14 outubro 2019

Educação Básica sob Bolsonaro: Análise da Conjuntura e um Olhar para o Futuro

  1. Introdução

Em um cenário de múltiplas crises e de uma disputa eleitoral nacional que se avizinhava, o clamor por mudanças estruturais ganhou destaque no debate público brasileiro no início de 2018.  Ainda que a polarização política tenha empobrecido os debates entre os candidatos à presidência da República na campanha, não foram poucos os formadores de opinião que convergiram ao anunciar: sem a efetivação de reformas estruturais, o futuro do País está seriamente comprometido.
Entre as urgências, a necessidade de avanços substanciais na qualidade da educação básica[1] finalmente passou a figurar com maior ênfase nos discursos dos principais influenciadores da pauta nacional. Grandes eventos para “discutir o Brasil” abordaram o tema e um número maior de personalidades do mundo econômico, político, empresarial, acadêmico e jornalístico – muitas das quais pouco falavam sobre o assunto no passado recente – incluíram a educação básica (EB) nas suas listas de prioridades para o próximo governo.
As motivações parecem ter em comum o entendimento de que (i) índices de produtividade estagnados nas últimas décadas têm significativa relação (ainda que não exclusiva) com os baixos índices de aprendizagem na EB, e que (ii) na raiz dos graves problemas sociais brasileiros – em particular a desigualdade, a violência sistêmica e o subemprego – está, também, a incapacidade do País em lograr uma escola que efetivamente produza iguais oportunidades de boa inserção econômico-social para todos os seus cidadãos. Em suma, parcela importante da chamada “elite brasileira” parece, enfim, ter assimilado o que a literatura[2] sobre desenvolvimento aponta há anos: a educação não é a solução única para todos os desafios do Brasil, mas sem um ensino básico de melhor qualidade não haverá crescimento econômico duradouro e tampouco mudanças significativas em nosso grave quadro social.
Essa visão não é compartilhada por toda a elite, mas o início dessa mudança de entendimento não pode ser menosprezado. Afinal, como mostra Thomas Kang em estudo[3] recente, “a literatura sugere que uma possível causa do atraso educacional brasileiro tenha sido o viés elitista das políticas educacionais. (…) As evidências coletadas em discursos e em dados de financiamento educacional mostram que as políticas do período tenderam a dar pouca importância ao ensino primário. Em particular, […] os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, […] privilegiaram o ensino superior, em detrimento do ensino primário para as massas”. Não por acaso, em 1970, 52% da população brasileira com idade entre 4 e 17 anos sequer tinha acesso à uma escola[4]. E as consequências são sentidas até hoje – 40% da atual população brasileira acima dos 25 anos sequer concluiu o ensino fundamental[5].
É nesse contexto de maior pressão pela educação em um ano de eleições majoritárias que surgiu entre alguns atores do campo educacional a hipótese de que um novo ciclo governamental em 2019 abriria uma janela de oportunidade para avançar um projeto educacional sistêmico. Para além do “capital político”, alto no começo de mandato, e do clima “reformista” que se consolidava no País, tal análise se sustentava no fato de que algumas políticas necessárias para gerar avanços expressivos haviam sido implementadas nas últimas décadas – sistema de avaliação e financiamento indutor (governos FHC), ampliação de recursos e expansão dos mecanismos de financiamento, indicadores nacionais de qualidade e piso nacional docente (governos Lula) e, mais recentemente, base nacional comum curricular,  BNCC  (governos Dilma/Temer). Ou seja: longe de um cenário de terra arrasada, finalmente o País estaria “pronto” para promover o tão sonhado e necessário salto de qualidade na educação básica.
Foi à luz desse cenário que o Todos Pela Educação – organização da sociedade civil sem fins lucrativos e suprapartidária – produziu ao longo de 2018 o documento “Educação Já”. O trabalho inédito, construído com mais de 80 especialistas, profissionais e instituições do setor educacional, e alicerçado em pesquisas com amostras representativas de professores e estudantes brasileiros, apresenta um conjunto de recomendações para o Brasil avançar 50 pontos no Pisa[6] até 2030. Trata-se de um salto ambicioso, mas possível, já que outros países, como Portugal, conseguiram avançar 30-40 pontos, partindo de patamares superiores em 10 anos. Ademais, esse avanço nos colocaria na liderança da América Latina, mais próximos da média dos países-membros da OCDE, e estaria correlacionado a um acréscimo cumulativo de 1 ponto percentual no PIB[7].
O documento – apresentado nesta revista (edição nº42/ julho-setembro 2018) – sinaliza tanto para a continuidade e melhoria de políticas mencionadas acima como para medidas essenciais ainda ausentes. No total, foram elencadas sete temáticas principais – governança, financiamento, BNCC, professor, primeira infância, alfabetização e ensino médio –, que se desdobram em 24 medidas específicas e articuladas entre si. Na prática, são sugestões detalhadas sobre o que fazer e, principalmente, como fazer. Em alguns casos, como na proposta para um novo Fundeb (principal mecanismo de financiamento da EB, atualmente em discussão no Congresso), chegamos no nível “minuta de lei”.
O compromisso definido desde a largada era “transferir” os conhecimentos produzidos para os mais diferentes atores do poder público já a partir da etapa de transição, em novembro de 2018, independentemente do vencedor. E assim fizemos.
Passados oito meses, neste artigo objetivamos, inicialmente, registrar o cenário atual da agenda da EB em duas importantes instâncias que, de diferentes modos, se referenciaram nos caminhos propostos pelo “Educação Já” para conceber seus respectivos “planos de trabalho”: Ministério da Educação (MEC) e Congresso Nacional (CN). Na sequência, abordamos os esforços de articulação e replicação de boas práticas (presentes no Educação Já) entre os Estados.  À luz dessas três análises (MEC/CN/Estados), argumentamos que há em curso uma “reforma educacional silenciosa”, que se movimenta de maneira horizontal, sem hierarquia ou liderança clara, e cuja gênese se encontra na promulgação da Constituição Federal. Por fim, concluímos que, dada essa configuração atípica, o sucesso desta “reforma” reside, prioritariamente, na capacidade da sociedade civil em sustentá-la ao longo dos próximos anos.


  1. Ministério da Educação: o que temos após 8 meses?

A despeito de indicar em seu plano de governo que a educação básica seria uma das prioridades do mandato, desde a campanha e até os primeiros meses de governo, a “plataforma” do hoje presidente Jair Bolsonaro pouco produziu e apresentou. Tal período foi marcado por intenções genéricas (“focar na educação básica” e na “alfabetização”) e por sinalizações esdrúxulas e descoladas dos reais desafios do setor: incentivo a filmagem de professores em sala de aula, revisão da BNCC para “expurgar Paulo Freire”, ensino domiciliar, EaD para o ensino fundamental e escolas militares.
Ademais, os primeiros 100 dias da gestão, que culminaram na queda do agora ex-ministro Ricardo Vélez Rodriguez, foram caracterizados por forte disputa interna entre as alas “olavista”, “técnica” e “militar” do MEC, inúmeras trocas em cargos de alto escalão e comunicações estapafúrdias, como o envio de carta para todas as escolas perfilarem e filmarem seus alunos para cantar o hino nacional e declamar um dos slogans da campanha de Bolsonaro. Apesar do interesse das chamadas alas “técnica” e “militar” da primeira gestão em aproveitar os conhecimentos gerados pelo “Educação Já”, a inoperância interna inviabilizou qualquer diálogo produtivo, e a passagem de Vélez pelo MEC terminou melancolicamente, com uma série de entreveros nas redes sociais que mostravam o esvaziamento do poder do ministro.
Por sua vez, a Secretaria da Educação Básica (SEB) do MEC da atual gestão do ministro Abraham Weintraub, empossado em maio, finalmente conseguiu apresentar em julho um “plano” para a etapa, denominado “Compromisso Nacional Pela Educação Básica”[8].
Embora com enorme atraso, em especial para um governo que elegeu a EB como prioridade, frente ao contexto campanha/transição/início de governo, o esforço traz alguns avanços, sobretudo por (i) ser fruto de diálogo com o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime); (ii) se referenciar no acúmulo de conhecimentos já existentes, dentre eles o “Educação Já”, para priorizar os desafios que precisam ser enfrentados com urgência – ex: regulação na formação de professores, políticas de atratividade da carreira docente e formação de gestores escolares – e sinalizar para a continuidade de importantes ações, como o apoio à implementação da BNCC, escolas de tempo integral e sistema de avaliação; e (iii) se descolar da maior parte das pautas irrelevantes que vinham sendo defendidas pelo governo até então.
Não obstante tais avanços, há sérias fragilidades no documento, que permanecem até o presente momento (fim de agosto). Primeiro, ele não passa de um conjunto de intenções e grandes diretrizes. Exceto a política de expansão de escolas cívico-militares, não há detalhes públicos sobre o modelo ou estratégias de implementação das ações destacadas; nada sobre aonde se pretende chegar, quais as metas ou o orçamento. Trata-se de um documento em formato “programa de governo”.
Segundo, porque insiste em priorizar temas que pouco dialogam com os principais desafios atuais e carecem de evidências de impacto em larga escala, como as escolas em modelo “cívico-militar”. O Programa[9], lançado oficialmente no dia 5 de agosto, se baseia numa análise equivocada sobre os resultados das escolas militarizadas (que diferem de colégios militares, que basicamente atendem os filhos de militares), atribuindo a elas ganhos que são explicados por fatores extraescolares – nível socioeconômico dos alunos e, em alguns casos, seleção de alunos – e não pelo fator “militar”. Ainda que o alcance do novo Programa represente 0,15% do total das escolas públicas no País, trata-se de um desperdício de tempo, energia e recursos (cada vez mais escassos).
Terceiro, porque deixa de fora políticas fundamentais, como a alfabetização e o Fundeb, sob o argumento de não estarem sob responsabilidade da SEB. Tais políticas, centrais para a educação básica, estão sendo conduzidas por outras instâncias do MEC, e a ausência de sinalização sobre a articulação desses temas com o conteúdo do “Compromisso” enfraquece o discurso de que este representa, de fato, uma “agenda para a educação básica brasileira”.
As dificuldades do MEC para coordenar uma agenda nacional não param por aí. Além dos contingenciamentos que têm afetado a SEB (a despeito da propalada prioridade), ela tem sofrido também um crescente esvaziamento em sua equipe. Quase todos os técnicos trazidos pela última gestão já deixaram o ministério, o que, aliado à dificuldade em recrutar profissionais dispostos a trabalhar com a atual administração, resulta no comprometimento de tarefas operacionais, como a alimentação de sistemas para repasses financeiros a entes subnacionais, e no aumento dos riscos para a execução de outras cruciais, como a Prova Brasil/Saeb, que avalia bianualmente estudantes da EB e serve para a atualização do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e para a orientação de diversas políticas educacionais. Diante do esvaziamento interno, as chances de sucesso de uma agenda mais ambiciosa e que pretende introduzir inovações torna-se missão “quase” impossível.
Não fossem esses obstáculos suficientes para configurar um cenário pouco promissor para a educação básica no MEC, o ministro Abraham Weintraub, em seus quatro meses de gestão, pouco tem contribuído para fortalecer uma componente central para dar tração ao “Compromisso”: a confiança dos implementadores, em particular, dos secretários estaduais e municipais de educação.
Dado o desenho federativo brasileiro, com amplo grau de autonomia a estados e municípios, não há como estruturar um “compromisso nacional” sem uma forte coalizão técnico-política entre as diferentes esferas. E, ainda que o atual secretário da Educação Básica, Jânio Macedo, tenha tentado se afastar de grandes polêmicas para priorizar uma condução técnica e de construção coletiva com os entes subnacionais, a narrativa partidária, desrespeitosa e truculenta do atual ministro em coletivas de imprensa, entrevistas e em seu Twitter, tem minado a confiança dos diversos atores envolvidos no esforço.
Diante desse quadro, e tentando olhar para o futuro, o prognóstico é preocupante: sem um plano concreto após oito meses, sem equipe, com poucos recursos e sem a confiança dos atores implementadores, a análise mais otimista é de que teremos quatro anos de avanços extremamente tímidos. Afinal, dadas as variáveis que hoje se apresentam, uma análise mais realista indicará que, no campo da educação básica, o MEC caminha para um cenário de inação. O que, para a política educacional, é sinônimo de retrocesso.


  1. O fortalecimento da agenda legislativa educacional no Congresso

A velha máxima de que não existe vácuo de poder uma vez mais se confirmou nesse contexto. Ante a real desorientação do MEC, senão mesmo de sua virtual paralisia, o Congresso Nacional tem assumido crescentemente o papel de protagonista no debate e no encaminhamento de propostas cruciais para a EB. Com efeito, a criação de uma Frente Parlamentar Mista da Educação (FPME), com estrutura, métodos de trabalho e composição inéditas; a reinstituição, na Câmara, de Comissão Especial para deliberar sobre a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 15/2015, relativa ao Fundeb, bem como o surgimento de duas PECs sobre a mesma matéria no Senado; a constante vigilância e fiscalização das Comissões de Educação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; a instalação de uma Comissão Externa de Acompanhamento do MEC (Comex); estes são apenas alguns dos exemplos da liderança que o Parlamento vem desempenhando no setor educacional.
Na verdade, o Congresso se organizou para isso antes mesmo de empossada a nova legislatura. Na semana seguinte ao primeiro turno das eleições de 2018, um pequeno grupo de parlamentares eleitos começou a se mobilizar, com o apoio do Todos Pela Educação e de outras organizações da sociedade civil, para pensar e estruturar uma nova forma de atuar no Parlamento em prol da educação. Essa mobilização evoluiu com encontros e reuniões, em 2018 e no início de 2019, e finalmente optou pela forma tradicional de organização coletiva temática do Congresso: uma Frente Parlamentar da Educação. De fato, são mais de duas centenas as Frentes no CN, mas muitas vezes criadas apenas para dar visibilidade a um tema ou a um parlamentar.
A FPME, por sua vez, de tradicional tem apenas o modelo geral adotado no Congresso. Na prática, já surgiu distinta de quase todas as demais: com uma estrutura de dez comissões temáticas que espelham as reais prioridades da educação brasileira, com um conselho consultivo que reúne a sociedade civil (Cenpec, Fundação Lemann e Todos Pela Educação), além de Consed e Undime, com uma Mesa Diretora que tem 11 partidos em sua composição, e tendo o Todos como sua Secretaria Executiva, a FPME destaca-se ainda por um método de trabalho que inclui um plano de ação geral e planos específicos para cada comissão temática, sempre em articulação com o terceiro setor e com agentes públicos representativos. Presidida pela deputada professora Dorinha Seabra Rezende, uma das maiores expoentes da educação no Congresso, a FPME tem realizado debates regulares sobre os temas mais caros à agenda da educação em geral e da educação básica em particular. Por exemplo, a FPME conheceu em primeira mão o substitutivo à PEC 15/2015 da deputada professora Dorinha, relatora da matéria na Câmara, que contou também com o relator das PECs que correm no Senado, senador Flavio Arns. Ainda em 2019, a FPME realizará eventos sobre temas tão importantes como o próprio Fundeb, a educação do futuro e o futuro do trabalho, marco referencial docente, educação inclusiva, arranjos intermunicipais de colaboração, sistema nacional de educação etc. Ainda mais importante, a FPME logrou o compromisso dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em trabalhar juntos para construir uma agenda legislativa da educação, que inclui PECs e projetos de lei sobre vários temas prioritários que compõem o Educação Já, e que devem ter sua tramitação priorizada nos próximos meses.
Por seu turno, as instâncias permanentes do CN – comissões de educação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal – também têm se mantido vigilantes e ativas em seu papel de poder fiscalizador do Executivo. Muito embora sejam palco do enfrentamento político entre a situação e a oposição, o que tem comprometido em alguma medida sua capacidade deliberativa, ainda assim, elas não se furtaram a convocar por diversas vezes os titulares do MEC e de seus órgãos vinculados para explicar propostas ou declarações, sobretudo as mais polêmicas. Ademais, graças à hábil condução de seus presidentes e ao papel conciliador de vários de seus titulares, essas Comissões não têm dado palco a debates infrutíferos sobre projetos irrelevantes e antidemocráticos como o “Escola sem Partido”.
Talvez a maior manifestação dessa busca por protagonismo do Legislativo em resposta à desorientação do MEC no primeiro semestre de 2019 tenha sido a instalação da Comex. Polêmica em sua criação, porquanto os membros da Comissão de Educação da Câmara tenham em sua quase totalidade a ela se oposto, por julgarem-na desnecessária e concorrente a seus trabalhos, ainda assim, a Comex foi instalada e reúne 54 parlamentares de 16 partidos, sob a liderança da deputada Tabata Amaral. Foi a resposta de um grupo de congressistas à infeliz audiência pública em que o então ministro Vélez Rodrigues não conseguiu mostrar sequer um esboço de plano para a educação brasileira, mesmo depois de três meses de governo. A Comex tem realizado diversas audiências públicas e visitas técnicas aos órgãos do MEC, e os requerimentos de informação que aprovou deverão, quando respondidos, permitir a seus membros elaborar um relatório aprofundado sobre as ações e planos do MEC, com recomendações objetivas para que este concentre seus esforços em políticas públicas informadas pelas evidências e que respondam aos desafios educacionais do Brasil.


  1. Um novo protagonismo dos Estados diante do vácuo federal 

No mesmo diapasão, os Estados também vêm ganhando maior preponderância, em grande medida porque são pressionados a melhorar seus indicadores de qualidade da educação (Ideb).
Em evento em setembro deste ano, com empresários e lideranças políticas de todo o País, o govenador de São Paulo, João Dória, encerrou sua fala assim: “Estamos na boa competição pela melhor educação do país, São Paulo será o Ideb número 1 até o final da minha gestão”. Outros governadores também presentes foram na mesma linha, incluindo o do Ceará, Camilo Santana, cujo Estado vem alcançando destaque em todas as etapas de ensino, em especial no ensino fundamental I (1o ao 5o ano). Para avançarem mais, governadores de todas as regiões estão nessa “corrida”, que envolve alguns fatores comuns: construção e implementação de politicas, tendo como referência o sucesso em outros Estados; crescente apoio do Estado aos municípios, como forma de sustentar resultados de longo prazo; e apoio de instituições da sociedade civil para a estruturação das políticas.
Este último fator possui um ponto de apoio inédito e que tem feito a diferença, que é o fato de essas instituições estarem juntas no Educação Já. Com isso, há melhor coordenação de suas ações e promoção do foco nas políticas mais urgentes e necessárias para termos mais resultados.
Alguns exemplos evidenciam esse momento de maior protagonismo dos Estados, muitos em colaboração com os municípios, como a articulação entre Consed e Undime para a implementação da BNCC; a adoção do modelo do Ceará para garantir a alfabetização de todos os alunos até o 2o ano do ensino fundamental (EF), já lançado em Pernambuco, Sergipe e Paraná, com expansão do modelo prevista em outros Estados; e a política de ensino médio em tempo integral (EMTI) de Pernambuco, já presente em 19 Estados.
Alfabetização em regime de colaboração entre Estados e municípios, EMTI gradualmente expandido e boa gestão da cadeia de implementação da BNCC são estratégias de melhoria da qualidade da educação, com forte incidência no aumento da aprendizagem dos alunos, que estão sendo adotadas graças à troca de experiências entre Estados e o trabalho conjunto com municípios e sociedade civil.
Apesar da queda na capacidade de formulação e implementação do MEC, dado o recente protagonismo dos Estados, aliado à agenda ambiciosa e organização mais efetiva do trabalho do Legislativo federal, é possível vislumbrar resultados educacionais melhores nos próximos anos.


  1. Uma
    reforma educacional silenciosa?

O alcance de resultados significativos no futuro próximo também se alicerça em um processo longo e que teve início com a promulgação da Constituição Federal, que consagrou o direito à educação a todos os brasileiros e vinculou recursos dos entes ao setor. Esse processo avançou com o Acordo Nacional Educação para Todos, em 1994, sob a liderança do então ministro da Educação Murílio Hingel, em diálogo com Consed, Undime e a sociedade civil, do qual resultou o compromisso com a centralidade da melhoria da EB. Depois, ganhou força normativa e esteio financeiro com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), em 1996. Ainda que imperfeito, esse processo tem se mantido desde então, mesmo que com diferentes ritmos, e não sem idas e vindas.
Com efeito, esses pilares sustentaram uma expansão acelerada das matrículas na educação básica, tarefa inconclusa no Brasil, que ainda tem mais de 2,5 milhões de jovens fora do ensino médio, mas que somente em 1980 havia alcançado a proporção de estudantes no EF que o Chile ostentava desde 1930. Entre 2007 e 2017, dobrou o percentual de alunos que concluem o ciclo inicial do EF com os conhecimentos adequados (ainda que a taxa atual ainda seja insatisfatória). Ademais, esses marcos possibilitaram que políticas de base fossem erigidas ou aperfeiçoadas: um sistema de financiamento mais estável e redistributivo; o aumento de recursos e melhorias na execução dos programas de apoio aos estudantes e redes (PNAE, PDDE, PNATE, PNLD etc.); um sistema nacional de avaliações educacionais, que avançou para o Ideb; e o estabelecimento de metas públicas que orientam a ação de estados e municípios (no qual o Todos Pela Educação teve liderança destacada). Mais recentemente, outros avanços foram registrados, tais como a aprovação do Piso Nacional do Magistério, que melhorou, ainda que não tenha resolvido, o problema da baixa remuneração dos docentes brasileiros; a transformação do Fundef em Fundeb, com a inclusão de recursos para a educação infantil e a obrigatoriedade do EM; a recente aprovação da BNCC, que deve resultar na reformulação dos currículos de toda a EB e orientar a formação inicial e continuada dos professores; e, por fim, a “reforma” do EM, cuja lei, aprovada em 2017, finalmente permite que o Brasil diversifique os itinerários formativos dos alunos, nesta etapa que tem sido a de menores avanços no país.
Essa mirada panorâmica nos lembra que avanços educacionais são lentos, difíceis de alcançar, requerem recursos financeiros significativos e demandam diálogo com todos os atores relevantes, além de clareza de propósitos e persistência. Menos importante do que discutir se o copo parece cheio ou vazio é assegurar que ele seja completamente preenchido. Logo, o desafio maior para a educação básica brasileira é complementar, aperfeiçoar e acelerar essa reforma educacional silenciosa. Ideologizar o debate educacional, menoscabar os avanços obtidos, desprezar as evidências, desrespeitar professores e estudantes brasileiros, nada disso nos fará superar os desafios educacionais e oferecer oportunidades iguais para todos.
O Educação Já traz respostas concretas para essa tarefa de complementar, aperfeiçoar e acelerar essa reforma educacional silenciosa. Criar o Sistema Nacional de Educação, por exemplo, é essencial para fazer convergir e coordenar as ações dos entes por meio de processos decisórios coletivos, que superem o regime de colaboração como uma miríade de “pactos por adesão”. A construção e a disseminação de uma política intersetorial para a primeira infância, por sua vez, permitirão que as crianças recebam os cuidados e estímulos logo no começo de suas vidas, com efeitos positivos de longo prazo não restritos ao rendimento escolar. Aprimorar as normativas existentes e inovar na regulamentação da formação e no exercício docente serão passos essenciais para a valorização desses profissionais, que também precisarão de carreiras mais bem estruturadas e remuneradas. Precisamos sistematizar, disseminar, adaptar e reaplicar os bons exemplos de avanços sistêmicos que temos no País. Ao fim e ao cabo, o Brasil precisa obcecar-se com o aumento da aprendizagem de seus alunos.


  1. Conclusão: quem pode sustentar uma reforma
    silenciosa e horizontal?

Diante de uma reforma educacional silenciosa e que se move de maneira horizontal, a pergunta central passa a ser: sem uma liderança clara, seria ela sustentável? E, se sim, sob quais condições?
Primeiro, a ausência de uma coordenação nacional, em especial num país federativo, continental e muito desigual, traz consigo uma série de consequências negativas. Sem uma agenda clara e com baixo protagonismo do MEC: (i) enfraquece-se a lógica de um projeto educacional nacional capaz de dar foco à ação dos quase 5.600 entes subnacionais; (ii) reduzem-se as chances de coordenação sistêmica entre as principais políticas de cunho nacional, aspecto fundamental em sistemas de alta complexidade; (iii) aumentam-se as chances de ampliação das desigualdades entre as regiões; e (iv) ampliam-se os riscos de descontinuidade da agenda ao longo do tempo.
Em que pese um relevante (e novo) protagonismo do CN e dos Estados na agenda da educação, frente a um contexto de “vácuo federal”, o avanço de uma “reforma educacional silenciosa” tem na sociedade civil organizada um pilar central de sustentação. Ainda que, por óbvio, não seja possível ou desejável apresentar-se como um substituto ao poder público, as instituições e atores não governamentais podem cumprir papel fundamental para sustentar uma agenda nacional estruturante para a educação. Face à inexistência de um projeto educacional explícito, a presença constante na imprensa e no debate qualificado com influenciadores e implementadores pode ser capaz de manter em pauta os temas que realmente importam; diante de um MEC que pouco atua para apoiar os entes com baixa capacidade institucional, o terceiro setor pode fazer a diferença – como, inclusive, já vem fazendo, como na implantação da BNCC, expansão do EMTI, e na melhoria da gestão das redes –; e frente ao risco de descontinuidade, uma sociedade civil organizada e articulada em torno de uma agenda coletiva pode exercer pressão suficiente para evitar devaneios ou, ao menos, tornar a ação equivocada politicamente mais custosa.
É nesse último sentido, inclusive, que o Educação Já também pretende agir: ao reunir mais de 80 especialistas e instituições do campo educacional para formular um conjunto de propostas, nasceu, em paralelo, um senso de “ação coletiva”.  Ação coletiva que, a depender do Todos Pela Educação, será nutrida e ampliada ao longo dos próximos anos. Conclamamos o(a) leitor(a) a se juntar a este esforço.


[1]
“Educação Básica” compreende as etapas da educação infantil (creche e pré-escola), do ensino fundamental e do ensino médio.
[2]
Ver, por exemplo, trabalhos do economista Eric Hanushek, da Universidade de Stanford.
[3]
 Kang, Thomas H. 2017. “Educação para as elites, financiamento e ensino primário no Brasil, 1930-1964”. Latin American Research Review, 52 (1): 35-49.
[4] Fonte: Censo Escolar / Governo Federal
[5] Fonte: IBGE / 2018
[6]
Pisa – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes / OCDE
[7]
“The Knowledge Capital o Nations: Education and the Economics of Growth”, Eric Hanushek & Ludger Woessmann, 2015.
[8]
Ver http://portal.mec.gov.br/images/11.07.2019_PPT-Cafe-da-manha-EB-converted.pdf.
[9]
O Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim) tem como meta implementar 216 escolas em todos as unidades da federação até 2023. Hoje, 120 escolas funcionam em modelo similar. Segundo o MEC, escolas cívico-militares são instituições não militarizadas, mas com uma equipe de militares da reserva no papel de tutores. As escolas serão implementadas mediante adesão dos Estados.

PRISCILA FONSECA DA CRUZ É presidente-executiva e cofundadora do movimento Todos Pela Educação. É mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School of Government, graduada em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Foi coordenadora do Ano Internacional do Voluntário no Brasil, projeto que recebeu o destaque das Nações Unidas em 2001. Ajudou a fundar o Instituto Faça Parte em 2002, onde atuou como coordenadora até 2005. Em 2012, recebeu o Prêmio Jovem Liderança na Educação, do Grupo Estado, e o Prêmio Darcy Ribeiro, concedido pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados ao Todos Pela Educação. Em 2017, foi finalista do Prêmio Cláudia, na categoria Políticas Públicas. JOÃO MARCELO BORGES É diretor de estratégia política do movimento Todos Pela Educação. Formado em Relações Internacionais e Economia pela Universidade de Brasília e Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics. Foi especialista em educação e consultor sênior em educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento entre 2011 e 2017, bem como especialista em inovação na mesma organização em 2018. Entre 2008 e 2011, prestou consultoria ao Banco Mundial, Unesco, Pnud, bem como a empresas, ONGs e fundações privadas no Brasil e em outros países. Antes, foi coordenador de gestão estratégica na Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, entre 2005 e 2007, e gerente de projetos na Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, entre 1999 e 2001. OLAVO NOGUEIRA BATISTA FILHO É diretor de políticas educacionais do movimento Todos Pela Educação. É formado em administração pela Universidade de Notre Dame (EUA) e pós-graduado em gestão pública pelo Centro de Liderança Pública (CLP). Trabalhou por três anos na ONG Parceiros da Educação (2010-2013) e outros três anos na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (2013-2016), tendo atuado como assessor do secretário da Educação, diretor de tecnologias educacionais e coordenador de informação, monitoramento e avaliação.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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