluir Gabriel Chalita, do PMDB, no Ministério da Ciência e Tecnologia são apenas exemplos. Tanto Kassab como Chalita entraram na mira de demais aliados. Difícil acomodar parceiros que, nas bases, conflitam e, na cúpula, disputam o mesmo espaço.
Mais e mais aliados se ressentem com o quinhão atribuído. Ou se revoltam e passam a buscar brechas na oposição – como é o caso de uma parte do PDT – ou, por outro lado, ao conquistar visibilidade, se animam à carreira solo. O esforço de Lula em garantir a vice-presidência de Dilma, em 2014, ao governador de Pernambuco, Eduardo Campos, foi uma tentativa de aplacar a insatisfação de uma estrela ascendente, cujo sucesso, aliás, teve colaboração dos recursos do Governo federal. Lula buscou conciliar os interesses. Mas, buscar saídas num bloco tão amplo e heterogêneo é como passear por um labirinto.
Ao PMDB não convém ceder o posto de Michel Temer para que Campos o ocupe com foco em 2018 e total autonomia em relação ao PMDB. Onde não há sintonia de objetivos e visão de futuro, sobram disputas e armadilhas. Isto não parece ser diferente na oposição.
Assim como o fora na economia – na divergente questão dos juros envolvendo as contradições entre diversos setores –, a banda política do bloco no poder apresenta rachaduras estruturais. A antecipação eleitoral, por precaução, surge quase naturalmente: não há preocupação com a transformação, mas há que cuidar do projeto de poder antes que alguém se adiante.
Eduardo Campos e Marina Silva são ainda duas incógnitas. Vistos com olhos de hoje, suas chances são limitadas. Mas, ninguém saberá dizer para onde o insuficiente crescimento econômico, a crise mundial e os conflitos internos da base aliada levarão o governo. Sob quais circunstâncias concretas se dará a eleição de 2014?
Tanto Lula e Dilma quanto FHC e Aécio Neves sabem disso. Em condições normais, esses serão os principais adversários no ano que vem, mas quem poderá garantir que as condições serão normais?
PT e PSDB preferem um ao outro como adversários, são velhos conhecidos. Adiantam-se para ocupar espaços antes que Campos ou Marina o façam. Para o PT, são candidaturas absolutamente indesejadas. Para o PSDB, podem ser interessantes, mas são também muito perigosas. Além do fato de a polaridade PT-PSDB ter cansado espíritos os mais pacientes, há tucanos que adorariam ver Aécio devidamente cristianizado.
Conclusão
À falta de bons estrategistas e operadores, tanto Dilma como Aécio recorreram aos últimos líderes de seus campos, Lula e Fernando Henrique. É a prova de que a renovação foi precária. Voltamos ao passado dos anos 1990, sabendo que a agenda daqueles tempos já não nos serve – tampouco a dos anos 1970, do nacional- desenvolvimentismo, servirá. E, se vierem a servir, é porque regredimos terrivelmente. Teremos que recomeçar?
Não encarar os desafios históricos de um país significa tê-los que encarar mais tarde, a custos maiores. A falta de política reside na falta de visão histórica. E ela está por todo lado: difícil imaginar algo diferente na oposição que, em duas eleições (2006 e 2010), foi incapaz de expressar o novo, o avanço. Seu atual candidato já se precipita em repetir o insuficiente discurso do choque de gestão. Mais um gerente?
Se algum tipo de choque for necessário, seria, antes, um choque de política: um estadista capaz de perceber, articular e conduzir os desafios históricos. Boa gestão é obrigação, mas não basta. O que se procura é mais do que um síndico.
Alguns analistas afirmam que não há, no Brasil, diferenças ideológicas entre os partidos. Com efeito, de um modo geral, eles vocalizam as mesmas platitudes, buscando apoio de um público médio, identificado pelas pesquisas: uma identidade vaga. Mas, como se vê, mesmo para cumprir uma agenda superficial e insatisfatória, há caminhos diversos: pode-se olhar para o passado dos anos 1990 ou para o passado ainda mais distante, a década de 1970. Quem olhará para o futuro?
A simples permanência de personagens como FHC e Lula no centro do debate revela um enorme desconcerto: 1) infelizmente, ainda pouco se avançou para além dos erros e acertos de seus governos; 2) há uma crise, se não um vazio, de liderança; 3) não tem havido renovação de qualidade num sistema que tem se organizado por seleção adversa de quadros; 4) não há criatividade nem elaboração de alternativas; 5) a tecnocracia não é e nem substitui a política; e 6) latente, o desafio histórico está suspenso.
Se isto tudo não compõe um sério e preocupante cenário de crise, o que mais seria necessário para admiti-lo: o desemprego e a volta da inflação? Precisaremos piorar para, então, melhorar? A melhora se dará pela pressão das circunstâncias – sem mudança estrutural – ou se fará de uma vez por todas? As respostas a essas questões, por políticas, estão no futuro.
Bibliografia diretamente citada:
wEBER, Max. Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída: uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária. In: Os Pensadores. Tradução de Maurício Tragtenberg. São Paulo: Abril, 1980.
CARLOS MELO é cientista político e professor Sênior Fellow do Insper. Escreve semanalmente no canal Headline (carlosmelo.headline.com.br)
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