01 abril 2014

Eleições 2014

Analistas políticos costumam ser convi­dados a exercer uma versão suposta­mente laica da profecia. Pede-se que projetem cenários futuros prováveis ou, mesmo, cer­tos. Um bom antídoto para esse convite, e para a ten­dência à hybris a que ele remete, chama-se “maio/junho de 2013”. Em 1º de maio de 2013, a reeleição da presidente Dilma parecia garantida. Dois meses depois, após as manifestações que tomaram as ruas, numa versão nova de ser “contra tudo o que está aí”, sua popularidade tinha caído pela metade e nada mais estava seguro.

Analistas políticos costumam ser convi­dados a exercer uma versão suposta­mente laica da profecia. Pede-se que projetem cenários futuros prováveis ou, mesmo, cer­tos. Um bom antídoto para esse convite, e para a ten­dência à hybris a que ele remete, chama-se “maio/junho de 2013”. Em 1º de maio de 2013, a reeleição da presidente Dilma parecia garantida. Dois meses depois, após as manifestações que tomaram as ruas, numa versão nova de ser “contra tudo o que está aí”, sua popularidade tinha caído pela metade e nada mais estava seguro. No momento mesmo em que escrevo, março de 2014, não se tem sequer certeza de quem serão os principais candidatos à presidên­cia. De longe, o mais provável é termos uma disputa entre Dilma Rousseff, Aécio Neves e Eduardo Cam­pos, porém, não se pode descartar a hipótese de que seus respectivos partidos lancem Lula, algum no­me ainda imprevisto pelo PSDB e Marina Silva. Mas, proponho delinear algumas linhas-mestras de como a política brasileira deve se nortear nos próxi­mos – não digo meses – anos. Meu ponto de partida não serão os partidos, mas as exigências populares. Penso que numa política democrática, mesmo não acreditando nas virtudes do espontaneísmo, o que vem de baixo pode ser mais determinante, no lon­go prazo, do que as articulações realizadas nas cúpu­las políticas; ou, se quiserem, que as demandas po­pulares acabam moldando as ofertas institucionais.1
Desde as manifestações, tenho sustentado que elas abriram uma quarta agenda democrática para o País – aquela que, ao se completar, consumará o longo processo de conversão do Brasil numa demo­cracia que funcione. A primeira agenda foi a derru­bada da ditadura (1985), a segunda, a vitória sobre a inflação (1994) e a terceira, ainda em curso, a in­clusão social (desde 2003). A quarta agenda, afirmo, é a da qualidade dos serviços públicos – trans­porte, educação, saúde e segurança públicos –, o que diz respeito, portanto, à qualidade do Estado brasileiro. Não é fortuito que os movimentos de 2013 tenham começado com a defesa do transporte público bom e barato (em tese, gratuito) e que, dali, tenham-se estendido para a educação e a saúde.2
Cada uma destas agendas, que se desenrolam num lento, porém talvez seguro, continuum desde a década de 1980, se efetivou ao ser assumida como prioridade por um partido e, depois de muitos en­saios e erros, emplacar como projeto amplamente majoritário da sociedade brasileira. A primeira pau­ta foi a derrubada da ditadura militar. Esse processo demorou 21 anos, foi conduzido o tempo todo por uma oposição moderada, que alguns ridiculariza­vam chamando de “consentida”, mas que, na ver­dade, tinha a coragem de correr os riscos de ser oposição numa era difícil, sob a clara liderança de um partido, o PMDB. Outros partidos, ainda jovens devido à tardia supressão do bipartidarismo com­pulsório, contribuíram nesta direção – o PT e o PDT –, mas a condução foi do PMDB. Essa agre­miação, criada para combater a ditadura, assim, fi­nalmente completava sua razão de ser; é pena que depois se tenha convertido numa federação de lide­ranças regionais já sem metas maiores além da ocu­pação do poder. Mas, os bons resultados decorren­tes da queda da ditadura se evidenciam, por exem­plo, no IDH-M, ou Índice de Desenvolvimento Humano por Municípios, divulgado em 2013, pou­co após as manifestações, mostrando que no final do regime de exceção eram 85% os municípios brasileiros com IDH “muito ruim”, e, hoje, estes não chegam a 1%. Sem a democracia política, não teria ocorrido esse avanço social.
A segunda agenda foi a derrubada da inflação. A democracia voltou, ou foi instaurada, carregando o pesado legado da ditadura, o qual incluía uma inflação fora de controle e que só piorou, à medida que demandas represadas vieram à tona. É uma grande sorte para quem tem menos de 30 anos, hoje, não ter vivido o que foi a alta ou mesmo hipe­rinflação. Ela trazia uma insegurança permanente. E, quando se tentava controlar a carestia, os produ­tos sumiam, de modo que ou faltava dinheiro, ou faltava o que comprar. É inevitável falar em corro­são dos valores, não apenas monetários. A elevada inflação teve impacto negativo sobre a conduta éti­ca dos agentes; a perda de confiança na moeda mina a confiança no futuro e em muitos possíveis parceiros, seja no afeto, seja nos negócios. A infla­ção torna precários dois pilares sobre os quais se assenta a vida, pessoal ou coletiva: em primeiro lu­gar, sem esperança no futuro, o presente se reduz à imediatez. Alguns lugares do mundo onde é maior o terrorismo são aqueles em que não se tem espe­rança em dias melhores, como a faixa de Gaza. Em segundo lugar, sem nos associarmos a pessoas em quem confiamos, nossa trajetória é demasiadamen­te solitária. Em um caso e no outro, não construí­mos. A inflação não devasta apenas a economia.
O Plano Real, embora instituído por Itamar Franco – um presidente por acaso –, acabou asso­ciado à imagem de Fernando Henrique Cardoso que, aliás, se autodefiniu como o “presidente aci­dental do Brasil”. O plano foi assumido como ban­deira do candidato FHC e do PSDB. Ao contrário da derrubada da ditadura e da inclusão social, não veio primeiro o partido e depois a mudança: o PSDB assumiu como sua uma causa previamente definida3, sem jamais refugar em seu apoio ao pla­no. A luta contra a inflação se distingue das batalhas contra a ditadura, porque tem uma dimensão técni­ca que é difícil de converter em mobilização políti­ca. Não conheço exemplos de passeatas contra a ­ inflação.
rjr*http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/52423_NOVA+
CLASSE+C+TRANSFORMA+PIRAMIDE+SOCIAL+EM+LOSANGO, acessado em 4 de setembro de 2013.
Pior, o que as ruas dizem ou deixam de dizer pode derrubar um ditador, mas dificilmente vencem a inflação. É necessária uma expertise que vai além da vontade política, embora esta seja cru­cial, e seja tolice ironizá-la. Em nossa sociedade democrática, além disso, as questões que concer­nem à economia demandam um conhecimento es­pecializado que a maioria não tem, e, por isso, é mais árduo discuti-las politicamente. A economia, assim, converte o espaço da política, que deve ser o da divergência entre pelo menos duas posições con­sistentes e respeitáveis, em território no qual, a pre­texto do saber, um lado desqualifica o outro como incompetente, enquanto o público não tem grande ideia do que está sendo debatido. Mas, se não mo­bilizou passeatas, o partido que pretendia ser o mais povoado por acadêmicos de qualidade aproveitou a experiência de sucessivos planos malogrados para fazer a sociedade compreender que eram ilusórios os ganhos nominais obtidos com a inflação. Embo­ra tenha sido ironizado na época, o discurso do mi­nistro Bresser-Pereira, falando em João, Pedro e Maria, no lançamento do chamado Plano Bresser, em 1987, certamente foi um marco na construção da base política para combater a inflação. Passa­riam sete anos dele até o Plano Real, mas Bresser entendeu que era preciso montar um imaginário de apoio às medidas, sempre duras e geralmente impo­pulares, que planos de estabilização monetária im­plicam. Esse imaginário acabou triunfando por exaustão, mas graças a ele, finalmente, tivemos a convergência de saber técnico e o apoio político que permitiu vencer a segunda etapa.
A terceira agenda é a da maciça inclusão social promovida pelos governos do PT, em especial des­de 2005 (ver a Fig. 1). Em cinco anos, o governo Lula reduziu as classes D e E de 93 milhões a 48 milhões de pessoas (números arredondados para o milhão mais próximo), enquanto a classe C crescia de 63 a 102 milhões de indivíduos, ao mesmo tem­po em que as classes A e B também subiam, neste último caso, de 26 para 42 milhões, no que deve ter sido a maior ascensão social já ocorrida no mundo, dentro da democracia, em apenas um quinquênio4.
Aqui, também temos quatro características principais: um partido que lidera, uma causa que demora tempos a persuadir e a triunfar, uma socie­dade que aos poucos a vai assumindo e, finalmen­te, um ponto de não retorno, quando até mesmo a oposição compra a agenda do governo. Quando venceu as eleições de 2002, o PT era hegemônico ideologicamente na sociedade brasileira. A única restrição que muitos lhe faziam era o receio de sua política econômica. Mas, sua visão de sociedade era reconhecida pela maioria, mesmo os que te­miam sua atuação na economia como sendo a me­lhor. Sucintamente, era: uma sociedade justa, em que ninguém passasse fome, e uma sociedade éti­ca, que coibisse a corrupção5. A dúvida era quanto aos meios, isto é, à economia, ainda mais porque se vinha de um período de oito anos em que o Bra­sil foi praticamente governado por uma visão eco­nomicista – alguns dizem neoliberal – do mundo. A diferença foi manter várias, ainda que não to­das, políticas econômicas (a privatização pratica­mente parou – embora fosse difícil privatizar mais do que já fora vendido pelo setor público), mas subordinando-as claramente à finalidade que era a luta contra a fome, a miséria e a pobreza. Conhe­cemos o êxito dessa política. O programa Bolsa Família, tão criticado pela oposição, acabou sendo assumido também por ela, com o candidato tuca­no em 2010, José Serra, prometendo até mesmo ampliá-lo. Hoje, seria suicídio um candidato ao poder executivo, em qualquer nível da federação, defender o fim dos programas sociais. Também aqui, um projeto assumido por um partido, depois de 20 anos, tornou-se questão da sociedade.
Se tivermos razão, isso significa que cada etapa de crescimento da democracia demorou bastante tempo, entre 15 anos, no caso da inflação, e 21 anos, no caso da restauração da democracia ou do intervalo de tempo entre a fundação do PT e a elei­ção de Lula. É provável que a quarta fase também demore a se realizar. Além disso, em todos os ca­sos, a mudança foi capitaneada por um partido, ou seja: não era consensual na sociedade, havendo in­teresses pela manutenção do statu quo (ditadura, especulação inflacionária, desigualdade social); e foi na arena política que se construiu uma vontade, também política, de mudar. Reitero que, embora nos três casos a política fosse o fator decisivo para a modificação, no combate à inflação, os instru­mentos eram técnicos. Isso não quer dizer que fos­sem neutros do ponto de vista político, mas sim que a vontade política não bastava. Essa característica está de novo presente na quarta agenda. Se quiser­mos ter educação, saúde, transporte e segurança decentes, não bastará querer; será preciso dispor dos elementos técnicos para tanto, os quais não são fáceis de elaborar.
Apenas em defesa do querer e da vontade polí­tica, por vezes ironizados por não serem suficientes para gerar riquezas, observo que a vontade não é a simples enunciação de um desejo ou um capricho. Ao contrário, vontade não é desejo. Desejos geral­mente são mais espontâneos, quase naturais, próxi­mos do corpo (comida, bebida, sexo e prazeres em geral). A vontade é sempre força de vontade. Ela supõe uma escolha, geralmente difícil, em que se sacrificam desejos em nome de um objetivo maior. Vontade política significa, assim, a opção por uma prioridade, em nome da qual as metas se definem. Se quisermos uma boa educação pública, isso sig­nificará o investimento de dinheiro, de expertise e a mobilização dos interessados. O exercício da von­tade é tudo, menos o pedido ao gênio da lâmpada para que atenda a três desejos.
Mas, aqui se iniciam os problemas. A ditadura e a inflação duraram muito tempo, mas a vitória so­bre elas foi relativamente rápida: em três anos tí­nhamos uma nova Constituição, em meses, uma nova moeda. Já a inclusão social é um processo de mais longo curso. Suprimir a miséria fica gradual­mente mais difícil, à medida que baixa o número de miseráveis. Por exemplo, quem remanesce nas classes D e E tem mais dificuldade para obter em­prego ou oferecer saúde e educação aos filhos. O importante aqui é que a quarta agenda começa sem estar conclusa a terceira. Pior, a agenda da inclusão está se tornando mais difícil, e, ao mesmo tempo em que isso sucede, soma-se a ela uma nova pauta. O País precisa terminar um trabalho complexo de inclusão de milhões de discriminados historica­mente, e, ao mesmo tempo, melhorar sensivelmen­te os principais serviços que o Estado deve prestar. Tem uma agenda não concluída, embora bem ini­ ciada, de inclusão dos mais pobres, e uma agenda cada vez mais premente de atendimento aos que já adquiriram, não apenas a linha branca de consumo, mas direitos. É uma tarefa dupla e árdua. Perto de qualquer uma delas, as etapas anteriores parecem menos complexas.
Outro problema é que nenhum partido assume esta causa. O PMDB tinha sua razão de ser no com­bate à ditadura; o PT, na luta por uma sociedade justa e sem corrupção. O PSDB tinha sua razão de ser em outro lugar – a defesa, entre outros, do par­lamentarismo, hoje praticamente esquecido ou substituído como prioridade pelo voto distrital –, mas soube assumir rapidamente a agenda do com­bate à inflação, a tal ponto que sua razão de ser hoje está mais na economia do que nas instituições polí­ticas, como ele inicialmente pretendia. Aliás, isso fez com que todos esses partidos ficassem com um samba de uma nota só. O PMDB, a dizer a verdade, perdeu suas metas. Já o chamei de maior dos nossos minipartidos, porque é o partido grande que funcio­na em busca de interesses dos seus líderes, não se lhe conhecendo mais um projeto para o País. O PSDB reduziu-se à economia, vendo na privatiza­ção e no ambiente concorrencial – que deveriam ser meios para fins determinados – praticamente fins em si. O PT perdeu a chama ética; embora eu não concorde com sua caracterização como partido mais corrupto do que outros, o fato é que não conta mais com o diferencial que fazia dele um partido ímpar, único, que unia o sonho da sociedade justa – sem miséria ao sonho da sociedade justa – e ho­nesta. Mesmo assim, dos três maiores partidos, so­mente o PT mantém uma mensagem viva para o País, que é a da inclusão social – que, porém, vai ficando cada vez mais complexa. Pois essa mensa­gem está se tornando um problema, não mais uma solução; continua tendo apelo eleitoral, mas au­menta em complexidade. O governo, buscando a inclusão social dos ainda muito pobres – o que é a demanda prioritária do ponto de vista ético, tem também que atender às exigências das classes mé­dias, a antiga, que não quer perder espaço, e a nova, que deseja adquiri-lo. Fica difícil caber tudo isso no orçamento, bem como na gestão.
Neste contexto, o problema maior para o PT não é o de ganhar a reeleição, mas o de governar depois. Um quarto mandato presidencial petista pode soar o fim da hegemonia do partido. E uma lição que a política brasileira tem indicado nas últi­mas décadas é que, quando um partido perde a he­gemonia federal, é difícil recuperá-la. Não temos tido alternância no poder, mas sucessões. Ao PMDB sucedeu o PSDB, por sua vez sucedido pelo PT, e se esta análise estiver correta o retorno do PMDB à chefia do executivo federal é quase im­possível e o do PSDB, improvável. O mesmo desti­no poderá acolher o PT se ele não se renovar, ainda mais que, na presidência e depois dela, seu princi­pal líder, Lula, tem indicado nomes para as eleições mais decisivas – a própria presidência, o governo paulista, a prefeitura paulistana –, passando por cima de todas as instâncias partidárias e, portanto, desinstitucionalizando o partido, que se tornou uma agremiação praticamente sob sua tutela. Deste pon­to de vista, pouco importa se este ano se candidata­rá Dilma ou, como pedem segmentos que vão dos empresários a alguns petistas, mais uma vez Lula: o PT parece não ter, hoje, prognósticos de vida para além de seu grande líder.
Três questões em choque
Mas, não terminamos de falar em agendas. Mencionei a inconclusa, da inclusão so­cial, marca petista, agora mais difícil do que an­tes, e a nova pauta política, a de serviços públi­cos essenciais que tenham qualidade. (Por sinal, eu estranho que este ponto não seja central no de­bate sobre as aposentadorias. Hoje, o aposentado gasta muito com saúde. Se a saúde pública for boa, ele não precisará mais acumular um colchão de reservas para eventualidades graves). Existe, porém, outra agenda presente no debate brasi­leiro, a empresarial. Desde certo momento do mandato de Dilma Rousseff – escolhida por Lula como candidata, em parte pelo menos, por ser dos presidenciáveis petistas quem tinha maior proximidade do patronato e de suas preocupa­ções com a produção –, os empresários passaram a reclamar do que chamam o viés ideológico da presidente, a quem faltaria o celebrado “prag­matismo” do antecessor. O grande ponto deles é que, sem produção, sem produtividade, não há como sustentar políticas de inclusão social. Têm razão, é claro. Contudo, várias das medidas que defendem, como a flexibilização do mercado de trabalho, colidem diretamente com os trabalha­dores e, salvo uma grave crise, que a ninguém interessa, fica difícil implantá-las. Aqui, o ponto a salientar é que, por decisiva que seja a econo­mia, medidas econômicas são meios, não são fins em si próprias. Uma série de políticas sociais ga­rantiu aumentos reais aos mais pobres, mesmo sem incremento em sua produtividade, o que não converge com os interesses imediatamente econômicos do empresariado. Mas, é possível um encontro feliz da demanda por melhores sa­lários, se ela vier junto com o requisito patronal de maior produtividade, e o acordo será perfei­to se esse avanço não acarretar desemprego. O aumento na produtividade, por sua vez, depen­de estritamente de progressos na educação, nos seus vários sentidos, que vão desde a pesquisa de ponta até o treinamento para as funções no chão de fábrica. A inclusão, no diálogo político, dos setores universitários e de instituições próximas à academia, como fundações de estudos volta­das às empresas e ao trabalho, poderá constituir a ponte necessária que leve os desencontros a se tornarem encontros.
Aqui, na verdade, parece haver desencontros, tanto ideológicos quanto de interesses. No plano dos interesses, protestam os empresários contra sucessivas medidas que, aumentando controles estatais sobre o setor produtivo, inibem seu cres­cimento. No plano ideológico, os patrões opõem o “pragmatismo” de Lula, que o faz considerá-lo quase como um dos seus, à viseira ideológica que seria a de sua sucessora, que, presa de con­cepções estatistas – que hoje estariam superadas – controla demasiado os processos e perde de vista os resultados. Mas, essa queixa empresarial não está inteiramente justificada. Ela ignora o quanto os empresários são, eles mesmos, ideoló­gicos. Nem sempre adotam a política mais apli­cável ao longo prazo. Veja-se a audiência de uns poucos publicistas que, na melhor das hipóteses, procuram demonizar as políticas sociais do go­verno, justamente as mais populares junto ao eleitorado, conseguindo, com isso, apenas, fazer os políticos de oposição perderem votos; e de ou­tros, em menor número ainda, que atacam os fundamentos mesmos da democracia, sugerindo o banimento do partido que desde 2002 é o mais votado no País. São posições ideológicas, que em sua dimensão significativa se manifestam quando valores determinados pela classe social a que se pertence bloqueiam sua capacidade de agir decisivamente e de mudar a configuração das coisas. Faria bem ao empresariado se tentas­se, permitam a palavra, uma “psicanálise de sua ideologia”, vendo o que – em seus próprios valo­res – os faz avançar e o que os inibe.
De qualquer modo, coloca-se para os empre­sários pelo menos parte da conta decorrente das agendas 3 e 4: a desigualdade social só diminuirá com a ajuda do empresariado, e este será chama­do a contribuir para melhorar a qualidade dos serviços públicos mencionados. Não precisa ser sempre em dinheiro. Empresas podem aumentar a eficiência do transporte coletivo; podem conju­gar seus horários de trabalho para evitar concen­tração excessiva de demanda sobre os ônibus; podem realocar seus funcionários para mais per­to do local de trabalho; podem estimular a caro­na. No plano da saúde, podem promover a redu­ção de peso dos funcionários, substituir refeições mais pesadas no almoço e no jantar por lanches mais saudáveis a cada três horas e estimular a ginástica laboral. Na educação, podem oferecer um portfólio de aulas, presenciais, mas talvez em parte a distância, que cubram desde necessidades básicas da empresa até outras menos básicas, mas que, melhorando a vida dos funcionários, aumentem a qualidade de vida no ambiente e, fi­nalmente, a produtividade. De modo geral, hoje, todo conhecimento que emancipe, que liberte, que torne a pessoa mais autônoma em qualquer escaninho de sua vida pessoal, deve também ser útil para uma empresa, se ela preferir emprega­dos com iniciativa, capazes de resolver proble­mas e sem receio de discutir com os superiores sobre as melhores políticas a tomar.
Isso, sem falar em produzirem melhores veí­culos para o transporte público, melhores equi­pamentos para a saúde e a educação, e colaborar para uma gestão mais eficiente. Na aliança que será necessária para a quarta agenda, a empresa terá de pagar impostos (ela ou, preferivelmente, o empresário), mas sempre será melhor quando, além disso, ela ingressar ativamente na promo­ção de mudanças.
Finalmente, o timing de cada uma destas questões é diferente. A miséria e a exclusão so­cial existem há 500 anos e não se resolverão de­pressa. Mas, não pode mais ser postergada inde­finidamente sua solução. É preciso, a cada ano, que haja avanços claros. A qualidade dos servi­ços públicos é uma questão antiga, também, e que igualmente demandará anos. Mas, a socieda­de há de querer indicadores precisos de que está melhorando, e por indicadores não falo apenas em números, como também em uma percepção do cliente de que, por exemplo, será atendido no hospital no curto prazo. Já a pauta empresarial é imediata. A arte do estadista consistiria em colo­car a pauta dos negócios a serviço das pautas so­ciais. Muito, na sociedade brasileira, dependerá, nos próximos anos, da capacidade dos governos – do federal ao municipal – de fazer esses casa­mentos de interesse, em que a expansão econô­mica venha sempre com ganhos sociais. Não é fácil, mas é possível, e há iniciativas bem-suce­didas neste campo.
A crise das lideranças
Estaremos, talvez, passando, este ano, por eleições de curto prazo, aquelas que mais de­monstram uma crise de lideranças do que a resol­vem. Do lado petista, Dilma é candidata do tudo ou nada. Se ela vencer, completa os oito anos que, na tradição de uma reeleição, como nos Estados Unidos, constituem, no final das con­tas, um único mandato contínuo com recall no meio. Se perder, seu tempo terá terminado e di­ficilmente concorrerá ao mesmo cargo em 2018. Ou seja, em qualquer caso, o PT precisa pensar já em um nome para 2018, sucedendo à Dilma na presidência ou substituindo-a na candidatura, e, atualmente, não conta com nenhum líder conso­lidado para tanto.
Já o PSDB se defronta com uma crise mais imediata. Por alguma razão que tange a desrazão, ainda há quem afirme que, para a presidência, Aécio Neves é jovem e José Serra, velho. Na ver­dade, o ex-governador de Minas Gerais tem 54 anos e o de São Paulo, 72. Parece que temos um estranho senso comum segundo o qual o presi­dente deve ser eleito em torno dos 60 anos de idade (FHC: 63 anos em 1994; Lula: 57 em 2002; Dilma: 62 em 2010). Obviamente, essa convic­ção é uma bobagem. Hoje, o brasileiro tem uma expectativa de vida de 74 anos, e a maior parte dos grandes políticos a supera até de longe; mas, na República Velha, quando a expectativa média era cerca de metade da atual, todos os presiden­tes foram eleitos já quando, estatisticamente, de­veriam estar mortos. Mas, de todo modo, os dois ex-governadores paulistas que perderam a presi­dência para o PT, Serra e Alckmin, são conside­rados pela maior parte como estando fora da dis­puta, e Aécio, como não tendo conseguido em­placar. Há razões para o desgaste dos nomes paulistas. Eles se chocaram por demais frontal­mente com as políticas sociais dos governos pe­tistas, seu carro-chefe eleitoral. Na imprensa, têm forte apoio de nomes que atacam o PT não só pela política econômica, mas pelos programas mais populares.
Aécio tem a vantagem de não ter entrado nessa má jogada, ao contrário: defende os programas de inclusão. Usou o plano B do PSDB, presente des­de o começo, mas que era facilmente sacrificado, que consistia em reclamar para Ruth Cardoso e o prefeito de Campinas, Magalhães Teixeira, a pa­ternidade dos programas sociais (quando o papel do PT não foi o de criá-los do nada, mas dar-lhes escala, modificar suas concepções e torná-los irreversíveis)6. Aécio é o primeiro candidato tuca­no a efetivamente apostar no pós, e não no pré, Lula. Certamente é quem melhor entendeu o arti­go de FHC publicado nesta revista, em 2011, so­bre “o papel da oposição”, que reconhece o maior apelo do PT aos mais pobres, admitindo, implici­tamente, que ele terá sido capaz de conduzir bem a inclusão social, e propõe que o PSDB se assuma como partido para a classe média. Muda, assim, por completo o projeto tucano, que passa a apostar no sucesso, e não mais no fracasso, dos programas petistas de inclusão social. O PSDB passa a ser o possível grande ganhador desses projetos, que – ao levarem pobres e miseráveis para o patamar da classe média – aumentam o público e o possível eleitorado da agremiação tucana. A estratégia é ótima e de longo prazo. Enquanto Serra concorria em 2010 como uma espécie de última chance, per­dida a qual ele deveria passar o lugar a Aécio, este agora disputa o poder com a expectativa de só au­mentar seu cacife gradualmente. Se perder a pri­meira eleição, tem idade para concorrer de novo – e, mais que isso, com o gradual aumento das classes médias, terá mais público. Sua natural simpatia converge com seu interesse político, que o faz torcer pelo Bolsa Família, e não contra ele. Seu casamento com os programas sociais tem afe­to, não apenas interesse. Contudo, essa estratégia não parece estar dando certo. O candidato não em­placa. Por que será? Esta é quase a primeira gran­de pergunta a colocar nas análises sobre estas elei­ções, mas, como estamos a um bom meio ano de­las, também é possível uma reviravolta na sorte.
A segunda pergunta diz respeito a um casa­mento que parece ser mais de interesse do que de amor, unindo Marina Silva, depois de perder no TSE a chance de registrar a Rede, a Eduardo Campos, candidato inconteste do PSB. A união dos terceiro e quarto nomes nas intenções de voto vitaminou a candidatura, agora única, que o condomínio PSB+Rede lançará. Ele passa a dis­putar o segundo lugar com o PSDB. Marina Sil­va tem os ideais, Eduardo Campos, as alianças. Podem somar uma recepção favorável em seto­res empresariais e políticos que estão abando­nando o PSDB, assim como no eleitorado rema­nescente da impressionante votação que Marina teve em 2010. Na verdade, a sangria tucana vem já de algum tempo e, até há pouco tempo, benefi­ciava Marina mais que Eduardo. Uma conversão de economistas de persuasão liberal em defenso­res da sustentabilidade, juntamente à substitui­ção dos temas ambientais também pela difícil palavra sustentabilidade, tornaram a Rede a des­tinatária de muitos simpatizantes do PSDB em busca de ideais. Juntamente a essa caminhada para o centro de um movimento que teve na es­querda seus primeiros líderes, como Chico Men­des e Jorge Viana, houve também um desconten­tamento de muitos tucanos com a estagnação de seu partido – não iriam para o PT, mas poderiam seguir a liderança ética de Marina.
Este ponto merece destaque. Temos no Bra­sil, hoje, duas lideranças políticas especiais. Uma é a de Lula, que nasce do clamor ético pela justiça social e pela moralidade e, depois, desdo­bra-se no dirigente político que mudou o Brasil. Outra é a de Marina, já por sua história “de supe­ração” das dificuldades que viveu em criança e em jovem e que dá a seus interlocutores a per­cepção de que não fala só em PIB, mas em vida. Lideranças assim atraem, até porque fazem parte desse pequeno grupo que lidera, não porque diga aos liderados o que estes querem ouvir, e sim porque lhes dizem o que eles não sabem. Sua ha­bilidade está em que sair da divisão dizer o que querem e dizer o que não querem ouvir, e entrar num terceiro termo, o da novidade trazida, de co­nhecimento novo e perspectivas novas, inclusive de ação e de negócios.
Nos últimos meses, o condomínio PSB+Rede tem buscado mais conquistar apoios empresariais do que junto ao eleitorado. Na política brasileira, definiu-se um momento anterior ao primeiro tur­no, que poderíamos chamar de turno zero, no qual os candidatos – mesmo tendo o aval de seus parti­dos, como tem sido o caso de Aécio e Eduardo – procuram se viabilizar, sobretudo junto ao empre­sariado. É quando apresentam suas propostas eco­nômicas e, obviamente, buscam apoio financeiro para as campanhas. Embora seja inteiramente le­gítimo os empresários se manifestarem nas elei­ções, não se pode dizer que essa semitriagem de candidatos operada pelo capital contribua para a maior correção do pleito. Além disso, é provável que o Supremo Tribunal Federal proíba a doação de empresas a candidatos e a partidos, sustentan­do, com razão, que pessoas jurídicas não são elei­toras e, portanto, seu dinheiro constitui uma intro­missão externa no pleito. Isso não impedirá, certa­mente, que empresários, pessoas físicas, contribu­am, mas com base em seus rendimentos, e não mais afetando o capital da empresa. Mesmo as­sim, a bênção empresarial tem sido buscada pelos candidatos da oposição de centro-direita, Aécio, Eduardo e, ainda, Marina.
Que lideranças pode o PT oferecer? Por um lado, tem um líder de referência com um papel comparável ao que FHC desempenha no PSDB. Mas, a diferença é que Lula nunca foi descartado pelos candidatos de seu partido – Serra, em espe­cial, tentou afastar-se da imagem de FHC. Ao contrário, constitui o maior cabo eleitoral petista. Tanto assim que se cogita seu nome como corin­ga. Tem uma líder que já ocupa a presidência, o que favorece sua reeleição. Mas, não se descorti­na renovação a partir de 2018. Por enquanto, so­mente o prefeito de São Paulo, Fernando Ha­ddad, parece ter essa perspectiva, mas carrega o peso de todos os problemas de sua cidade. Em suma, enquanto a coligação do PSB e Rede tem dois nomes a escolher para 2018, o PSDB e o PT podem ficar sem candidato natural ou fácil de emplacar, o que mais uma vez os levaria a proce­dimentos não democráticos de escolha – no caso dos tucanos, ficou célebre o jantar a quatro em Nova York, que lançou um candidato presiden­cial, enquanto entre os petistas se consagrou o dedazo de Lula, fazendo escolhas sozinho.
Mas, sobre todas estas considerações de curto prazo ou mesmo de médio prazo – 2014 ou 2018 – paira um inominado. A sociedade brasileira, em que pese viver ainda enormes carências, saiu do imaginário da carência para o da dignidade. Está-se no imaginário da carência quando se pede o socorro, o emergencial – no limite, a es­mola, a cesta básica, a caridade. Sai-se desse imaginário quando se tem um cartão, que não passa por prefeito ou deputado, e que inclui obri­gações para com a saúde e a educação. Entra-se no imaginário da dignidade quando se deixa de implorar e se passa a exigir, quando se desvestem os andrajos da mendicância e se envergam os tra­jes da cidadania. Exigir serviços públicos bons é a novidade. Não escutar essa demanda ou tratá-la como antes se tratava a miséria, como algo que é necessário, sim, mas um dia, e cuja solução pode sempre ser postergada, é divorciar a categoria política da sociedade que ela representa. Então, de duas uma: um ou mais partidos despertam para esta questão e procuram construir o apoio político e os meios técnicos e de gestão que deem um salto na qualidade da saúde, educação, segu­rança e transporte públicos; ou vai crescer a cunha entre os representantes e representados, com os Anonymous – nome mais significativo é impossível ter – e os Black Blocs ocupando o vazio e se legitimando pela ação. A escolha entre um itinerário e outro está nas mãos, antes de mais nada, dos políticos e de seus partidos.

1 Tratei das manifestações numa série de artigos no jornal Valor Econômico, publicados às segundas-feiras, entre 17 de junho e 23 de setembro de 2013, e, mais tarde, no artigo Brazil and the democracy of protest, publicado nos anais da 27ª Conferência Internacional da Academia da Latinidade, sobre o tema Post-Regionalism in the Global Age: Multiculturalism and Cultural Circulation in Asia and Latin America, realizada em Kuala Lumpur, entre 8 e 10 de janeiro de 2014, disponível em http://alati.com.br/pdf/2014/malaysia/parte-6_-_Renato-Janine-Ribeiro.pdf.
 
2 Se a segurança pública não constituiu tema durante as manifestações, a razão deve estar simplesmente no fato de que as polícias estaduais as reprimiram, espancando manifestantes – e, depois, toleraram a depredação de próprios públicos, como a sede da prefeitura de São Paulo. No mínimo, isso provou sua dificuldade de lidar com protestos políticos. No mínimo.
 
3 Isso explica a mágoa de Itamar Franco ao ver o plano que ele decretou ser atribuído a FHC, o ministro que o implantou. Na verdade, os dois ex-senadores, que viriam a ser, ambos, presidentes da República, não eram conhecedores profundos de economia, mas construíram o crucial apoio político para que os economistas do plano, que depois ficariam conhecidos como tucanos, o concebessem e implantassem. Somente perto de sua morte, quando era novamente senador e se reaproximara do PSDB, Itamar viu reconhecida sua paternidade do plano.
 
4 A China, maior país do mundo, pode ter conseguido dados comparáveis, mas fora do regime democrático.
 
5 Sem querer entrar na polêmica sobre a suposta corrupção do PT, assunto que hoje racha a sociedade brasileira, o fato é que, no imaginário – nada afirmo sobre a realidade –, o partido deu maior relevo a sua agenda social e menor, à ética. O círculo virtuoso, que da ética remetia à justiça social e inversamente, rompeu-se. Este é um tema que desenvolverei em outra ocasião.
 
6 O plano A consistiu e ainda consiste em criticar os programas de inclusão social, não só por defeitos superáveis de concepção, entre os quais a porta de saída, mas também por uma série de acusações imaginárias, entre elas a de que conformaria os mais pobres com a sua pobreza e teria efeitos socialmente negativos. O livro de Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, Vozes do Bolsa Família – Autonomia, Dinheiro e Cidadania, refuta essas teses, que, porém, persistem, e mais retiram votos da oposição do que lhe dão. Quando o senador Aécio propõe incluir o Bolsa Família como programa permanente, ele rompe com esse que chamei o plano mais frequente de oposição do PSDB à iniciativa governamental.

Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, foi professor visitante na Universidade de Columbia em Nova York, em 2003-2004, e diretor de avaliação da Capes, órgão do Ministério da Educação (2004-2008). Recebeu o Prêmio Jabuti de melhor ensaio (2001), a Ordem Nacional do Mérito Científico (1998) e a Ordem de Rio Branco (2009). Seus principais interesses estão nos temas dos valores democráticos e republicanos, que incluem a escolha livre dos governantes e das leis, a honestidade no governo e o direito à divergência mais amplo possível. Entre outros livros, publicou: A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (que ganhou o Prêmio Jabuti de Ensaio, 2001), Folha explica Democracia, Folha explica República), O Afeto autoritário – televisão, ética, democracia (que discutiu no programa Roda Viva, da TV Cultura), A ética na política. Também organizou uma série de 12 programas sobre Ética para a TV Futura, depois exibidos na TV Globo. Leciona ética para jornalistas no curso da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), voltado para dirigentes de jornal. Desde 2011, mantém uma coluna semanal no jornal Valor Econômico, às segundas-feiras, sobre política.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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