02 abril 2016

Dilma, o ‘dedazo’ de Lula e a reforma política

O dedazo vem da política mexicana e tem a ver com a escolha do candidato a presidente do Partido Revolucionário Institucional, o antes todo poderoso PRI. O dedazo ocorre quando o presidente indica o candidato do partido à eleição presidencial. Trata-se de uma escolha que não passa por eleições internas ou sequer por discussões públicas. É a autoridade mais poderosa do partido, obviamente o presidente no exercício de seus plenos poderes de mandatário máximo da nação, que, depois de conversar e consultar aos que ele julga pertinentes, indica o nome do candidato.

O dedazo vem da política mexicana e tem a ver com a escolha do candidato a presidente do Partido Revolucionário Institucional, o antes todo poderoso PRI. O dedazo ocorre quando o presidente indica o candidato do partido à eleição presidencial. Trata-se de uma escolha que não passa por eleições internas ou sequer por discussões públicas. É a autoridade mais poderosa do partido, obviamente o presidente no exercício de seus plenos poderes de mandatário máximo da nação, que, depois de conversar e consultar aos que ele julga pertinentes, indica o nome do candidato. Este procedimento de escolha foi adotado por Lula quando apresentou Dilma, em 2009, ao eleitorado brasileiro. Há quem hoje considere que o grande erro de Lula – para alguns poucos o único erro – foi ter indicado Dilma. Segundo esta visão, qualquer deputado federal do PT ou senador teria governado melhor do que Dilma. Ainda nesta linha de raciocínio, considera-se que a atual presidente não teve a socialização política necessária para ocupar o cargo mais elevado de nosso edifício político. Antes de 2010, ela nunca havia participado como candidata de uma campanha eleitoral. Isto significa que ela nunca tinha buscado levantar recurso de campanha, feito discursos para obter votos, fechado acordos com líderes sindicais ou de outros movimentos sociais para obter votos e todos os demais procedimentos necessários para ser eleito.
Nunca tendo disputado uma eleição até 2010, consequentemente Dilma nunca pisou em um parlamento como representante do povo. Todo e qualquer deputado quer apresentar e aprovar projetos de lei de sua própria autoria. O que ele descobre na primeira tentativa de fazer isso é que ele terá de negociar o seu projeto. É impossível que ele seja aprovado sem modificações. Entra em cena a barganha. Tais modificações serão feitas como condição para que seus pares no parlamento o apoiem nas comissões legislativas e no plenário. Por outro lado, estes mesmos pares cederão nos projetos de lei de sua autoria. Estamos diante do mais genuíno aprendizado político, pelo qual Dilma não passou antes de se tornar presidente.
Em 2010, a força eleitoral de Lula era incomparável. Ele tinha nas mãos, como foi possível constatar na eleição, o poder de indicar e eleger quem ele quisesse. E ele quis Dilma. Dilma também poderia ter sido a escolhida do partido em um processo amplo, aberto e democrático de primárias, não necessariamente igual ao norte-americano, mas certamente muito diferente de um dedazo. Tendo sido assim, ela teria debatido com concorrentes, exposto suas visões, negociado e fechado acordos com alas do partido e agido politicamente e eleitoralmente para vencer a escolha aberta. É possível imaginar que a Dilma escolhida por um processo democrático poderia ter sido diferente da Dilma indicada pelo dedazo. Nunca saberemos, mas o processo de escolha, em geral, tem impacto sobre seu resultado. Processos diferentes acabam por apresentar resultados diferentes.
Lula não foi o primeiro e nem será o último a cair na tentação do dedazo. Maluf escolheu Pitta para ser o seu sucessor na Prefeitura de São Paulo. César Maia escolheu Conde para o mesmo cargo no Rio de Janeiro. Marconi Perillo fez o mesmo em Goiás, quando indicou Alcides Rodrigues. Podemos multiplicar os exemplos e narrar seus desfechos. É provável que a maioria dos casos nos conte uma história ruim, ainda que não trágica. O escolhido pelo dedazo não passa pela competição política partidária que faz o que os norte-americanos chamam de teste de liderança. Vencer uma eleição aberta é vencer um teste de liderança.
Este procedimento de escolha é irmão siamês da falta de vida partidária. Os partidos são organizadores de interesses. Supõe-se que em um partido vivo haja participação interna, discordância, reuniões, presença de militantes e simpatizantes, eleição de delegados para convenções que tenham poder efetivo de decisão. Supõe-se também como requisito para o vigor dos partidos que existam discordância e correntes divergentes de pensamento, que se alinham mais em função de ideias do que por conta de simpatia com este ou aquele líder. Na verdade, o mais importante para que o partido seja uma entidade realmente viva é que seus militantes e simpatizantes tenham a palavra e o voto final nas decisões mais relevantes. Sem que isto exista, o partido passa a ser apenas um instrumento de ação de suas elites e, eventualmente, de seu líder máximo.
Reforma política
Convencionou-se afirmar que a reforma política é a mãe de todas as reformas. Quanto a isto, no primeiro semestre de 2015, a Câmara dos Deputados, sob a presidência oposicionista de Eduardo Cunha, votou algo que à época se denominou de reforma política. É provável que o leitor não se lembre de quais foram os principais resultados desta votação. Trata-se de algo nada lisonjeiro, deva-se dizer, para uma mãe. Fosse a reforma tão importante assim, todos teríamos em mente que o que foi aprovado terá impacto decisivo no futuro da condução de nosso país.
A ideia de que a mudança das instituições políticas precede mudanças mais profundas, todas elas para melhor, é parte do pensamento mágico. Afirma-se haver no mundo uma causalidade que existe apenas no pensamento. A forma mais grosseira de pensamento mágico é a superstição. Não convém, por exemplo, ao sair de um lugar, o convidado abrir a porta, mas sim o anfitrião. Este procedimento deixa aberta a possibilidade de que o convidado volte no futuro. Porém, há muitos outros raciocínios bem mais sofisticados que também são um pensamento mágico. A política (assim como o futebol) é um campo fértil para isto. Não há qualquer evidência empírica de países que tenham melhorado aspectos relevantes de sua vida econômica, social e ética depois de fazerem uma reforma política.
No Brasil, há liberais que ao mesmo tempo defendem a redução do tamanho do Estado e a adoção do sistema parlamentarista de governo. Eles não sabem que existe conexão entre uma coisa e outra. A literatura acadêmica de ciência política encontrou uma robusta causalidade entre sistema e governo e tamanho do Estado. Não importa a régua de medição – pode ser gastos governamentais como percentual do PIB, pode ser per capita, taxa de funcionários públicos por mil habitantes. O governo é sistematicamente maior nos países parlamentaristas e sistematicamente menor nos países presidencialistas. Imaginemos que alguém deseje reduzir o tamanho do governo e para que isto aconteça venha a prescrever a adoção do parlamentarismo. Tratar-se-ia de um erro crasso.
Vemos com frequência a demanda pela mudança em nosso sistema eleitoral. Os mais radicais acham que deveríamos abandonar totalmente o sistema proporcional em favor da eleição majoritária para deputados. Tal sistema é mais conhecido no Brasil como distrital. Eles esquecem que o sistema distrital tem críticos ferozes onde é adotado em sua forma pura, mais notadamente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Mais do que isto, ignoram o fato de dezenas de países já terem abandonado o sistema distrital em favor do proporcional, ao passo que apenas poucos países fizeram o oposto. Isto acontece porque o sistema proporcional incorpora mais interesses na representação institucional. Assim, passar do distrital para o proporcional é passar de uma incorporação menor para outra maior. É uma trajetória que conta com mais apoio político do que seu oposto, qual seja, a redução dos segmentos incorporados na representação parlamentar.
Os defensores ardorosos de uma reforma política não sabem apontar que reforma seria essa. É fato que não estamos em um mundo governado por deuses que pairam acima dos interesses. Portanto, qualquer reforma política é feita em função dos interesses dos próprios políticos. É uma reforma que demanda maioria constitucional. No mínimo três quintos de deputados e senadores precisam aprová-la em duas votações. A adoção da reeleição beneficiava claramente quem estava no poder. Quando feita, ela permitia que os que então estavam no governo se recandidatassem. Não por acaso, tratou-se de uma iniciativa liderada por Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente foi capaz de formar a maioria qualificada exigida para mudanças constitucionais e aprovou a reeleição.
Não há viva alma que diga que a adoção da reeleição foi uma profunda reforma política. Mas foi. É interessante perceber que uma grande reforma institucional, que teve impactos muito relevantes na adoção de políticas públicas, jamais foi vista pelos analistas, jornalistas e atores políticos como tendo sido uma reforma política. Acadêmicos brasileiros já demonstraram que a reeleição, combinada com a Lei de Responsabilidade Fiscal, fez com que não houvesse mais ‘malufs’. Isto mesmo. Maluf é o emblema, mas está longe de ser o único caso, obviamente, de comportamento fiscalmente irresponsável na ausência de reeleição. Claro, gastava-se o que tinha e o que não tinha, endividava-se inconsequentemente o setor público pela única razão de que o próximo administrador não seria ele próprio. E, pior ainda, teria que sanear as finanças, um processo que poderia levar anos, deixando tudo pronto para um novo período de irresponsabilidade fiscal. A reeleição acabou com isto.
Vontade versus  ação
Há uma antiga discussão acerca do papel da intenção na formação do mundo, das instituições, das sociedades. Há os que acham que a ordem social é resultado da vontade. Não por acaso, nossos jornais estão repletos de artigos afirmando que a continuidade dos problemas brasileiros tem a ver com a falta de “vontade política”. Esta, porém, não é a única forma de ver o mundo. Alternativamente, há os que acreditam que a ordem social é resultado tão somente da ação humana. Neste caso, a vontade pode seguir em uma direção, mas o resultado acaba sendo o oposto desta direção, porque é condicionado pelas ações.
Dilma quis, em seu primeiro mandato, reduzir os juros básicos da economia. A vontade do governo era simples e clara: melhorar as condições de vida da maioria dos brasileiros. Juros menores fortalecem o mercado de crédito, mais crédito resulta em mais consumo e está constituído o círculo virtuoso. O futuro estaria garantido com juros mais baixos. Os efeitos positivos seriam de curtíssimo prazo. Porém, mas não menos importante, de longo prazo. Nada mais estranho do que viver em um país que já há anos detém o título de campeão, ou perto disso, das taxas de juros. Não faltou vontade política ao governo brasileiro. A vontade levou Dilma a agir, e a ação resultou, a partir de 2015, na maior recessão da história do Brasil.
Todos os dias a vontade de milhões de pessoas no mundo inteiro é sair do trabalho e chegar em casa o mais rápido possível. Por conta disto, elas saem ao mesmo tempo e ficam engarrafadas. A vontade é a de chegar rapidamente em casa, mas as ações as levam a ficarem presas no trânsito. Um exemplo prosaico pode ser combinado com um clássico. A ética protestante de Max Weber era somente um meio para que os fiéis glorificassem a Deus. A doutrina da predestinação, determinando desde sempre quem iria para o céu e quem vai para o inferno não deixava espaço para a compra da salvação por meio de obras. Restava ao fiel protestante buscar a sensação de que ele estaria salvo, e esta sensação poderia ser obtida glorificando a Deus por meio do trabalho. A vontade era uma, mas as ações resultaram no moderno capitalismo.
O conflito entre vontade e ação como princípios que regem a ordem social está muitas vezes sintetizado no velho ditado de que o inferno está cheio de boas intenções. E isto é particularmente verdadeiro quando se pensa em reforma política. O caso clássico é o da Revolução Francesa. A crítica conservadora ao fim do Antigo Regime, na França, tem a ver com a incapacidade dos revolucionários em modificar inúmeras instituições do Antigo Regime. Mais do que isto, várias mudanças foram desfeitas porque proporcionaram o resultado oposto ao que se desejava. O sistema eleitoral é um exemplo e as divisões territoriais, outro. Os exemplos podem ser multiplicados, como foi o caso do calendário e também da religião estatal criada para substituir o catolicismo. Nada disso funcionou. A vontade foi incapaz de construir um mundo que fosse sua imagem e semelhança.
Oliveira Vianna se tornou um clássico quando se trata de avaliar os efeitos não antecipados de escolhas institucionais. Ele foi um crítico feroz da adoção de instituições do liberalismo político, tal como eleições livres e diretas para cargos públicos, em um país tão autoritário como era o Brasil da primeira metade do século XX. Para ele, a superposição entre instituições liberais e uma sociedade autoritária resultava no pior dos mundos, pois acabava por reforçar o autoritarismo.
O que está em jogo quando se trata de reformar instituições são modalidades de saber. De um lado, há o saber de poucos indivíduos, ou até mesmo de somente um indivíduo como foi o caso de Lula, não quando da reforma de instituições, mas sim quando escolheu Dilma. De outro lado, há o saber das gerações, que em geral assume a forma da cultura ou da história. Por exemplo, a democracia no Brasil coincide com o sistema presidencial de governo. O fato de o presidencialismo vigorar em nosso país há tanto tempo diz alguma coisa. Somos presidencialistas tanto do ponto de vista histórico, quanto cultural. Tancredo Neves foi primeiro-ministro na curta experiência parlamentarista que tivemos nos anos 1960. Na época, ele diagnosticou que o parlamentarismo funcionou como se fosse o presidencialismo: inúmeras vezes, o parlamento votou contra as propostas do governo, mas o governo não caiu.
O que aprendemos com tudo isso é que quando se trata de reforma institucional – e a reforma política é uma delas – é preciso ser prudente. É assim que reformas desta natureza são aprovadas, com poucas exceções, depois de um longo processo de debate e amadurecimento. É demandada também maioria qualificada. Uma exceção já mencionada foi a adoção da reeleição. Exceção em quase tudo: foi pouco debatida e foi resultado mais da vontade do que da ação. Porém, foi uma decisão que não alterou todo o sistema, não abalou o edifício institucional. Tratou-se de uma mudança incremental, prudente, que poderia ser revista caso seus efeitos fossem o oposto dos desejados.
Conflito político e reformas
Brasil de 2016 é um país profundamente dividido. Olhemos para a esfera parlamentar e veremos que o governo é capaz de vencer algumas votações, desde que não seja demandada a maioria de três quintos. A oposição também é capaz de vencer. Igualmente, desde que ela não tenha que alcançar uma maioria qualificada. A gênese desta divisão tem a ver com algo inédito em nossa história recente, o fato de o presidente da Câmara dos Deputados fazer oposição à Presidência da República.
Fernando Henrique e Lula passaram por períodos de crise política. O primeiro em seu segundo mandato e Lula durante 2005, quando emergiu o escândalo do mensalão. A crise que se abateu sobre o governo Fernando Henrique teve muito a ver com o rearranjo da aliança, em período de aprovação presidencial em baixa, visando à eleição de 2002, quando o presidente não mais poderia ser reeleito. Quem viveu o período tem na memória a antológica disputa entre os senadores Antônio Carlos Magalhães, do PFL, e Jáder Barbalho, do PMDB. O conflito entre os dois era o conflito entre dois partidos sócios do PSDB no governo. Cada qual queria mais espaço junto a quem seria o futuro candidato tucano a presidente. O PFL acabou por sair do governo apoiando inicialmente Roseana Sarney e, em seguida, Ciro Gomes. A crise política, de apoio parlamentar, teve consequências eleitorais importantes. O PMDB ficou com Serra na eleição de 2002.
Lula venceu sem o PMDB e governou sem ele até a crise política do mensalão. Há hoje um diagnóstico relativamente consensual de que, para Lula, acabou sendo fundamental que o PMDB entrasse em seu governo para conferir-lhe a saída da crise. Isto aconteceu concomitantemente à melhoria da aprovação do governo no final de 2005 e início de 2006.
Ninguém governa o Brasil sem o PMDB. Nem governa, nem faz reforma política. As últimas seis eleições presidenciais tiveram o PT e o PSDB com os dois candidatos mais votados. Fernando Henrique derrotou Lula duas vezes. Lula derrotou Serra e Alckmin. Dilma derrotou Serra e Aécio. Porém, todos os eleitos precisaram do PMDB para governar. O PT ocupa a centro-esquerda do espectro político. O PSDB ocupa a centro-direita. Cabe ao PMDB ocupar o centro. Todos os países multipartidários – Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, França – têm partidos de centro. A grande diferença entre o Brasil e eles é que o nosso partido de centro, o PMDB, é imenso. O PMDB é o maior partido de centro do ocidente. Brigar com o PMDB é brigar tanto com a governabilidade, quanto com as chances de se obter maiorias para realizar reformas, quaisquer que sejam.
Os estudiosos do nosso sistema político sabem a enorme importância das presidências da Câmara e do Senado. Ambos controlam a agenda legislativa. Controlar a agenda legislativa é muita coisa. O Poder Executivo depende de suas decisões. Por exemplo, a tramitação da iniciativa legislativa que reduz a maioridade penal foi iniciada há 22 anos. Ela estava parada, esperando que um presidente da Câmara a colocasse em votação, e isto aconteceu em 2015. Alguns podem se perguntar por que não teria sido votada antes. Uma resposta possível é que os presidentes da Câmara que antecederam Eduardo Cunha, a pedido da presidência da República, a engavetaram. Há muitos exemplos como este.
O projeto de lei da terceirização da mão de obra começou a tramitar na Câmara dos Deputados há 11 anos, mas foi rapidamente aprovado pela Câmara em 2015. É bem possível que os presidentes da Câmara anteriores tenham, a pedido do poder Executivo, deixado este projeto parado. As contas dos governos Collor, Fernando Henrique e Lula não haviam sido votadas até agora pela Câmara. Ora, já se vão mais de vinte anos desde que Collor deixou a presidência e somente agora a sua gestão contábil foi votada e aprovada na Câmara. Isto aconteceu por conta do poder de agenda legislativa nas mãos do presidente da Câmara.
A PEC da bengala, que aumentou para 75 anos de idade a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), impedindo Dilma de indicar cinco novos ministros nos próximos anos, estava tramitando no Poder Legislativo desde 2005. Ela foi colocada em votação por Eduardo Cunha e aprovada no semestre passado com os votos do PMDB. A Câmara dos Deputados também aprovou em 2015, por 445 deputados federais, em primeiro turno, a PEC 445, que vincula os salários dos advogados públicos federais, procuradores estaduais e municipais e delegados da Polícia Federal e da Polícia Civil dos estados aos salários dos ministros do STF. Se esta PEC for finalmente aprovada, isto acarretará gastos adicionais acima de R$ 2 bilhões, não apenas para o governo Dilma, mas para todos os presidentes que a sucederem. Esta PEC estava na Câmara dos Deputados desde 2009 e nunca tinha sido colocada em votação. Isto foi feito porque Eduardo Cunha é oposição ao governo.
Fernando Henrique, Lula e Dilma em seu primeiro mandato tiveram presidentes da Câmara afinados com eles. Presidiram a Câmara durante os governos Fernando Henrique: Luis Eduardo Magalhães, do PFL, Michel Temer, do PMDB, e Aécio Neves, do PSDB. Todos eles foram eleitos com o apoio do Palácio do Planalto. Foram presidentes da Câmara nos governos Lula: João Paulo Cunha, do PT, Aldo Rebelo, do PC do B, depois de Severino Cavalcanti, eleito em fevereiro e levado a renunciar em setembro de 2005, Arlindo Chinaglia, do PT, e Michel Temer, do PMDB. Todos eles foram escolhidos pelos seus pares com o apoio do Palácio do Planalto. No primeiro governo Dilma, os presidentes da Câmara foram Marco Maia, do PT, e Henrique Eduardo Alves, do PMDB; ambos tiveram o apoio da presidência. Eduardo Cunha é a exceção a esta regra, a regra de que o presidente da Câmara é eleito com apoio do presidente da República e que ambos agem de forma afinada.
O bom relacionamento entre a Presidência da República e a Presidência da Câmara é o que permite que projetos que contrariem os interesses do Palácio do Planalto fiquem anos a fio engavetados nas casas legislativas. Foi o que ocorreu com a maioridade penal, terceirização, PEC da bengala e a PEC 445, até que Eduardo Cunha tenha decidido colocá-los para votar.
É difícil imaginar que uma situação como esta seja um terreno fértil para uma reforma política legítima e duradoura.
Os  eternos presidentes de partidos e a reforma política
Quando se menciona a reforma política, todos pensam em mudar o sistema eleitoral, adotando-se algum tipo de voto distrital – eventualmente o parlamentarismo é mencionado ou outras modificações de grande envergadura. Como mencionado anteriormente, ninguém pensa na adoção da reeleição como uma importante reforma política. Tratou-se de uma modificação pequena, pontual, porém com enormes consequências positivas para o sistema. Ninguém imagina que alterar a vida interna dos partidos políticos possa vir a ser uma imensa reforma política.
Os partidos políticos são organizações privadas. Isto significa que eles estão livres para se organizarem, dentro de determinados limites, como quiserem. Todavia, os nossos partidos são fortemente oligarquizados. O presidente tem grande poder, em muitos casos, até mesmo de dissolver a direção partidária e escolher outra inteiramente diferente. Há o instituto da direção provisória, que só é provisória de nome, podendo durar por toda a existência do partido. Sua natureza legal é um facilitador para a dissolução.
Daniel Tourinho é o presidente do PTC desde sua fundação, nos idos de 1990. Levy Fidelix é o presidente do PRTB desde sua fundação, em 1994. Eymael é o presidente do PSDC desde sua criação, em 1997. Zé Maria preside o PSTU desde seu aparecimento, em 1993. Ivan Pinheiro é o presidente do PCB desde seu registro, em 1996. Rui Costa Pimenta é a autoridade máxima do PCO desde sua fundação, em 1995.
Alguns poderiam argumentar que estes exemplos são infelizes porque tais partidos representam pouco ou quase nada do eleitorado. Porém, Roberto Freire é presidente do PPS desde sua criação, em 1992. Michel Temer preside o todo poderoso PMDB desde 2001, já há mais de 15 anos. Há como argumentar que o PT vem sendo presidido por Lula, de fato, desde sua criação. O controle do PSDB vinha sendo exercido até pouco tempo atrás pela elite paulista do partido. A título de exemplo, a eleição de 2016 para prefeito será a primeira vez nos últimos vinte anos que os tucanos terão como candidato a um cargo majoritário nem Serra, nem Alckmin.
A longa permanência no poder de nossos dirigentes partidários contrasta fortemente com a rápida renovação dos candidatos a presidente nos Estados Unidos ou da mudança de liderança dos partidos britânicos que perdem a eleição geral. A última vez que um partido repetiu um candidato derrotado ocorreu com Nixon nos idos dos anos 1960. No Reino Unido o resultado de uma eleição de primeiro-ministro é anunciado e, no momento seguinte, o presidente do partido perdedor abre mão do cargo para abrir caminho para a renovação. Isto acontece também na França e na Alemanha. No Brasil, é possível que um partido perca várias eleições em sequência, mas sua direção permaneça sendo a mesma. Foi assim com Lula, no PT, e com Rodrigo Maia, no DEM.
O processo de escolha do candidato a presidente nos levou até Dilma. A grande reforma política que precisamos é uma que obrigue os partidos a terem uma verdadeira vida interna. Impedir ou dificultar o dedazo evitaria que fossemos governados por pessoas que não tivessem passado por um verdadeiro teste de liderança. Não devemos cultivar a ilusão de que os líderes máximos de cada partido venham a propor uma legislação que, por exemplo, institua as prévias como forma de escolha dos candidatos. A vontade política dos principais líderes aponta na outra direção. Todavia, é possível que uma drástica redução do número de partidos viesse a levar aqueles que restassem a ter uma vida partidária interna mais vigorosa.
Atualmente, quando algum nome desponta eleitoralmente, o passo seguinte é a fundação de um partido “para chamar de meu”. Marina e Kassab são os casos mais notórios. Os dois se tornaram muito importantes eleitoralmente e acabaram por trabalhar com afinco para fundar legendas que ficassem sob seu estrito controle. Diz-se corriqueiramente que a Rede é o partido da Marina e o PSD é o partido do Kassab. A fundação de novas legendas substitui a competição interna dentro de poucas existentes.
Imaginemos um cenário diferente, no qual fosse muito difícil criar e manter novos partidos. Vamos supor que passássemos de 35, que é o número de partidos registrados junto ao TSE, para apenas seis. Se isto ocorresse, todos os políticos hoje espalhados em inúmeras siglas teriam que passar a conviver em algumas poucas. Isto criaria um enorme incentivo para que a fila andasse – a fila de presidentes de partidos e a fila de candidatos derrotados. Em tal cenário, o dedazo seria viável, mas a sua prática seria questionada. É possível que, com o passar do tempo, sob a pressão de novos líderes em busca de espaço em suas legendas, sistemas de escolha mais abertos, públicos e democráticos venham a ser adotados. O líder máximo dificilmente seria o árbitro legítimo das disputas internas.
A existência de 35 partidos é injustificável. Não há 35 ideologias diferentes ou mesmo 35 propostas inteiramente diversas. Além disso, esta imensa quantidade de partidos torna os custos de transação mais elevados tanto nas negociações políticas dentro das casas legislativas (ainda que haja pouco menos de 35 partidos representados) quanto para o eleitor, no momento que precisa entender minimamente como funciona o sistema. Sendo assim, reduzir o número de partidos seria salutar em diversas dimensões do funcionamento do nosso sistema, mais salutar do que adotar o presidencialismo ou mudar o sistema eleitoral.
Nossos partidos, hoje, não conhecem internamente a contestação. Quem no PT viria a público para questionar a liderança de Lula? Obviamente, ninguém. A pena para a dissensão seria ter a vida partidária e eleitoral dificultada, assim como o acesso aos recursos de poder. Porém, este exemplo pode ser extrapolado para todos os demais partidos. A falta de desafiantes internos para os presidentes de partidos, ou para quem os lidera de fato, é algo generalizado. Convenhamos que em se tratando de política não seja algo louvável.

A dificuldade de uma reforma que reduza o número de partidos está na força dos partidos pequenos que hoje têm representação na Câmara dos Deputados. Tudo indica que, juntos, eles tenham poder de veto. O mundo é mais resultado das ações do que da vontade, lembremos. Ações aleatórias nos deixaram com uma miríade de pequenos partidos que hoje, unidos, formam o grande partido que impede uma mudança crucial em nosso sistema. A mudança que nos daria alguma esperança de limitarmos os efeitos negativos do dedazo em nossa vida pública.


ALBERTO ALMEIDA é diretor do Instituto Análise, empresa de consultoria, pesquisa e estudos sobre o Brasil. É articulista do Jornal Valor Econômico, autor do best-seller “A Cabeça do Brasileiro” e de diversos livros que abordam os valores e comportamentos dos brasileiros. Ao longo de várias décadas de trabalho, Alberto Almeida desenvolveu uma metodologia de análise utilizando dados antecedentes e qualitativos que o diferenciam no mercado. Seu serviço é demandado por altos executivos e por instituições financeiras interessadas na dinâmica do Brasil, do consumo e da sociedade.

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