03 janeiro 2012

Em Busca de Identidade

Este volume da revista Interesse Nacional contém, sem dúvida, um grande número de análises, sob os mais diversos ângulos, do Conselho Nacional de Justiça.
O que seria possível acrescentar? Talvez uma visão geral das causas que levaram à sua criação, seu modo geral de funcionamento desde sua instalação, e a percepção pelos públicos interno e externo do Judiciário quanto à sua atuação.

Para entender a criação no Brasil de um Conselho Nacional de Justiça é preciso remontar à influência exercida pelos organismos internacionais sobre os países sul-americanos, ao longo da década de 1990.

A partir de então, tornou-se corrente no âmbito da burocracia pensante dessas instituições a percepção de que as iniciativas tendentes ao desenvolvimento econômico esbarravam numa endêmica “fraqueza institucional” do Poder Judiciário. Tal deficiência acarretava insegurança jurídica incompatível com o desejado afluxo de capitais e investimentos que impulsionasse as economias da região. Por isso, deu-se início a uma onda de “Reformas do Poder Judiciário” em toda a América Latina, com financiamento dos bancos internacionais de desenvolvimento (Banco Interamericano de Desenvolvimento e Banco Mundial).

Tal financiamento trouxe consigo certa padronização de soluções para problemas diferentemente nuançados em cada um dos países. E uma dessas “soluções mágicas” consistia na criação de Consejos supervisores da atuação do Poder Judiciário. O modelo adotado, por deferência histórica, foi o Consejo de Magistratura espanhol, que teve suas atribuições mais ou menos transplantadas para o ambiente criollo.

O objetivo primordial dos Consejos era o de criar uma barreira de proteção contra as ingerências indevidas sobre o Poder Judiciário. Até hoje, sabe-se, a maior parte dos países sul-americanos não conta com judiciários organizados em carreira formada por cargos acessíveis mediante concursos públicos e avaliações de mérito. Seus integrantes tampouco recebem as garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, considerados indispensáveis respaldos para uma atuação isenta e independente. Sobrevivem as indicações (e remoções) políticas, as práticas de confirmação periódica na função por órgãos legislativos ou executivos. Diga-se, a título de exemplo, que 60% das funções judiciais num dos países da região são exercidas por juízes temporários. Que noutro, ainda recentemente, não era possível rastrear o andamento de um processo após sua distribuição. Enfim, situações que em nada garantem a possibilidade de acesso a um Judiciário isento de pressões.

Os Consejos foram, então, imaginados para funcionar como anteparo às ingerências indevidas sobre o Poder Judiciário. Tanto que uma das tarefas que lhes foram logo atribuídas foi a de organizar o recrutamento de juízes mediante concursos públicos. Durante toda a década de 1990, sucederam-se essas tentativas de reforma que não deixaram de incluir o uso de novos equipamentos de informática com vistas à agilização e maior transparência dos procedimentos.

Curiosamente, o Brasil conservou-se à margem dessa tendência geral da região. Não por discriminação das entidades financiadoras, mas por uma ausência de iniciativa em requisitar-lhes auxílio. Recordo que, quando de minha fellowship (1991-1992) para estudar administração judiciária, em Washington D.C., o Brasil figurava como “o grande ausente” nos projetos dos bancos de desenvolvimento direcionados ao Judiciário.

Contrariamente aos magistrados dos demais países da região, que viam nas propostas vindas de fora uma oportunidade de libertação do jugo dos poderes executivo ou legislativo, os juízes brasileiros encaravam com desconfiança métodos que não fossem os caseiros para lidar com a maré montante de processos que passaram a se acumular de forma dramática, a partir do processo de redemocratização e da edição da nova Constituição. A rigor, o Judiciário brasileiro seguiu trabalhando como sempre fizera, utilizando-se de métodos ultrapassados e ignorando as crescentes necessidades de gestão e aparelhamento do Poder.

Como, historicamente, nunca tivemos um Poder Judiciário subjugado, os juízes brasileiros não compartilhavam com os colegas latino-americanos da visão favorável à “intervenção” representada pelos projetos dos bancos de desenvolvimento. Tradicionalmente formado exclusivamente nas Ciências Jurídicas e Sociais, o juiz brasileiro era jurista consumado, cuja capacidade fora avaliada de forma competitiva, homem probo e culto, dedicado como sacerdote a seu mister, frequentemente um “asceta social”, retirado de mundaneidades e alheio a vaidades e luxos, porém absolutamente desligado das “realidades plebeias” do foro. Recebia da mão do seu fiel escrivão os processos que vinham a despacho e esforçava-se por dar conta da tarefa, se necessário com sacrifício de seu descanso e lazer.

Administração do foro

A administração do foro, esta, não era tarefa que se incluísse em suas atribuições, pensava nosso magistrado exemplar. Tudo quanto não dissesse respeito à alta indagação jurídica era confiado ao escrivão, ao secretário, ao diretor-geral. Também não se falava em dinheiro, salvo de quando em vez e cerimoniosamente para relembrar aos demais poderes a necessidade de reajuste de salários. Os orçamentos eram outorgados sem maiores análises de sua adequação. Se houvesse folga, construía-se um anexo ou admitiam-se novos funcionários. Se não houvesse, seguia-se em frente com os recursos disponíveis (e inatendidas as carências).

Quanto aos encarregados da administração em geral, servidores dedicados e corretos, não gozavam, porém, de autonomia ou de qualificação para adotar alterações da rotina burocrática. A bem da verdade, exercendo cargos em comissão, eles se consideravam menos comprometidos com a eficiência da prestação de serviço público do que com a tarefa de agradar a seus superiores.

Tal situação de estagnação fez com que o movimento de reforma do Judiciário no Brasil fosse desencadeado sem os juízes e, até mesmo, contra os juízes. E com que mimetizasse o tipo de reforma procedido nos demais países da região, incluindo a criação de um Conselho. A redação da Emenda Constitucional nº 45 é eloquente em demonstrar o viés correcional que foi dado à criação do Conselho Nacional de Justiça. Foi necessário um esforço ingente para retirar do texto do atual art. 103-B a função de planejamento estratégico absolutamente necessária à gestão do poder. Fala-se em controle e punição no extenso rol de seus incisos, como se a situação de descalabro a que chegamos pelo déficit na prestação jurisdicional fosse exclusivamente causada pela desídia dos juízes. Quase despercebidas, ao pé do artigo, duas alíneas cuidam de funções que permitiram que as sucessivas administrações do Conselho avançassem nas áreas de gestão e planejamento. São os dispositivos que determinam a recolha semestral de estatísticas (VI) e a elaboração de relatório anual propondo providências (VII). Nada mais.

Não se pode estranhar, portanto, que a magistratura nacional haja reagido como o fez em relação ao Conselho e que este venha demorando a encontrar sua verdadeira vocação que deve ser a de promover a eficiência na prestação do serviço público de Justiça.

Também se torna compreensível, sob este ângulo, que a própria sociedade espere encontrar no CNJ um novo Savonarola implacável a punir juízes, se possível sumariamente: dizem-no os números da distribuição dos pedidos de providências que veiculam denúncias infundadas em razão de interesses contrariados por decisões judiciais.

Da mesma forma, é possível explicar as recentes tensões verificadas na relação do CNJ com o STF, derivadas de atuações consideradas abusivas por parte da mais alta Corte.

Cada uma das quatro sucessivas gestões do CNJ procurou dar ao órgão uma configuração que o transformasse em instrumento útil aos interesses da coletividade ao invés de permanente pomo de discórdia. De minha parte, esforcei-me por configurá-lo como centro irradiador de boas práticas de gestão e busquei para isso maior aproximação com os Tribunais de Justiça Estaduais, onde se situa o principal foco de resistência ao Conselho, considerado como mais uma forma de erosão do sistema federativo brasileiro.

Conciliação

De toda a rica experiência daquele período, retiro grande satisfação em verificar que a difusão da conciliação como forma alternativa de solução dos litígios encontrou aceitação entusiasmada em todos os setores da magistratura. As Semanas Nacionais de Conciliação reúnem num esforço concentrado, sob a coordenação do CNJ, todas as instâncias judiciárias. Os resultados materiais são consideráveis, com circulação econômica de grandes quantias resultantes dos acordos firmados. As pilhas de processos são desbastadas. Mais importante, porém, é a instalação de uma nova cultura menos litigiosa, num importante trabalho de reeducação da população e dos juízes que a servem.

Ultrapassadas as dores do crescimento, tenho confiança em que o CNJ se virá a transformar no grande centro de pensamento estratégico do Judiciário brasileiro, configurando-o para bem servir a Nação que dele não pode prescindir para seguir a crescer e se afirmar no cenário internacional.

É ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente do Conselho Nacional de Justiça.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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