01 julho 2008

Direitos Humanos: O Debate Internacional e o Brasil

O tema dos direitos humanos apresenta crescente importância na cena internacional. A União Européia atribui centralidade à questão, explicitamente considerada prioritária para países como França e Alemanha. Por razões distintas das européias, o tema constitui preocupação de relevo para Estados Unidos e China. Nas Nações Unidas, os direitos humanos integram, juntamente com a segurança e o desenvolvimento sustentável, o tripé que estrutura sua atuação. O Brasil tem participado como ator importante nas discussões internacionais sobre o tema. No plano interno, ele constitui dimensão de relevo das políticas públicas há pouco mais de uma década.

Os Direitos Humanos no Direito Internacional

Uma breve retrospectiva histórica pode contribuir para elucidar alguns aspectos das controvérsias atuais sobre direitos humanos. No imediato pós-guerra, a criação da Onu e das instituições de Bretton Woods refletia atmosfera de visível otimismo quanto ao papel das organizações internacionais na construção de uma nova ordem. Foi nesse cenário que surgiu em 1946 a Comissão dos Direitos Humanos. Pouco mais tarde, em 1948, foi assinada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que serviria como peça inaugural e estruturante de um conjunto de normas internacionais que passaram a compor os direitos humanos no direito internacional.


A grande inovação introduzida pelos direitos humanos consistiu em transformar o cidadão em sujeito do direito internacional, embora confirmando as responsabilidades dos Estados por sua efetivação. Além da elaboração, em 1966, de dois marcos centrais – o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais –, diversos outros instrumentos internacionais foram sendo aprovados. Inspirados em grande medida em elementos da Declaração Universal, os novos instrumentos passaram a cobrir vasta gama de temas, tais como: discriminação racial; discriminação contra as mulheres; direito ao desenvolvimento; tortura; direitos da criança; abolição da pena de morte; proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes; eliminação das piores formas de trabalho infantil; direitos dos povos indígenas; proteção das pessoas contra o desaparecimento forçado; e direito das pessoas com deficiência.

A moldura jurídico-institucional dos direitos humanos constitui hoje um conjunto complexo de convenções, protocolos, declarações e outras instrumentos. Ao transcender o universo das relações entre Estados, projeta-se sobre a sociedade civil, por meio do envolvimento de vários organismos, associações, organizações não-governamentais (ONGs) e instituições de naturezas diversas, com efeitos sensíveis sobre as relações internacionais e a situação interna de países.

O contexto da Guerra Fria

O contexto da Guerra Fria, moldado pela confrontação entre as duas superpotências, fermentou rivalidades que inviabilizaram em grande medida avanços concretos na aplicação de medidas destinadas a promover os direitos humanos. Países reconhecidamente violadores de direitos humanos eram muitas vezes protegidos de penalidades previstas nos mecanismos das Nações Unidas, em função do interesse direto de uma das superpotências em defender seu aliado político e, assim, isentá-lo de condenação internacional.

Entretanto, esse padrão de comportamento durante a Guerra Fria não foi capaz de imobilizar o sistema integralmente. As exceções mais visíveis foram a punição da África do Sul, com sanções contra o regime do apartheid, e a condenação às ditaduras latino-americanas por parte da Comissão de Direitos Humanos da Onu e outros órgãos. Há reconhecimento generalizado da contribuição dos mecanismos de direitos humanos da Onu para a derrocada de regimes militares autoritários latino-americanos, nos quais prevaleciam práticas de torturas, desaparecimentos forçados, julgamentos sumários e ausência do estado de direito.

No plano conceitual, o debate sobre direitos humanos durante a Guerra Fria situava-se entre um conjunto de direitos protagonizados pelo mundo ocidental, coerente com uma tradição liberal-democrática – os direitos civis e políticos –, e outro conjunto, advogado pelo mundo socialista e apoiado pela maioria dos países em desenvolvimento, pois significavam esperança de mudança nas adversas condições de vida de suas populações – os direitos econômicos, sociais e culturais.

O contexto pós-Guerra Fria

Com a queda do Muro de Berlim, o desmembramento da União Soviética e o início de uma macroestrutura internacional unipolar, reacenderam-se as esperanças de uma nova era de maior prevalência dos direitos humanos e de monitoramento mais efetivo de violações.

No campo dos conceitos sobre direitos humanos, essa nova configuração geopolítica levou à superação do anterior antagonismo conceitual entre direitos civis e políticos versus direitos econômicos, sociais e culturais. O novo debate conceitual passou a manifestar-se sob a forma de rivalidade entre uma visão de fortalecimento da universalidade dos direitos humanos versus um olhar de preservação de identidades culturais consideradas ameaçadas por um mundo globalizado.


Uma vez mais a realidade frustrou os sonhos. O mundo começou a viver agravamento de conflitos étnicos, exacerbação de rivalidades religiosas e abundantes movimentos separatistas. No campo dos direitos humanos, sem o contraponto relativamente imobilizador da Guerra Fria, o sistema, tal qual um pêndulo, passou ao pólo oposto. Reagiu aos novos conflitos de forma a generalizar a aplicação de sanções, penalidades e condenações especificamente dirigidas a países considerados os maiores violadores de direitos humanos.

O corolário foi a proliferação das chamadas “resoluções sobre países específicos”, que criavam numerosos country rapporteurs, com a função de monitorar não as violações temáticas de direitos humanos, mas, sim, o país violador em sua totalidade. A inspiração de tais resoluções em geral não residia em circunstâncias concretas de violação de direitos humanos, mas, antes, em propósitos políticos. O resultado natural foi o desvirtuamento dos objetivos originais do sistema e sua inevitável perda crescente de credibilidade.

Essa tendência é ilustrada com eloqüência ao compararmos Cuba e Iraque. Durante quinze anos Cuba foi objeto de um “relator por país”. Em contraste, diante de tantas atrocidades cometidas no Iraque de hoje, nem sequer é ventilada a hipótese de resolução específica para o país. Outro exemplo seria a Base de Guantánamo, igualmente isenta de condenações concretas.

A tragédia do ataque terrrorista de 11 de setembro de 2001, em Nova York, foi portadora de um simbolismo ameaçador à hegemonia dos Eua e teve como corolário inflexão marcante na política norte-americana. Na visão do governo Bush, o ato terrorista visava não só destruir a imagem dos Eua como superpotência, mas também solapar os fundamentos dos valores ocidentais em seu conjunto. A resposta viria sob a forma de uma guerra global contra o terrorismo, anunciada como dimensão essencial da nova estratégia norte-americana. A política assumiu contornos em que se mesclaram ideologia, messianismo e maniqueísmo – visível na linguagem da luta contra o Eixo do Mal.
Nesse contexto, a política norte-americana subtraiu espaço ao multilateralismo, reduziu a margem para soluções negociadas e privilegiou o uso da força, o que culminou com a invasão do Iraque. Inaugurou-se nova etapa em que o mundo se distanciava de um terreno propício para o florescimento dos direitos humanos. Os Eua deixaram de ser ator principal no debate internacional sobre o tema. Como em política não há margem para espaços vazios, a União Européia e a China assumiram papel de protagonistas nos órgãos de maior relevo, como a Comissão dos Direitos Humanos.

A visível diluição da credibilidade do sistema, aliada à inédita derrota dos Eua nas eleições de 2001, determinou o fim da comissão e sua substituição, em 2006, pelo Conselho de Direitos Humanos. Sua construção institucional consistiu de laborioso e muitas vezes tenso processo negociador, envolvendo aproximadamente quarenta semanas de reuniões ao longo de um ano.

A expectativa prevalecente é a de que o novo Conselho de Direitos Humanos venha a atuar de forma mais efetiva que a antiga Comissão. Para isso, foi-lhe atribuído status institucional mais elevado. Ele não está subordinado ao Conselho Econômico e Social (Ecosoc) e sua composição é mais reduzida (passou de 53 para 47 países membros). O objetivo prioritário dessa reforma do sistema de direitos humanos das Nações Unidas é resgatar a credibilidade perdida. Para esse fim, é essencial afastar o novo Conselho de práticas de seletividade e excessiva politização – as maiores responsáveis pelo descrédito da antiga Comissão.

Essa meta prioritária vem sendo perseguida por meio da criação do Mecanismo de Revisão Periódica Universal (Upr – Universal Periodic Review), que analisa anualmente 48 Estados, de molde a avaliar num período de quatro anos 192 países, ou seja, o universo total dos membros da Onu. O Mecanismo já entrou em funcionamento e, apesar do caráter incipiente, vem merecendo reconhecimento. É mencionado por diversos analistas como o ponto fulcral, o coração mesmo do Conselho de Direitos Humanos. Os rumos do novo mecanismo poderão ditar o destino do novo órgão.

No Upr são examinadas as situações de direitos humanos de cada país, com participação irrestrita de todos os Estados membros da Onu e a presença de representantes da sociedade civil (ONGs e outras entidades) na qualidade de observadores. Importante aspecto é a transmissão ao vivo das sessões através do site da Onu. O Brasil foi escolhido por sorteio para integrar o primeiro grupo de países, tendo sido avaliado em abril de 2008.

O papel do Brasil nos fóruns internacionais

A preparação do Brasil para esse exercício de revisão exigiu coordenação entre os diferentes órgãos encarregados da formulação e implementação da política de direitos humanos em nosso país, bem como diálogo intenso com a sociedade civil. O documento elaborado pelo Brasil reflete com fidelidade os principais problemas, oportunidades, êxitos, fracassos e desafios no campo dos direitos humanos. O texto foi reconhecido, por representantes de diversos Estados e várias ONGs, como um dos relatórios mais transparentes, com indicação de casos de sucesso, mas também reconhecimento de falhas e insuficiências.

Na área de direitos humanos da Onu, o Brasil tem tido papel reconhecidamente construtivo. Traços históricos da cultura e da sociedade brasileira traduziram-se em problemas sociais que guardam semelhança com os de nações do mundo em desenvolvimento afro-asiático. Ao mesmo tempo, uma sociedade civil atuante e participativa e uma economia moderna e dinâmica aproximam-nos de países europeus e ocidentais em geral. Esse padrão multidiverso de nossa formação traz vantagens comparativas naturais no exercício de diálogo mais fluido e franco com outros países. Essas vantagens são reforçadas por uma política externa destituída de dogmatismos ideológicos.


O Brasil tem sido responsável por importantes contribuições ao sistema, como proponente de iniciativas concretas ou como articulador de consensos no âmbito do Grupo Latino-Americano e Caribenho (Grulac), junto a outros grupos regionais ou países individuais. Não são raros os casos em que logramos aproximar posições ou visões polarizadas entre a União Européia e países afro-asiáticos ou islâmicos.

Esse padrão de comportamento vê-se refletido na atuação de representantes brasileiros em instâncias da Onu. Assim, o embaixador Gilberto Saboia ocupou nos anos 1990 a presidência da Comissão de Direitos Humanos e, na qualidade de delegado principal da Conferência de Durban sobre Racismo e Discriminação, teve papel decisivo para superar a confrontação árabe-norte-americana e assegurar que a controvertida Conferência pudesse ter uma Declaração e um Programa de Ação. Na mesma linha, Paulo Sérgio Pinheiro foi membro da Subcomissão de Direitos Humanos durante muitos anos, ocupou cargos importantes como Relator Especial para países específicos (Burundi e Mianmar) e coordenou denso estudo sobre violência contra crianças no mundo. No âmbito do Comitê para a Eliminação do Racismo e da Discriminação Racial (Cerd), o órgão de maior relevo da Onu sobre o tema, o embaixador José Augusto Lindgren tem tido participação destacada.

Ao longo dos dois últimos anos, o Brasil foi o coordenador do Grulac de Direitos Humanos em Genebra. Como esse mandato coincidiu com o complexo processo de construção institucional do Conselho, nossa presença como articulador de consensos foi realçada. Em temas delicados inerentes a este processo – como a sobrevivência ou não das chamadas resoluções por países –, o Brasil contribuiu com proposta específica que, sem eliminar esse instrumento, procurava subtrair a excessiva politização e adicionar maior dose de racionalidade ao seu funcionamento.

Esse papel de construtor de consensos tem sido por vezes mal compreendido no Brasil, sobretudo quando se trata de resoluções sobre países com violações graves de direitos humanos. Alguns analistas brasileiros tendem a visualizar nossos esforços de evitar polarização – por exemplo, entre europeus-ocidentais e afro-asiáticos-islâmicos – como uma recorrente defesa destes últimos.

O equívoco que inspira tais interpretações reside na atitude reducionista de visualizar as posições assumidas por países europeus-ocidentais como sendo necessariamente portadoras da melhor modalidade de promover e proteger os direitos humanos. Não há dúvida de que em muitos casos isso ocorre, mas não sempre. Os exemplos são múltiplos. As posições de europeus-ocidentais sobre temas de racismo e discriminação racial são marcadamente obstrucionistas, como no caso concreto da preparação da Conferência de Durban em 2001 e, atualmente, na preparação da Conferência de Revisão em 2009. Temas como a abolição da pena de morte, eliminação da prática da tortura em interrogatórios e iniciativas ligadas à orientação sexual são usualmente rejeitadas por delegados norte-americanos. Iniciativas destinadas a promover os Direitos dos Povos Indígenas defrontam-se com tradicional e veemente oposição de países ocidentais como Canadá e Austrália, este último com sinais recentes de flexibilidade.

Direitos Humanos no Brasil: continuidade e transparência

A participação do Brasil no debate internacional sobre os direitos humanos respalda-se em políticas internas que se destacam por avanços cumulativos e pelo reconhecimento transparente dos problemas remanescentes perante a comunidade internacional.

A seguir, analiso, de forma sintética, aspectos da situação dos direitos humanos no Brasil. Adoto como parâmetro algumas das principais ações desenvolvidas pelo Estado brasileiro a partir de meados dos anos 1990. A escolha desse horizonte temporal explica-se pelo fato de ele coincidir com a fase de início da institucionalização dos direitos humanos no Brasil (a criação em 1995 da Secretaria de Direitos Humanos) e com a introdução, pela primeira vez, de uma instância responsável por promover o diálogo entre Estado e sociedade civil (Comunidade Solidária).

É usual a identificação de duas vertentes dos direitos humanos, que correspondem aos dois Pactos Internacionais: o dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o dos Direitos Civis e Políticos.

Na esfera dos direitos econômicos, sociais e culturais, a trajetória de pouco mais de uma década exibe continuidade de antigos problemas, mas, ao mesmo tempo, avanços consideráveis em campos com impacto direto sobre as condições de vida das populações mais pobres. Com a adoção de um programa de estabilização a partir de 1994, na época fortemente criticado pelo Fundo Monetário Internacional por seu caráter heterodoxo, o país conseguiu controlar a inflação de forma sustentada, enfrentar crises econômicas internacionais de peso na segunda metade da década de 1990 e consolidar um tripé até hoje preservado como pilar da política econômica: câmbio flexível, equilíbrio fiscal e metas de inflação. Nos últimos três anos, além de preservar a estabilidade, o país vem exibindo altas taxas de crescimento econômico acompanhadas de processo de distribuição de renda.

São notáveis os avanços obtidos na extensão dos direitos sociais nos últimos quinze anos, em especial no que respeita ao acesso à educação e à saúde básicas, mas também à ampliação dos programas de transferência de renda para os estratos mais pobres da população. Há hoje no Brasil uma rede de proteção social que praticamente inexistia quinze anos atrás. Como os dados a esse respeito são mais conhecidos, optei por dedicar esta segunda parte do artigo ao campo dos direitos civis e políticos, no qual os progressos também foram importantes nesse período, mas as dificuldades para avançar mostram-se maiores.
Nesse campo, foram introduzidas questões que, até então, praticamente não constavam da agenda nacional. Começo pelo tema do gênero.

Igualdade de gênero

A luta pela igualdade de gênero, o combate à violência contra a mulher, a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os esforços para eliminação da exploração e tráfico de mulheres e a defesa de seus direitos nas prisões constituem algumas das principais bandeiras na luta em favor dos direitos humanos das mulheres.
Um primeiro passo nessa direção foi a criação, no final dos anos 1990, nos estados, das Delegacias das Mulheres que recebiam queixas de violências e maus tratos e procuravam proteger as vítimas. Avanço institucional expressivo ocorreu com a criação, no governo federal, da Secretaria Especial de Políticas para a Mulher (Spm), em 2003. Passo adicional foi dado com o lançamento do Pacto Nacional de Combate à Violência contra a Mulher e, em especial, com a aprovação, em 2006, da Lei Maria da Penha, de combate à violência doméstica.

As desigualdades entre homens e mulheres no Brasil ainda são amplas e graves, embora com tendência declinante. A remuneração dos homens é superior em 50% na média à remuneração das mulheres para profissionais e cargos de igual qualificação. O percentual de mulheres em cargos executivos é de apenas 11,6%, quando a participação feminina no total da população e na população economicamente ativa é, respectivamente, de 51,3% e 43,5%. No Senado, as mulheres representam pouco mais de 10% do total de representantes. Na Câmara, esse percentual é inferior a 10%.

Combate à tortura e à violência

Práticas de tortura e execuções continuam a comprometer o funcionamento de segmentos do governo e da sociedade civil e a obscurecer a imagem do país no exterior. Apenas nos estados do Rio e São Paulo, 8 520 pessoas foram mortas por policiais nos últimos cinco anos. Em 2004 e 2005, foram identificados por fonte oficial 404 casos de tortura em 17 estados. Para combatê-los, foi lançado em 2001 o Plano Nacional de Ações Integradas para Prevenção e Luta contra a Tortura, baseado nas recomendações do Relator Especial da Onu, envolvendo um conjunto de ações, como a criação de ombudsman em diversas instâncias da polícia e do sistema penitenciário e a qualificação de entidades da sociedade civil para monitoramento das prisões. De fato é no sistema carcerário onde residem os focos mais evidentes de prática de tortura.

Marcos institucionais de destaque foram a formação, em 2006, do Comitê Nacional para a Prevenção e a Luta contra a Tortura no Brasil, bem como a ratificação, em 2007, do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penalidades Cruéis, Desumanas ou Degradantes.

O elevado nível de violência e a falta de segurança estão entre os problemas que mais preocupam a população brasileira. A exclusão social, a desigualdade social e o despreparo de parte do sistema policial estão na raiz desses problemas. Sua superação depende de medidas de longo prazo. Dentre as ações concretas para reduzir os níveis de violência e segurança desenvolvidas pelo governo incluem-se: cursos de treinamento em direitos humanos para oficiais da Polícia, com participação de 450 mil; consolidação de sistemas de controle externo da atividade policial, por meio da designação de ombudsman; cursos de capacitação de policiais, com ênfase no estímulo ao uso de armas não-mortais e de técnicas mais modernas e legais no uso da força.

Além dessas medidas, sobressai a criação em 2007 do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Ele tem como diretriz básica a articulação entre políticas públicas na área de segurança e políticas sociais, com prioridade à prevenção do crime e ao respeito dos direitos humanos. O Programa enfrenta desafios de monta, como a luta contra o crime organizado e tem como um dos focos principais a luta contra a corrupção no sistema penitenciário. Também procura fomentar o envolvimento das comunidades nos programas de prevenção da violência.

Os dados sobre o sistema penitenciário brasileiro são altamente preocupantes. A população carcerária brasileira é de cerca de 420 mil pessoas, dos quais aproximadamente 122 mil são presos provisórios, sem julgamento. O déficit de vagas no sistema penitenciário atinge a elevada cifra de 105 mil. Nesse contexto, o governo vem estimulando a aplicação de penalidades alternativas – além da prisão – que já envolvem hoje um total de 174 mil pessoas. Desenvolve-se igualmente um conjunto de medidas para prover incentivos ao trabalho voluntário por parte de presos – 87 mil já estão nesta condição – e para melhorar o nível de educação entre os presos, que podem ter suas penas reduzidas diante de comprovado rendimento escolar.

Reconhecimento e reparação

Os 21 anos de autoritarismo no Brasil deixaram um legado de violações de direitos humanos de triste memória. Foram anos de torturas, desaparecimentos forçados, execuções sumárias, exílios. Os exilados tiveram assegurado seu retorno ao Brasil com a Lei da Anistia, de 1979. Entretanto, mais que garantir a volta ao país, o estado de direito, que renasceu em 1985, precisava resgatar a memória dos que morreram em defesa da liberdade, dos que carregavam cicatrizes das atrocidades cometidas, dos que tiveram o futuro comprometido por condenações injustas.

Assim, em 1995 foi aprovada a Lei n. 9 140 e o governo brasileiro reconheceu sua responsabilidade pela morte de 136 membros da oposição ao regime militar e assegurava indenização aos parentes das vítimas. A mesma lei criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e, após 11 anos de trabalho, concluíram-se as investigações e os julgamentos de 339 casos de mortos e desaparecidos. Deste total, 221 pessoas ou seus parentes foram merecedores de indenização. Os resultados dos trabalhos da Comissão, inclusive a história e a biografia de mortos e desaparecidos entre 1961 e 1988, foram reunidos no livro Direito à Memória e à Verdade, lançado pelo presidente Lula em 2007, com a participação do ministro Paulo Vannuchi. A iniciativa culminou num processo de resgate e de reconhecimento, por parte do Estado, de suas responsabilidades com as vítimas do regime militar no Brasil.

Defesa dos direitos indígenas

Um dos mais complexos desafios do Estado brasileiro tem sido preservar o direito dos indígenas à sua identidade sociocultural e assegurar sua participação na vida socioeconômica do país. Avanços nessa área exigem medidas de promoção do reconhecimento, demarcação e regularização das terras indígenas. A Constituição brasileira considera as terras indígenas como ativos da União, destinadas ao usufruto exclusivo e à posse permanente das populações indígenas.
Segundo dados divulgados pela Funai, o número de indígenas brasileiros que vivem em aldeias em 2008 é da ordem de 460 mil, o que representa 0,25% da população brasileira. Há estimativa de que entre 100 mil e 190 mil indígenas vivem fora de aldeias. Assim, o total da população indígena no Brasil poderia atingir até 650 mil. O Programa de Proteção das Terras Indígenas, a cargo da Fundação Nacional do Índio (Funai), tem por objetivo a regularização das terras pertencentes a territórios tradicionalmente ocupados por populações indígenas. Existem 615 áreas reconhecidas como terras indígenas, com extensão total de 1,07 milhão de quilômetros quadrados, correspondentes a 12,5% do território brasileiro e duas vezes o tamanho da França. Do total das terras indígenas, cerca de 90% já foram demarcadas, com pleno reconhecimento de sua posse e do usufruto em benefício dos indígenas.

Os problemas mais graves das comunidades indígenas estão associados, em sua grande maioria, a disputas de terras ou ao uso de terras indígenas por não-indígenas para atividades agrícolas, extração madeireira ou mineração. Segundo levantamento do Conselho Missionário Indígena, em 2007 ocorreram 58 assassinatos de indígenas, sendo 35 em Mato Grosso do Sul.

Para enfrentar problemas como estes, foi criado em 2004 o Comitê de Gestão da Política Indigenista, integrado por representantes de vários Ministérios com envolvimento nas questões indígenas. Dentre suas atribuições prioritárias estão: redução da dependência das comunidades às cestas básicas de alimentos do governo; reconhecimento das terras tradicionais para futura realocação, considerada medida estrutural de grande relevância; redução do processo de separação familiar e fortalecimento dos valores culturais e da identidade de comunidades indígenas.

Episódios de violência entre populações indígenas e não-indígenas são freqüentes. São exemplos os conflitos que envolvem as comunidades guarani kaiowa, na região de Dourados, no Mato Grosso do Sul, bem como os problemas para a retirada de arrozeiros não-indígenas das terras indígenas já homologadas de Raposa Serra do Sol, onde vivem 14 mil índios. O governo tem procurado agir com cautela, com a participação da Polícia Federal, de forma a evitar surtos de violência na área.

Direitos de crianças e adolescentes

As graves violações de direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil são patentes: elevado número de quase seis mil homicídios de jovens em 2006; alto contingente de menores abandonados nas grandes cidades; violência doméstica; e prisões ilegais de adolescentes em penitenciárias públicas.


O Estado tem enfrentado esses problemas de diversas formas. O Brasil foi dos primeiros países a instituir uma moldura legal baseada na Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Os principais avanços nessa área consistiram na elaboração de planos nacionais destinados a: enfrentar a violência sexual; prevenir e erradicar o trabalho infantil; e criar o Sistema Nacional de Serviço Sócio-Educativo (Sinase).


O Programa Luta contra o Abuso e a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, de 2002, prevê um conjunto de ações integradas entre entidades governamentais com ampla gama de objetivos: diagnosticar o estágio, a distribuição geográfica e as causas da exploração sexual no Brasil; qualificar profissionais em prevenção, defesa e cuidado das vítimas; e receber e processar acusações de violações. O acompanhamento da execução do programa é realizado por uma Comissão Intersetorial composta de quarenta membros, integrantes do governo, da sociedade civil e de organismos internacionais.

Em 2007, foi elaborado o Plano Social da Criança e do Adolescente, com ações estratégicas destinadas a combater a violência e proximamente será lançado o Projeto Bem-me-Quer em onze áreas metropolitanas para proteção de crianças e adolescentes mais vulneráveis à violência. Com esta iniciativa o Brasil habilitou-se a sediar, em novembro de 2008, o III Congresso Mundial da Luta contra a Violência Sexual, com a estimativa de mais de quatro mil participantes de cerca de 130 países. No âmbito da Onu o Brasil tem apresentado iniciativas concretas para promoção dos direitos das crianças, como demonstrado pela recente proposta para assegurar maior proteção às crianças desprovidas de cuidados parentais.

Livre orientação sexual

Os primeiros sinais de reconhecimento da livre orientação sexual e da identidade de gênero no Brasil estiveram associados, no início dos anos 1990, a políticas de saúde pública destinadas a proteger e assistir pessoas portadoras de doenças sexualmente transmissíveis, particularmente Aids. Foi nesse contexto que o II Programa Nacional de Direitos Humanos de 2002 passou a incorporar referências à população GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros). No contexto das Nações Unidas, o Brasil tem sido proponente e signatário de declarações que visam a assegurar direitos dos homossexuais, apesar da oposição de países com maioria islâmica e das resistências do Vaticano. Iniciativas brasileiras de maior envergadura vêm sendo aprovadas no âmbito do Mercosul e da OEA, onde o tema enfrenta menores resistências.

O governo reconhece a necessidade de um arcabouço normativo para regular direitos específicos da população homossexual e tipificar comportamentos reveladores de homofobia como passíveis de legislação penal. Este último aspecto ganha relevância diante do elevado número de 2 790 assassinatos de homossexuais ocorridos entre 1980 e 2006, a maioria deles resultantes de homofobia. O Programa Brasil sem Homofobia traz visíveis avanços em diversas áreas, tais como fortalecimento institucional, qualificação de profissionais em saúde, educação e segurança pública, comunicação, assim como a criação de 47 Centros de Referência em Direitos Humanos para a Prevenção e Luta contra a Homofobia.

Direito dos Negros

A afirmação do negro, fenômeno recente na sociedade brasileira, é produto dos anos 1960, quando personagens históricos como Zumbi foram mais amplamente reconhecidos como heróis da resistência dos quilombos e, ao mesmo tempo, como símbolos de luta contra a opressão do regime militar. Pouco mais tarde, a Constituição de 1988, além de criminalizar o racismo, incorporou dispositivos específicos para assegurar proteção de áreas de antigos quilombos e reconhecimento de terras ocupadas ainda hoje por quilombolas.

A desigualdade racial é traço marcante na sociedade brasileira, sendo comum dizer-se que “no Brasil a pobreza tem cor”. As razões são múltiplas e se espraiam ao longo de nossa história. Fomos o último país da América a abolir a escravidão, em 1888, dois anos depois de Cuba. A monarquia no Brasil contribuiu para a estabilidade política, o crescimento econômico e evitou longo período anárquico com lideranças de estilo caudilhesco predominantes na América hispânica do século XIX. Por outro lado, consolidou a escravidão e o latifúndio rural, fenômenos que estão nas raízes da desigualdade e da discriminação racial. Durante os governos militares houve acelerado crescimento econômico com alta concentração de renda. Tais fenômenos, aliados a escassos investimentos em educação, instrumento exemplar de mobilidade social, explicam o agravamento da desigualdade nos 21 anos de vigência do regime autoritário.

Um esforço inicial para tratamento institucional do tema do racismo e da discriminação racial no Brasil consistiu na criação do Grupo de Trabalho para Valorização da População Negra, integrado por vários Ministérios, e constante do primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, de 1996. O Grupo formulou as primeiras propostas de ação afirmativa, inclusive com a previsão de quotas nas universidades, apresentadas na Conferência de Durban sobre Racismo, Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001. Avanço institucional mais sólido nesta área ocorreu em 2003, com a criação da Secretaria Especial para Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com status ministerial. A Secretaria vem desenvolvendo diversos programas de combate ao racismo e à discriminação em estreita coordenação com a sociedade civil. No plano regional, além das iniciativas no âmbito do Mercosul, foi responsável, juntamente com o Itamaraty, pela Conferência de Brasília, em 2006, e pela organização da Conferência Regional Preparatória da Conferência de Revisão de Durban, em junho de 2008.

O fenômeno da miscigenação, que tão profundamente marcou a sociedade e a cultura brasileira em diversos aspectos, não amenizou as profundas desigualdades econômicas e sociais. Assim, o diferencial de renda entre populações brancas e afro-descendentes, com igual nível de escolaridade, é em média de 40%. A taxa de desemprego entre estes últimos é de 11,8%, em comparação com 8,6% prevalecente entre brancos. Não há dados nacionais sobre população carcerária, mas os dados disponíveis na cidade do Rio de Janeiro revelam que 66,5% da população carcerária é composta de afro-descendentes.

Programas de ação afirmativa dirigidos a afro-descendentes vêm sendo implementados nos últimos anos. Tais medidas continuam a gerar vivas controvérsias no âmbito da sociedade civil, pois o alto grau de miscigenação torna difícil a identificação da afro-descendência entre os beneficiários de programas de ação afirmativa. Alguns sustentam que mais viável seria optar por ação afirmativa tendo como parâmetro o nível de renda, que incluiria alta percentagem de afro-descendentes, que constituem a grande maioria da população mais pobre. Independentemente da validade dos argumentos, tais debates vêm desempenhando o importante papel de tornar público o debate sobre a questão racial no Brasil, tradicionalmente tímido e resguardado pelo mito da democracia racial, manto sob o qual se escondem tantas resistências a uma maior consciência da verdadeira amplitude do racismo, da discriminação e da desigualdade racial em nosso país.

Dentre as iniciativas para a promoção da igualdade racial, inclui-se o Programa Brasil Quilombola, destinado a afro-descendentes que resistiram à escravidão e refugiaram-se nas áreas mais recônditas do país. O programa focaliza as comunidades por eles constituídas, das quais 3 562 já foram identificadas. As políticas públicas desenvolvidas pelo governo em parceria com setores da sociedade civil incluem a prestação de serviços em saúde, educação, desenvolvimento local e títulação de terra. Desde o início do programa, 112 comunidades quilombolas obtiveram títulos de propriedade da terra.

A questão racial no Brasil tem vigorosas dimensões socioeconômicas, traduzidas em níveis de renda mais baixos e na exclusão social dos afro-descendentes. Mas igualmente nela estão presentes atitudes e relações socioculturais que refletem de forma mais visível o preconceito e discriminação.

O movimento negro brasileiro sofreu fortes influências das lutas exitosas pelos direitos civis da comunidade negra norte-americana. Embora tais vínculos sejam naturais, é importante ter presentes as diferenças e características próprias da questão racial no Brasil. Em função do alto grau de miscigenação, a discriminação aqui não assumiu contornos tão nítidos de segregação racial, como nos Estados Unidos. Tal complexidade exige que o Brasil tenha um olhar próprio sobre o problema racial, que não seja mero espelho da visão de outros países. Só assim poderemos evitar o vício simplista da importação de modelos.

É embaixador junto às Nações Unidas em Genebra e mestre em Economia pela Universidade de Ottawa, Canadá.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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