24 abril 2013

Energia Elétrica: Lições Não Aprendidas

Discorrer sobre a importância da eletricidade numa sociedade moderna pode parecer um tanto tedioso, tal sua obviedade. Por sua função “sanguínea” na economia, percebemos o assunto como algo natural, quase automático. Na realidade, esse fluxo depende de diversos fatores que pairam sobre essa atividade. Aspectos geográficos, tecnológicos, privados, comerciais, climáticos e, por fim, políticos regem a confiabilidade e o preço desse serviço tão essencial.
A sociedade só se dá conta de que precisa estar atenta em algumas ocasiões: quando a energia falta, quando se torna muito cara ou, pior, quando as duas situações ocorrem. Estes momentos, apesar do trauma, são didáticos, pois a partir deles os interesses conflitantes deveriam convergir para corrigir os rumos que levaram a uma situação indesejada por todos.

Como relata Bernard Tenenbaum em “The California Power Crisis Lessons for Developing Countries”, a crise advinda de especulações permitidas por um sistema desregulado provocou perdas ao mercado, aos consumidores e ao governo daquele estado americano. Nova Zelândia e Chile também enfrentaram problemas com uma regulamentação que, dada a forma de desenvolvimento dos sistemas existentes nesses países, estava longe de ser considerada uma fórmula de sucesso global.
O racionamento de 2001 no Brasil foi a maior das experiências de insuficiência de energia sentidas por um país sem desastres naturais ou guerras. A gestão adotada pelo governo contou com a ajuda do consumidor que conseguiu reduzir a carga em impressionantes 25%. Finda a vigência do decreto, a demanda retomou o crescimento, mas em um nível 15% abaixo dos verificados antes de 2001. Esse fato é de suma importância, porque, até hoje, há sequelas deixadas por esse período, como se verá neste artigo.
Numa perspectiva de dez ou até 20 anos, não se pode dizer que o setor elétrico esteja estagnado ou ameaçado. Percebem-se alguns atrasos de obras, aumentos de interrupções e problemas de coordenação entre instituições num setor agora fragmentado, mas não se pode afirmar que há falta de investimento.
O que é verdadeiramente espantoso é a perda da vantagem comparativa da energia a preços módicos. Como indicam dados da Agência Internacional de Energia, confrontos com sistemas de matriz energética semelhante são tão díspares que não se justificam nem com pretextos de câmbio ou impostos. A tarifa do Rio de Janeiro é o triplo da de Montreal, no Canadá. Cotejos com o próprio Brasil de 15 anos passados mostram aumentos reais de tarifa da ordem de 100%. Além disso, passamos a ter uma estrutura muito complexa, tornando um setor de tecnologia conhecida um mistério para a maioria das pessoas.
O Brasil sofreu uma profunda mudança de paradigma em tempo recorde e não foi uma simples aplicação de uma fórmula de sucesso em outros países. A transposição exigiu uma complicada, subjetiva e ainda incompleta adaptação de modelos típicos de sistemas térmicos. Portanto, para entender o que ocorre no nosso setor elétrico, não há como evitar alguma aridez de argumentos técnicos.
Em primeiro lugar, a adoção de reformas mercantis nos setores elétricos mundiais não está isenta de críticas. Paul L. Joskow, grande especialista em regulação, examinando o caso da Califórnia, dois anos antes da crise de 2001 – quando um único MWh chegou a valer US$ 2.500 –, avalia que os “modelos competitivos têm muita dificuldade em replicar as eficiências de sistemas com despacho centralizado e sinergia entre transmissão e geração”. Tal observação é curiosa e importante por ser justamente o caso brasileiro.
John Byrne e Yu-Mi Mun em “Rethinking reform in the electricity sector: Power liberalization or energy transformation?” relatam que “a experiência com a liberalização de setores elétricos em diversos países tem mostrado que a criação de um mercado genuíno é uma tarefa extremamente difícil. Após substituir monopólios, muitos países viram as empresas substitutas se reintegrarem. O resultado efetivo tem sido o surgimento de oligopólios que tendem a ser dominados por corporações multinacionais”.
O assunto é controverso e, na literatura, não há consenso sobre a conveniência ou não da adoção de modelos competitivos. Este texto não tem sequer a intenção de deliberar teoricamente sobre a questão. Entretanto, a experiência brasileira se reveste de obstáculos e dificuldades não observadas em outros sistemas. As recentes medidas para redução tarifária, lamentavelmente, passaram ao largo dessas questões estruturais. Esse é o foco do artigo.
A evidente singularidade
Segundo informações da Agência Internacional de Energia, o Brasil gerou 2% da eletricidade no mundo, numa lista onde os Estados Unidos respondem por mais de 20%. Apesar de marginal, a nossa matriz renovável nos coloca entre os líderes na produção de energia advinda de fonte não fóssil, uma raridade no mundo. Considerando apenas a hidroeletricidade, o Brasil ocupa o segundo lugar (12%), com a China em primeiro (15%). Apenas seis países (China, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Rússia e Noruega) detêm quase 60% dessa forma de produção. Mesmo nesse seleto “clube”, há outras características que nos diferenciam ainda mais. O predomínio da hidroeletricidade mostra que, enquanto a Noruega tem 99% de sua energia de origem hídrica, o Brasil tem 86%, o Canadá, 60%, a Rússia, 20% e os Estados Unidos, apenas 8%.
Afunilando ainda mais a seleção, há sistemas que armazenam a energia primária produtora da eletricidade – a água – em quantidades significativas. Com esse filtro, sobram apenas dois: o canadense e o brasileiro. Segundo o World Water Development Report II, o Canadá possui reservatórios capazes de guardar quase 700 km3. O Brasil figura em segundo lugar, com 500 km3.
O Canadá não tem um sistema integrado como o Brasil, mas a maior similaridade está no sistema de Quebec, capaz de armazenar o equivalente a três meses da sua carga, enquanto o brasileiro “guarda” cinco meses. Qualquer atividade que funcione com um estoque sabe que o bom atendimento da demanda depende da sua gestão. Uma decisão tomada no presente afeta o futuro e vice-versa. É um sistema com links temporais, característica inexistente nos sistemas de base térmica. Como o “fornecedor” da sua matéria-prima é a hidrologia de rios tropicais, a gestão com horizonte de longo prazo é ainda mais essencial.
“One size fits all”
Apesar das semelhanças, o Brasil não foi buscar no Canadá sua inspiração. Escolheu a Inglaterra, inclusive com a contratação dos consultores Coopers&Lybrand daquele país. É verdade que os setores elétricos no mundo passavam por uma mudança de paradigma que, em certos sistemas, fazia todo o sentido. Mas, a década de 1990 foi pródiga em recomendar receitas genéricas independentemente de peculiaridades físicas. Foi uma espécie de “One size fits all” no mundo elétrico.
Para adotar um ambiente de mercado no Brasil, as usinas não podem comercializar a sua própria geração, pois a competição iria se chocar com o caráter cooperativo do nosso sistema. Assim, cada usina vende uma fração da energia total produzida. Essa “parcela” é calculada por uma complexa matemática que “emite” um certificado fixo, a garantia física, que, em teoria, é sua “contribuição” para o sistema. Portanto, diferentemente de outros exemplos, um “todo” se sobrepõe às partes, evidenciando características de monopólio natural. O primeiro ponto a se salientar no nosso mercado de energia é a desconexão do mundo real. O kilowatt-hora (kWh) que se comercializa não é o kWh gerado. Evidentemente, isso vai exigir uma complicada etapa de acertos entre o virtual e o factual. Um excelente exemplo da dimensão desse ajuste é que 72% da nossa capacidade instalada é formada de usinas hidráulicas. Apesar disso, elas são responsáveis por quase 90% da energia gerada, porque cobrem parte da garantia física das térmicas.
Adicionalmente, a nossa transmissão tem uma rara função sinérgica, pois eleva a quantidade de energia ofertada, ao transportar muita energia entre regiões, evitando vertimentos e, assim, transformando mais água em kWh. Cerca de 10% dos certificados das usinas são devidos ao papel integrador da rede. O segundo item notável é que, ao separar essas funções sinérgicas, o modelo já se choca com uma forte característica estrutural do sistema físico.
A variabilidade das afluências e a diversidade hidrológica resultam em gerações variáveis, em contraste com os certificados de garantia física. Para maximizar a energia ofertada é necessário o despacho das usinas sob ótica monopolística, ou seja, o operador atua como se fosse o seu único proprietário. A decisão é tomada com base em um parâmetro, o Custo Marginal de Operação (CMO), número em reais por megawatt-hora (R$/MWh) que “traduz” o valor da água reservada no sistema. O operador lida com estimativas do futuro e precisa adotar alguns parâmetros subjetivos, tais como o custo do déficit de energia e a taxa de desconto do futuro. Os preços, que são concretos em outros sistemas, aqui, dependem dessas variáveis estimadas que ultrapassam em muito o âmbito do setor, mas, ironicamente, tornaram-se números internos sem uma ampla discussão sobre suas consequências. Outros parâmetros resultariam em diferentes CMOs, outros preços e distintas políticas de operação.
O CMO não é relevante apenas na operação. No planejamento, ele é fator de ponderação, definindo as grandezas comerciais dos leilões a partir de operações simuladas. Como se não bastasse, esse parâmetro é também o paradigma do preço de curto prazo no mercado livre, ambiente em que é feito o acerto entre o real e o certificado, levando a frequentes preços irrisórios e, de tempos em tempos, valores impagáveis. Assim, o terceiro ponto a salientar é que não há sistema no mundo em que uma variável matemática tenha a importância que tem o CMO no sistema brasileiro.
A priori, não há problemas em haver um mercado livre no nosso especial sistema. A dificuldade é aceitar que ele funcione com um preço virtual muito volátil, com viés de preço baixo, viabilizando a captura não isonômica de vantagens advindas da singularidade brasileira. Comparações com o Nordpool (Mercado entre Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca) mostram que, de 2002 a 2011, o spot brasileiro apresentou um valor mínimo dez vezes menor e um máximo duas vezes e meia maior do que os ocorridos naquele mercado, evidenciando uma volatilidade bastante anormal para um mercado de energia.
Assim, pretensamente desconexa do mundo mercantil, toda a política energética e comercial está “aprisionada” numa metodologia matemática de alta complexidade, originária da operação. Qualquer alteração em um dos lados provoca mudanças no outro.
Para ilustrar o entrelaçamento de problemas, a operação adotada em 2012 é reveladora. Partindo de níveis de armazenamento elevados e sob uma hidrologia que não pode ser classificada como crítica, a reserva se aproximou perigosamente de seu nível mínimo. Em 2013, teremos geração térmica na base da carga para compensar esse esvaziamento. Isso trará um custo adicional para o consumidor, uma vez que sua tarifa supõe um uso médio de térmicas muito abaixo do atual.
O fato é bem mais grave do que se supõe, porque atinge o planejamento, que, ao definir os certificados das usinas, simula uma operação mais “econômica” das térmicas, dado pelo conjunto de CMOs calculados nessa fase. Como já surgem evidências de que o critério precisa ser alterado, todos os certificados comerciais precisariam ser revistos, pois foram calculados sob outro conjunto de CMOs. Essa dissidência entre planejamento e operação vem se agravando pelo efeito da redução da capacidade de reserva relativamente à carga. O efeito, evidentemente, também atinge o mercado livre.
A Matriz Elétrica Brasileira
É sob esse cenário metodológico, singular e complexo que se trata a questão da matriz elétrica brasileira. Sem perder esse contexto, há dois grandes questionamentos:
I – Até que ponto se está realmente decidindo qual a matriz energética?
A questão ambiental afirma que a energia é a grande vilã do aquecimento global. Em função do potencial hidrelétrico brasileiro, o país tem posição privilegiada na produção de energia renovável, mas é preciso reconhecer que hidrelétricas podem provocar conflitos se considerada a dimensão regional. Afinal, apesar de não serem meras “fábricas” de kWh, são tratadas como tal sob o “pragmatismo” mercantilista.
Nesse contexto, é essencial questionar como o Brasil se insere na geopolítica mundial. O indicador “intensidade energética do PIB” revela a energia primária envolvida na economia. De 1980 até 2006, o Brasil passou de 9.000 para cerca de 12.000 BTU’s (unidade térmica britânica) por dólar de PIB, um incremento de 44%, mostrando que o país se “energizou” bem mais do que em 1980. No mesmo período, a maioria dos países desenvolvidos evoluiu no sentido contrário. Em 2006, eles precisam de aproximadamente 40% menos energia para “ganhar” US$ 1,00, na comparação com 1980.
O interessante é registrar que a China e a Coreia do Sul registraram a mesma queda de intensidade. A Índia, a partir de 1996, também reverte a tendência da economia “energívora” e reduz o índice. Esse número nada diz sobre o consumo de cada país, que pode estar consumindo muito mais do que consumia em 1980. A diferença é que sua economia produz mais renda por unidade energética. Sob o ponto de vista capitalista, o “esforço” está valendo cada vez mais. O Brasil, ao contrário, usa cada vez mais energia para produzir o mesmo US$ 1,00.
Qual será o nosso futuro? O Plano de Desenvolvimento Energético 2020 mostra que a característica “energívora” da economia será bastante aprofundada. Até lá, setores eletrointensivos mais do que dobrarão sua produção. Alguns exemplos: alumínio (166%), siderurgia (203%), ferro ligas (202%), cobre (351%), celulose (192%) e soda cloro (165%).
Um país que se dispõe a ser o fornecedor de produtos básicos para o mundo deve entender que, ao fazê-lo, está assumindo os riscos e custos crescentes do desenvolvimento das necessárias fontes de energia. Seria improvável achar que essa indústria pesada seria “servida” por leves usinas eólicas, biomassa e pequenas centrais hidráulicas. Conflitos ambientais, sociais e regionais são decorrentes da opção que fazemos. Esse registro é também importante para entender as recentes intervenções políticas feitas no setor.
II – Como hidrelétricas se ajustam num modelo competitivo?
O Brasil talvez não consiga explorar todo o seu potencial hidrelétrico. Em parte, porque ele pode estar superestimado, mas também porque novas usinas se aproximam da Região Amazônica. A Agência Internacional de Energia, ao comparar impactos ambientais de diversas fontes, faz uma importante observação sobre as hidrelétricas nesse contexto mercantil.
“Quase todas foram construídas sob um sistema que garantiam estáveis contratos de longo prazo. Isso assegurava uma taxa de retorno aceitável a esses investimentos. Num mercado competitivo, a estabilidade de receita não é garantida. Dado que requerem vários anos de planejamento e construção, a flutuação de preços, típica desse sistema, acaba por favorecer outras formas de geração. Por que, então, sob um ponto de vista econômico, construir hidrelétricas sob mercados competitivos? A razão ainda é o baixo custo de operação, além da imbatível flexibilidade técnica. Sob a pura lógica de competição de mercado, apesar desse diferencial, novas hidrelétricas estão em desvantagem como uma opção de suprimento.”
Hidrelétricas são avistadas por satélites, têm uma vida útil muito superior às outras formas de geração e, principalmente, podem prestar muitos outros serviços. Portanto, qual o sentido de se adotar um modelo mercantil em que elas entram em pé de igualdade com outras fontes? Como uma hidrelétrica na Amazônia pode competir com uma térmica em São Paulo? O planejamento de uma nova usina em regiões isoladas poderia ser uma boa chance de se pensar a integração de vários interesses. Portanto, em vez de mitigar impactos, a ótica deveria ser a de integrar a usina a uma visão de planejamento regional. Assim, há pouco sentido de se construir estes complexos sem a participação da sociedade local e de ministérios, tais como Agricultura, Transportes, Integração Nacional, Turismo, Cidades e até Desenvolvimento Agrário.
A insistência em deixar “o mercado decidir” ampliou o problema ao criar um mecanismo de leilões genéricos que tenta se adaptar às singularidades do sistema, vencendo a fonte que, numa simulação da operação, tem o melhor Índice de Custo e Benefício. Na realidade, como o índice padece das subjetividades da adaptação, resultados inesperados podem ocorrer. Térmicas a gás, com alguma inflexibilidade de geração, apesar de custos mais baixos, podem perder os leilões para caras térmicas a óleo, menos despachadas. Ou seja, sob o modelo mercantil, gerar energia pode ser uma desvantagem.
A inserção das eólicas também é um caso complexo. Apesar de incipiente na matriz, já é perceptível a feliz não coincidência entre ventos e hidrologia. As térmicas recebem certificados de “garantia física” elevados justamente por complementar a hidrologia. As eólicas têm sido admitidas com fatores de capacidade altos, informados pelos fabricantes, mas não há estudos que reconheçam o efeito sistêmico similar às térmicas.
A questão tarifária como peça política
A experiência do racionamento teve um papel importante na mudança de governo em 2002. Em 2004, foram adotadas medidas corrigindo os erros mais óbvios da formulação anterior, sendo a retomada do planejamento e a exigência de contratação de longo prazo para as distribuidoras as mais importantes. Entretanto, permaneceu intacto o caráter mercantilista por certificados, com um mercado livre influenciado por um parâmetro matemático, uma excentricidade entre as estruturas de outros sistemas.
O irônico é que a Constituição de 1988, considerada “estatizante” por muitos, foi a semente do atual modelo do nosso setor elétrico. Tratando a exploração de potenciais hidráulicos com um serviço público como qualquer outro, eliminou o princípio da “justa remuneração” constante na Carta de 1946 e tornou obrigatória a licitação, findo o termo da concessão.
Tal estrutura jurídica não é comum em sistemas hidrelétricos, pois uma usina não é apenas uma fábrica de kWh, e, em consequência, outros atributos são estranhos numa concorrência por preço. Canadá e Estados Unidos mantêm os concessionários, mesmo privados, justamente para poder se aproveitar da amortização do capital investido em prazos compatíveis com a extensa vida útil das hidráulicas sob os princípios da return rate regulation. Dos 50 estados americanos, apenas 15 estão sob a égide mercantil. A lei anterior, PUHCA, Public Utility Holding Company Act de 1935, continua válida na maioria. Uma empresa só perde a concessão de uma hidrelétrica se cláusulas contratuais forem descumpridas, e essa decisão é exclusiva do Ferc (Federal Energy Regulatory Commission).
Aqui, a partir Lei 10.848/2004, a tarifa passou a ser efetivamente definida “pelo preço”, perdendo o vínculo com os estágios de amortização e, evidentemente, com o conceito de serviço pelo custo já eliminado pela Lei 8987/95. Portanto, é preciso enfatizar que esse desacoplamento, previsto no modelo de 1995, foi confirmado na reforma de 2004.
Assim, a Lei nº 12.783, de 2013, ao ser justificada como um “resgate” de direitos do consumidor que “já teria amortizado a usina” é uma guinada de princípios, pois ressuscita a “justa remuneração do capital”, colidindo com as bases mercantis ainda vigentes. Além de transmitir insegurança regulatória, a reforma terá de enfrentar o desafio de harmonizar a convivência de dois modelos que têm fundamentos opostos.
A questão das concessões envolve muitos outros temas, mas está sendo usada apenas para a contenção das tarifas, pois os índices de aumento de preços são assustadores. Dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostram que, em 1995, a tarifa média residencial em R$/MWh era de 76,26 e a industrial, de R$ 43,59. Em 2011, elas atingiram respectivamente 314,42 e 247,92. Descontada a inflação medida pelo IPCA no período (173,47%), o crescimento real da tarifa residencial foi de 70% e da industrial, 135%. Apenas esses números já deveriam ser capazes de provocar uma grande “imersão” no estudo das razões dessa explosão. Em 2004, ano da reforma feita no governo Lula, a tarifa industrial já tinha se elevado 76% acima da inflação e, misteriosamente, nem a indústria reclamava e nem o governo pensava em medidas para conter o apetite tarifário do modelo.
Mas, em 2012, a indústria (conduzida pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp) lidera uma campanha declarando perda de competitividade e, ultrapassando qualquer limite institucional, acusa os preços das estatais, que, curiosamente, em função do leilão de 2004, foram os únicos que reduziram. O alto custo da energia brasileira é incontestável, mas, se ela fosse fator decisivo na competitividade da indústria em geral, as italianas e japonesas estariam quebradas, porque pagam até 60% a mais do que se cobra aqui. Além disso, segundo dados da Pesquisa Industrial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, excetuando-se os eletrointensivos, o peso da energia no custo da indústria não passa de 4,5%. Portanto, a perda de dinamismo da indústria nacional, que obviamente não depende apenas da energia, entra como peça política no cenário do setor e dá fortes indícios de grande influência da indústria pesada sobre o governo.
Remédio sem diagnóstico
As origens da elevação de tarifa são inúmeras. A cada decisão tomada durante esses últimos 15 anos, novos patamares de preço iam sendo atingidos numa verdadeira escalada:
• Descontratação das estatais em 2003, com troca de contratos até 150% mais caros;
• Aumentos de mais de 30% para as distribuidoras, compensando a queda de demanda pós-racionamento;
• Parcelas da conta de luz indexadas ao IGP-M;
• Criação de uma energia “de reserva”, apesar de termos uma energia que se diz “assegurada”;
• Custos fixos majorados como se fossem proporcionais ao mercado (erro apontado pelo Tribunal de Contas da União – TCU);
• Aumento do custo de transmissão (mais de 100% por quilômetro);
• Uso de geração térmica não prevista em função de óticas diferentes entre operação e planejamento;
• Proliferação de encargos, a maioria ironicamente criada após a reforma mercantil do setor;
• Sobre tudo isso, a intocada alta carga tributária.
Até 2007, a tarifa do mercado cativo subia, mesmo com os preços reduzidos das estatais, mas a indústria não reclamava. Enquanto ocorriam aumentos recordes, a energia das hidráulicas, descontratada, era “liquidada” no mercado livre por valores irrisórios. Obviamente, grandes consumidores migraram para esse mercado, aproveitando o “derrame” de energia quase gratuita oferecida pelo modelo. De 2003 a 2007, o número de consumidores livres passou de 49 para 602 e, hoje, o mercado representa quase 30% da carga total. Esse ambiente é cercado de segredos de informação por motivos estratégicos. Mas, é possível perceber comportamentos especulativos que, através de uma elevada proporção de contratos mensais ex-post, se aproveitam da predominância de preços extremamente baixos do CMO, uma óbvia singularidade brasileira. Ou seja, no modelo brasileiro é possível “capturar” 1 MWh por R$ 16 ou pagar 30 vezes mais.
A redução de tarifas à custa das empresas públicas
Em sintonia com a campanha da indústria e sem a devida transparência, o governo emite a medida provisória 579 de 11 de setembro de 2012, que oferece a renovação antecipada das concessões sob drásticas reduções de receitas.
Evidentemente, o alvo principal era o grupo Eletrobras que construiu as usinas mais antigas e que, segundo a Fiesp e o governo, já estariam amortizadas. É óbvio que as concessionárias não decidem o quanto devem amortizar ou depreciar a cada ano. Portanto, a quantia exata estava registrada nos balanços do setor, que, até essa intervenção, tinha um dos mais rígidos manuais de contabilidade do país. Mas, se fosse aplicar o regulamento existente, o governo iria expor o fato de que as empresas nunca deixaram de investir em suas antigas usinas e o resultado não seria suficiente para a redução prometida2.
Como conseguir tarifas 20% menores sem interferir em quase nenhuma das causas? Como conseguir, se apenas 20% das usinas estavam em final de concessão? Como atingir tal objetivo se a parcela de energia comprada não ultrapassa 40% das contas e nem toda é originada de hidráulicas? Como conseguir pela redução do custo da transmissão, quando, apesar de 70% das linhas estarem sujeitas à intervenção, essa parcela não chega a 10% do custo final? Como reduzir tarifas se nem todas as empresas aceitariam a imposição?
Contrariando sua independência e a própria atuação com o outro sistema contábil, a Aneel institui a tarifa por usina, uma excentricidade, pois, no resto do mundo, quem tem “tarifas” são as empresas. O conceito de concessão foi atingido, pois, ao sujeitar uma receita compulsória para as usinas e linhas como se fossem ativos estanques, três malefícios são implantados:
1. As empresas passam a ser meras “empreiteiras” de operação e manutenção (O&M), perdendo a iniciativa de investir, pois, qualquer despesa que não for classificada como O&M deve ser previamente autorizada pela agência reguladora. Essa situação colide com o conceito de concessionário que, por definição, age em nome da União, merecendo deste a confiança através da devida fiscalização quanto à qualidade. Sendo estatais, sujeitas a regras rígidas de contratação e licitação, a complexidade e a burocracia impõem ineficiência. Empresas decidem investir em melhorias para não perder mercado, para evitar acidentes e até para não serem multadas pelo operador do sistema ou pela própria agência reguladora. Sendo a empresa a mais profunda conhecedora dos detalhes de uma instalação, como imaginar que a agência reguladora será capaz de julgar em tempo hábil as necessidades de usinas tão diferentes? Pode-se imaginar os problemas judiciais que surgirão quanto à apuração de responsabilidades no caso de falhas.
2. Por outro lado, com um orçamento exclusivo para sua atividade, a usina ou linha deixa de participar da vida da empresa, que, sendo uma concessionária, tem uma inserção na sociedade que não se limita a gerar e transmitir energia. Basta observar o envolvimento da usina no universo microeconômico dos municípios no entorno dos reservatórios. Como exemplo, a usina de Furnas, atingida pela medida, mantém diversos convênios históricos com os municípios vizinhos que, obviamente, não podem ser classificados como compromissos de O&M. Também serão quebrados vínculos com laboratórios, estudos, patrocínios e convênios fora dos limites geográficos da usina, ameaçando um patrimônio intangível, construído ao longo de décadas.
3. A transmissão das estatais, base essencial da rede básica, imbuída do transporte de energia entre regiões, já sofrera uma enorme redução de receita por ocasião das privatizações, então iminentes. Como não havia tarifas separadas para a geração e transmissão, a ideia foi deslocar toda a rentabilidade do conjunto para as usinas, que seriam vendidas. Portanto, a lei nº 12.783/2013 irá provocar uma redução adicional à já deprimida receita. Isso ocorre justamente no principal elemento responsável pela não ocorrência de interrupções e que, com certeza, necessitará de modernização por causa da complexidade adicional do sistema ao criar uma rede com vários proprietários. Uma burocracia equivalente à do primeiro item certamente exigirá recursos do Tesouro, pois o que se demanda não poderá ser classificado como O&M.
Como se não bastasse o “desacoplamento” contábil de usina e empresa, os valores foram definidos por uma matemática contestável, na qual, dada a capacidade instalada e uma estimativa da geração, a Aneel atribui a tarifa. Para ilustrar a simplificação, uma usina de 800 MW com duas turbinas de 400 MW tem exatamente a mesma despesa de O&M que outra com oito máquinas de 100 MW. Condições ambientais, grau de automação e restrições de operação foram desprezadas pela Aneel.
A partir da vigência da lei, a Eletrobras terá sua receita reduzida em 70% da noite para o dia, outro ineditismo mundial. A tarifa média das usinas “amortizadas” de Furnas será de R$ 9,73/MWh e a da Chesf, de R$ 7,10/MWh, que são extremamente baixas. Comparações internacionais apontam para o dobro desses valores. Em termos do preço anterior, a redução ultrapassa 90%, e, em conflito com toda essa futura penúria, a Eletrobras permanece envolvida em todos os projetos ditos estruturantes, com investimentos comprometidos da ordem de R$ 25 bilhões. Para os investidores no mercado de capitais, as modificações foram mal recebidas, impondo uma redução de 57% no preço das ações da Eletrobras nos últimos seis meses.
Como os prazos das concessões não findaram, alguma indenização por ativos não amortizados seria devida. Os registros contábeis do setor foram abandonados, pois os recursos disponíveis estavam limitados a R$ 20 bilhões da Reserva Global de Reversão, encargo criado para esse fim na década de 1950. Apesar de não existirem duas usinas hidrelétricas iguais, o critério adotado foi o de “Valor Novo de Reposição”, que avalia o montante investido a partir de uma usina virtual que “emula” a usina real. Essa prática foi apoiada a partir dos exemplos de usinas consideradas paradigmas de baixo custo, como Santo Antônio, Jirau, Belo Monte e Teles Pires.
Curiosamente, as usinas de Xingó e Santo Antônio têm aproximadamente a mesma garantia física. Santo Antônio, considerada um exemplo, prevê investimentos de R$ 15,1 bilhões. A Aneel estimou em 48,47% o porcentual do investimento não amortizado de Xingó, fixando em R$ 2,9 bilhões o valor devido. Adotando Santo Antônio como parâmetro, o valor deveria atingir R$ 7 bilhões, mas o valor registrado pela Chesf é de apenas R$ 4,4 bilhões. O caso serve para mostrar que cada usina percorreu dificuldades e facilidades próprias da época em que foi construída e essas comparações são arbitrárias. Na realidade, esse resultado surpreendente seria obtido para qualquer das quatro usinas mencionadas, e o conceito de Valor Novo de Reposição, se aplicado à própria Santo Antônio, subestimaria o investimento.
Outras propostas também vão afetar o consumidor cativo. Como a energia das usinas amortizadas será alocada para as distribuidoras na forma de “disponibilidade”, o risco de hidrologias insuficientes será assumido pela empresa que, obviamente, repassará ao seu consumidor. Uma nova estrutura tarifária prevê a adoção de “bandeiras tarifárias” quando o preço para o consumidor variaria de acordo com o custo de operação. De acordo com documentos divulgados pela Aneel, haveria a aplicação de três bandeiras: verde, amarela e vermelha. Na bandeira amarela, haveria um valor acional de R$15/MWh sobre a verde; na vermelha, R$30/MWh. Elas podem trazer mais conflitos, pois não há como distinguir os consumidores que “merecem” receber a “multa”. Assim, os “econômicos” seriam gravados da mesma forma do que os “perdulários”. Além disso, se a situação dos reservatórios vai ser um sinal para o mercado cativo, por que não propor um desconto quando eles estão cheios?
Conclusão
Por não reconhecer sua própria singularidade, o Brasil adotou um modelo mimetizado de sistemas térmicos e, apesar das lições, ainda vacila entre princípios regulatórios opostos, gerando uma estrutura confusa que não atende adequadamente a nenhuma das filosofias.
Na Lei nº 12.783, percebe-se uma tentativa de introduzir uma variante tímida do modelo de comprador majoritário, sugerido ao governo em 2003, mas nunca divulgado3. Baseado em contratos por capacidade (MW) com uma instituição pública (que não necessitaria ser estatal), a ideia seria a de reconhecer que, dada a variabilidade da geração real de cada usina, não tem sentido a adoção de um mercado virtual de certificados fixos de energia (MWh), que dependem de critérios, no mínimo, discutíveis.
Usinas podem ser privadas, mas a sua energia natural, a água, pertence a todos. Portanto, qualquer acréscimo de geração advinda de hidrologias favoráveis não poderia ser apropriado no mercado por um preço que nada tem a ver com custos de produção. Excessos financeiros advindos de períodos de bonança hidrológica seriam usados para compensar a situação inversa. O sistema, menos fragmentado e bem mais apropriado às singularidades brasileiras, traria segurança aos investidores, que receberiam uma receita fixa pela usina e não estariam sujeitos aos riscos hidrológicos, que seriam repassados ao comprador majoritário. Claro que nenhum sistema é perfeito, mas não tendo sido debatido, foi abortado no nascimento.
Recentemente, impostos foram cortados para incentivar o setor automobilístico, mas, no caso do setor elétrico, a elevada carga tributária permaneceu intocada. A redução de alguns encargos setoriais irá inclusive exigir recursos adicionais do Tesouro, o que nada mais é do que recurso do contribuinte. Numa peculiar analogia, se a Lei nº 12.783/2013 fosse usada para os automóveis, o governo reduziria o preço da matéria-prima, o aço, como já fez no passado. Como o setor siderúrgico não é mais estatal, a solução intervencionista não seria viável. Sob esse argumento, alguns dirão que a solução é a privatização. Talvez seja, mas, seria necessário explicar porque tantos projetos ainda dependem de parcerias com empresas públicas.
A regulamentação do setor está de tal forma enredada em decisões desestruturadas que se transformou num grande quebra-cabeça. O setor necessitaria de um amplo diagnóstico que envolvesse as instituições públicas e privadas, universidades e associações setoriais para examinar todos os problemas técnicos, regulatórios e políticos envolvidos. A proporção da tarefa associada a recentes demonstrações de pouco diálogo por parte do governo parecem afastar essa possibilidade.
As medidas adotadas para a redução tarifária preferiram fragilizar a maior empresa de geração e transmissão da América Latina, em vez de atacar suas causas. Há dúvidas de que essa política possa ser sustentada no longo prazo e, apesar de todo o trauma, com consequências imprevisíveis, continuaremos um “ponto fora da curva” entre sistemas com matriz energética semelhante.
A sociedade brasileira tem grande dificuldade de compreender a complexidade técnica do tema e, equivocadamente, só vislumbra o prisma “privatização versus estatização”. Por outro lado, as sofríveis performances de alguns serviços privatizados e a crescente interferência técnica, política e gerencial nas empresas federais dão a impressão de que, hoje, não sabemos nem privatizar e nem gerir empresas públicas.
O “canto da sereia” da energia mercantil não foi tão amplo quanto se imagina. Na realidade, nunca existiu essa receita de bolo global. Cada país adotou um sistema específico à sua própria realidade. Nesse quadro, o Brasil parece ser uma lamentável exceção, pois foi buscar o seu caminho em experiências alheias incompatíveis com sua natureza.
2. Os balanços financeiros do setor, além de perderem a isonomia entre empresas, perdem qualquer avaliação temporal, dada a brutal descontinuidade dos números.
3. O capítulo 4 do livro “Setor Elétrico Brasileiro: Uma Aventura Mercantil” descreve a estrutura em detalhe.

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