11 janeiro 2013

Erros e Absurdos do Projeto de Código Penal

O projeto de Código Penal, também denominado Projeto Sarney, insere-se em um programa de alteração ampla da legislação brasileira ideada pelo presidente do Senado, José Sarney, em face do insucesso de sua primeira iniciativa no começo da legislatura, em 2011, qual seja a reforma política, que deu em águas de barrela. Na ocasião, não se alcançou sequer a modificação da data de posse do presidente da República de 1º para 15 de janeiro.

Considerações gerais

O projeto de Código Penal, também denominado Projeto Sarney, insere-se em um programa de alteração ampla da legislação brasileira ideada pelo presidente do Senado, José Sarney, em face do insucesso de sua primeira iniciativa no começo da legislatura, em 2011, qual seja a reforma política, que deu em águas de barrela. Na ocasião, não se alcançou sequer a modificação da data de posse do presidente da República de 1º para 15 de janeiro.

Diante do fracasso da reforma política, o presidente do Senado Federal criou outra agenda positiva referente à alteração de nossa legislação, compreendendo projetos de novos códigos: Código de Defesa do Consumidor, Código de Processo Civil, Código de Processo Penal, Lei do Pacto Federativo, Código Penal e Lei de Execução Penal.

O Senado constituiu comissão para elaborar anteprojeto de Código Penal, seguindo critérios políticos, pois cabia aos líderes partidários indicar os membros da Comissão. Os dois mais experientes membros componentes da comissão vieram a renunciar ao encargo, sendo eles a ministra Maria Thereza de Assis Moura e o professor René Ariel Dotti, que desistiu de colaborar diante dos métodos adotados na elaboração do trabalho.

Com efeito, René Ariel Dotti, em recente artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), destacou que “a origem parlamentar do anteprojeto e o açodamento proposto para o calendário de discussão e votação do projeto têm um claro objetivo: obter a aprovação no Senado Federal durante o mandato do atual presidente”. René Ariel Dotti afastou-se da comissão ao perceber que se transformara, como informa, “um procedimento legislativo de reforma penal em oficina de propaganda do Senado Federal”.

Durante os trabalhos de elaboração do anteprojeto, a comissão tinha contato intenso com a imprensa, que noticiou de forma bombástica propostas inovadoras, como criminalização do bullying, da homofobia, do terrorismo e a permissão da eutanásia e do aborto.

Havia uma forte aura de inovação propagada pela assessoria de imprensa do Senado. Desconhecia-se o texto, não divulgado para conhecimento de toda a sociedade e, especialmente, para os participantes da administração da justiça penal, penalistas e estudiosos do direito penal. O texto do anteprojeto foi apresentado ao Senado e, logo no dia seguinte, transformado em projeto de lei, do qual constava como proponente o presidente do Senado.

Quando veio a lume o teor do projeto, o espanto foi imediato, diante dos absurdos e impropriedades técnico-jurídicas flagrantes. Começou a reação à tentativa de se impor apressadamente este projeto, mesmo porque o calendário para tramitação de projeto de imensa complexidade, como um novo Código Penal, era o seguinte: apresentação de emendas – 09/08 a 05/09/2012 (20 dias úteis); relatórios parciais – 06 a 20/09/2012 (dez dias úteis); relatório do relator-geral – 21 a 27/09/2012 (cinco dias úteis); parecer final da comissão – 28/09 a 04/10/2012 (cinco dias úteis).

Uma das primeiras manifestações de confronto, em face da pressa adotada na aprovação do projeto, veio do IBCCRIM, em cujo seminário, realizado no início de agosto, foi lançado manifesto. Da redação deste, René Ariel Dotti e eu participamos. Nele, acentuava-se que, na elaboração do anteprojeto e na discussão do projeto, “em lugar da troca de ideias, da meditação e da reflexão silenciosa de temas do maior relevo humano, social e técnico-jurídico, optou-se pelos caminhos do açodamento e da busca desenfreada de suposta aprovação da opinião pública, sujeita aos meios de comunicação. O intolerável açodamento se traduziu também na urgência da tramitação imposta pelo autor do projeto que se vale de sua condição de presidente da Casa Legislativa. É o que se verifica pelos exíguos prazos para o estudo de matéria de extraordinária repercussão nacional”.

Em audiência pública, na qual René Ariel Dotti e eu nos defrontamos com o relator-geral do anteprojeto, procurador Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, não houve qualquer justificativa por parte deste em face das críticas apresentadas, conforme se pode ver em vídeo disponível no site do IBCCRIM. Em outra audiência pública, alguns membros da comissão reconheceram a existência de graves defeitos, chegando mesmo a ponderar que seria melhor adiar a apreciação do projeto.

Em fins de agosto, houve ato em defesa do direito penal no salão nobre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no qual se repudiou o projeto com a manifestação de que deveria ter sobrestada sua tramitação. Nesse ato, compareceram 19 entidades, as mais representativas do mundo jurídico, como a OAB federal, o Ministério Público de São Paulo, a Defensoria Pública, o Instituto dos Advogados Brasileiros, a Associação dos Advogados de São Paulo e outras organizações que congregam advogados ou promotores. Em nota ao Senado, essas entidades apontavam ser oprojeto um conjunto normativo destituído de técnica jurídica, sem sistema e com graves deficiências.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados oficiou também ao Senado Federal para que se sustasse a apreciação veloz do projeto. Em vista de todas estas manifestações e do ofício da OAB, o Senado resolveu, com bom senso, transferir para março de 2013 o exame das emendas ofertadas, conseguindo-se, dessa maneira, quebrar o açodamento pretendido para se consagrar um novo Código Penal da gestão de Sarney como presidente.

Devo reafirmar: é impossível, por meio de emendas, consertar as imprecisões e erros do projeto, pois a falta de técnica legislativa e os absurdos são de tal ordem que o conjunto encontra-se totalmente comprometido. É esta a opinião dos representantes das entidades que participaram do ato ocorrido no salão nobre e que têm se reunido com senadores sensíveis aos argumentos apresentados.

Para se exemplificar acerca dos erros e absurdos constantes do projeto, passo a examinar alguns pontos que revelam o comprometimento do conjunto. É importante notar que as modificações na parte geral, mormente com relação aos conceitos da estrutura do crime, deveriam ser apenas as indispensáveis, sem adotar posições doutrinárias e transformar o código em repositório de posicionamentos discutíveis.

Algumas impropriedades da parte geral

Poderia indicar muitas imprecisões constantes da parte geral, mas, para não prolongar em demasia a análise, limito-me ao que foi proposto quanto à definição de fato criminoso, de dolo e de culpa, à justificativa do estado de necessidade, à coautoria, à supressão do livramento condicional e à instituição da barganha.

O fato criminoso

No título II, relativo ao crime, define-se fato criminoso:

Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico.

Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo.

No caput, limita-se a conceituar como crime a ação ou omissão que produza ofensa ou perigo concreto a bem jurídico, excluindo-se da classificação de delito as figuras de perigo abstrato, como tráfico de entorpecente, para cuja tipificação dispensa-se a ocorrência de qualquer resultado, lesão ou perigo, pois se considera haver um perigo ínsito à conduta conforme demonstram a experiência e a lógica. Se o projeto não contemplasse figuras de perigo abstrato poder-se-ia aceitar a coerência da proposta, mas, ao contrário, são inúmeras as figuras típicas de perigo abstrato.

No parágrafo único, adota-se a teoria da imputação objetiva e se faz referência a uma observação de Claus Roxin, sobre o alcance do tipo em relação a um aspecto muito singular da autocolocação da vítima em perigo, circunstância esta que não estaria no objetivo pretendido pela norma. Para explicar esta intrincada questão: entende Roxin que a norma que pune o homicídio culposo não existe para proteção do bem jurídico vida quando a vítima se coloca em perigo, como sucede no suicídio, ao se jogar nas rodas de um veículo que trafega em velocidade maior do que a permitida no local. Veja-se que é um debate doutrinário, bem delimitado, com divergências entre os penalistas e que jamais deveria ser objeto de normatização.

O Dolo

No projeto define-se dolo de forma absolutamente errônea:

Art. 18. Diz-se o crime:

I – doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal ou assumiu o risco de realizá-lo, consentindo ou aceitando de modo indiferente o resultado.

O dolo consiste em querer a ação ou omissão que se efetua. A vontade pressupõe o conhecimento, pois só se pode querer o que se conhece, razão pela qual se diz que o dolo compõe-se de representação e vontade. O que importa é ter o agente ciência de todos os contornos da ação ou omissão, contornos relevantes à configuração típica da ação. Desse modo, o agente deve conhecer todos os elementos da ação previstos como constitutivos do tipo penal. Há uma manifesta imprecisão ao se estabelecer que o crime seja doloso ao se querer “realizar o tipo penal”.

O agente não quer o tipo penal, pois teria por pressuposto conhecer a norma penal. O agente conhece e quer a ação típica, ou seja, a ação em todos os elementos concretos, independentemente de saber que compõem a norma incriminadora, sem introjetar a existência do tipo penal como categoria normativa.

Culpa

Ao definir culpa, no mesmo art.18, deixa-se de fazer referência ao resultado, dado essencial decorrente de ter agido com descuido, com falta de diligência. Assim, define-se o crime como culposo “quando o agente, em razão da inobservância dos deveres de cuidado exigíveis nas circunstâncias, realizou o fato típico”.

O crime culposo passa a ser, portanto, a realização do fato típico (que fato típico?) em vista da inobservância dos deveres de cuidado, admitindo-se, então, a possível configuração de um crime culposo sem resultado, o que é um absurdo sem nome.

Estado de Necessidade

Ao se definir o denominado estado de necessidade (que justifica a ação realizada para salvar um direito sujeito a perigo certo e atual), elimina-se dado essencial, qual seja a inexistência de outra maneira de evitar o perigo. É o caso dos náufragos que disputam uma única boia: por não haver outra maneira de evitar o perigo de afogamento, legitima-se que um náufrago tome para si a boia. Só se legitima essa ação se não houver outro meio de proteção do direito à própria vida. Mas, o projeto inova, não mais exigindo que a ação lesiva de terceiro (o outro náufrago) seja o único modo de evitar o perigo. Assim, se existir outra forma de não se afogar, nem por isso, de acordo com o projeto, deixará de se reconhecer o estado de necessidade. Fica ao alvitre o agente escolher o meio que lhe parecer mais fácil, mesmo que venha a matar um terceiro para se salvar, desprezando o outro modo não lesivo de se proteger.

Quanto à coautoria, o projeto estabelece uma corresponsabilidade, como cúmplice, para aquele que poderia ter evitado que terceiro viesse a cometer o crime, mas se omite. Por exemplo, um gestor de compliance, que tem o dever de fiscalizar a correção de conduta dos empregados da empresa, poderia, se diligente, ter evitado a prática de corrupção por parte do gerente financeiro que corrompeu fiscal do imposto de renda. Por sua omissão, passa a ser considerado partícipe do crime do gerente, do crime de terceiro que deveria ter evitado. A negligência em não impedir a realização do crime transforma o omitente em partícipe do crime praticado por terceiro. É o que deflui do disposto no art. 38 § 1º. II, b), segundo o qual são partícipes “aqueles que deviam e podiam agir para evitar o crime cometido por outrem, mas se omitem”.

Esta atribuição do fato delituoso por não se ter evitado a prática delituosa reproduz-se ao se estabelecer a responsabilidade da pessoa jurídica, de vez que se entende autor do delito, no art. 41 § 3º. “Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes referidos neste artigo, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”.

Livramento condicional

A supressão do livramento condicional é absolutamente injustificável, apenas criando maior tempo de prisão com desestímulo ao bom comportamento carcerário e trazendo desassossego ao meio prisional, em desacordo com a maioria das legislações penais ocidentais. Nenhuma explicação foi dada para esta supressão, cuja importância é constatada pela história da justiça penal, devendo o legislador antes se preocupar em reforçar o dever de assistência ao liberando, para que consiga inserir-se no meio social hostil que encontra ao sair da prisão do que resolver eventual fracasso da liberdade condicional, pela reincidência, com a supressão de um instituto secular, muito mal aplicado no Brasil.

Barganha

A instituição da barganha é uma invasão de questão processual no campo penal que ao mesmo tempo consagra a pena sem processo, pois o réu será condenado à pena mínima, com cumprimento em sistema semiaberto, dispensada a realização de qualquer prova em juízo, sob o manto do contraditório. Desconhece-se a nefasta experiência americana, que poderá repetir-se no Brasil, pois inocentes poderão preferir o acordo, aceitando uma pena mínima e o sistema semiaberto, diante da incerteza de conseguirem provar sua inocência.

Em trabalho anterior ressaltei que a maior parte dos processos criminais nos Estados Unidos resolve-se por meio de uma sanção negociada entre acusação e defesa (plea bargaining) em vista da qual o agente faz uma declaração de culpa (plea of guilty). A oferta de se declarar culpado é precedida geralmente de uma negociação que pode dizer respeito à pena, (negociação vertical, por envolver a decisão judicial) ou quanto à qualificação do fato ou ao reconhecimento de sua menor incidência (negociação horizontal, por se dar entre o Ministério Público e o advogado).

O sistema do acordo em matéria penal, o plea bargaining, tem se prestado a muito abuso, como indicam advogados e mesmo promotores públicos norte-americanos, pois se transformou em expediente para enfrentar a excessiva carga de trabalho da justiça, relegando-se a segundo plano o mérito das imputações.

Destaca-se que o acusador induz a maior parte dos autores dos fatos delituosos a se declararem culpados por um crime menos grave ou a solicitarem uma redução de pena, apenas por estar ele, representante do Ministério Público, sobrecarregado de trabalho. Houve casos de acusação por fato mais grave em face da recusa em aceitar o acordo sugerido pelo órgão acusador. O juiz, por sua parte, muitas vezes constrange e pressiona indevidamente o imputado, que passa a temer uma pena mais grave caso não aceite a transação proposta. Esta americanização do direito, com a importação do instituto do “plea bargaining”, além de inconstitucional, será fonte de injustiças.

Alguns dos absurdos da parte especial

Eutanásia

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

Pena – prisão, de dois a quatro anos.

§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.

Verifica-se, ao contrário do estatuído na maioria das legislações que outorgam tratamento específico à eutanásia, que se pune, pelo projeto, a eutanásia quando praticada por terceiro alheio à vítima com sanção de pequena monta, ou seja, dois a quatro anos, mas sem se exigir que o estado terminalseja atestado por diagnóstico médico.

De forma ainda grave, prevê-se uma isenção de pena na hipótese de haver parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima, podendo o parente ganhar a não aplicação de pena ao matar a vítima, visando impedir continuidade de sofrimento de quem, sem atestado médico, considera estar em estado terminal. Será uma garantia de impunidade em casos onde a motivação do parente, autor da morte da vítima, pode estar bem longe da comiseração, mesmo porque dispensado o diagnóstico comprovador da situação terminal do parente assassinado.

Omissão de socorro

Falta de socorro à criança ou à pessoa inválida

Art. 132. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo, ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena – prisão, de um a seis meses, ou multa.

Falta de socorro a qualquer animal

Art. 394. Deixar de prestar assistência ou socorro, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, a qualquer animal que esteja em grave e iminente perigo, ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena – prisão, de um a quatro anos.

A mais absoluta demonstração da ausência de sistema, com cada parte do projeto tendo sido feita por um grupo, sem contato com os demais e sem visão de conjunto, está no tratamento penal dispensado aos crimes de omissão de socorro. Na omissão de socorro à criança abandonada ou à pessoa inválida ou ferida, a pena cominada é de um a seis meses de prisão, enquanto na omissão de socorro a qualquer animal em perigo a pena é doze vezes superior, ou seja, de um a quatro anos de prisão.

Difamação

Art. 137. Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

Pena – prisão, de um a dois anos.

Aumento de pena

Art. 140. As penas cominadas neste Capítulo são aplicadas até o dobro se qualquer dos crimes é cometido:
I – na presença de várias pessoas;
II – por meio jornalístico, inclusive o eletrônico ou digital, ou qualquer outro meio de comunicação que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria;

A ausência de critérios na cominação de penas, uma constante no projeto, torna-se patente no caso da punição prevista ao crime de difamação por meio de imprensa. A revogada lei de imprensa, considerada entulho autoritário pelo Supremo Tribunal Federal, previa pena mínima de três meses de detenção para o crime de difamação, consistente em imputar a alguém fato determinado ofensivo de sua reputação.

O projeto, combinando-se o cominado no art. 139, pena mínima de um ano de prisão para a difamação simples, com o disposto no art. 140, II (difamação qualificada), termina por impor a pena em até o dobro, ou seja, pena mínima de dois anos de prisão, oito vezes maior que a punição antes estabelecida na lei considerada “entulho autoritário”.

Há uma exagerada elevação da pena à ofensa praticada por meio da imprensa que coloca em risco a liberdade de manifestação de pensamento, diante da ameaça abstrata de punição desmesuradamente alta.

Corrupção privada

Cria-se, no art. 167, o crime de corrupção no setor privado, embora de modo totalmente equivocado, pois se ignora que a corrupção pode ser praticada por qualquer empregado ou diretor, em descumprimento do dever de probidade para obter vantagem indevida, prevendo-se, no projeto, todavia, aquele crime apenas se o agente é representante legal da empresa, tornando-se a figura penal letra morta.

Nada tem a ver a representação legal da empresa com a prática da corrupção, pois a infidelidade para obter vantagem, em detrimento da empresa na qual se trabalha, pode ocorrer por parte do almoxarife, que faz o elenco de produtos a serem comprados ou por parte do controlador de qualidade dos insumos recebidos ou pelo próprio presidente da sociedade que compra um terreno com sobrepreço.

Terrorismo

Institui-se no projeto (art. 239) o crime de terrorismo, consistente em causar terror à população, com o fim de forçar autoridades públicas a fazerem o que a lei não exige, realizando sequestros, saques, sabotagem de meios de comunicação etc., mas, considera no § 7º, que não há crime de terrorismo se a conduta individual ou coletiva for de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados a sua finalidade. Assim, os atos de terror dos Sem Teto poderão ser lícitos. É inaceitável e mesmo perigoso se justificar atos de terrorismo desde que praticados por movimentos sociais! A quem se pretendia atender com este dispositivo?

Fraude na gestão de instituição financeira

Art. 354. Praticar ato fraudulento na gestão de instituição financeira:

Pena – prisão, de um a quatro anos.

Gestão fraudulenta

§1º Se a conduta for habitual:

Pena – prisão, de um a cinco anos.

O projeto define gestão fraudulenta, um dos crimes apontados no processo do mensalão e punido pela atual lei dos crimes financeiros com a pena mínima de três anos de reclusão. Mas, ao fazê-lo, consegue piorar a redação legislativa já falha ao estatuir que constitui gestão fraudulenta praticar ato fraudulento na gestão de instituição financeira. Ora, uma figura assim descrita pode ser tudo; porém, é punida com pena mínima de um ano de prisão, favorecendo boa parte dos mensaleiros, uma vez que retroage a lei mais benéfica.

Mais estranhável é aumentar a pena mínima para a continuação delituosa, tal como previsto no §1º, denominando-se o ato de gestão fraudulenta, praticado reiteradamente, de gestão fraudulenta,para se diferenciar da fraude na gestão, conduzidos os autores do projeto pela impressão de que gestão pressupõe reiteração por ser ato de gerir. Contudo, não passa, na forma descrita, de uma previsão de continuação delituosa do ato fraudulento, que não pode – nem de longe – colocar em perigo o bem jurídico a ser protegido, ou seja, a higidez da instituição financeira e a segurança dos investimentos dos clientes. Além do mais, a apenação prevista foge da disciplina do crime continuado, pois se comina a mesma pena mínima, tão somente aumentando a pena máxima de quatro para cinco anos.

Termino a menção aos absurdos da parte especial, comentando duas figuras penais que revelam, de forma cabal, o ridículo a que está exposta com este projeto a ciência jurídico-penal brasileira. Trata-se dos crimes de participação em confronto entre animais e de molestamento de cetáceo estatuídos no capítulo dos crimes contra a fauna.

Crime contra a fauna – Confronto entre animais

Art. 395. Promover, financiar, organizar ou participar de confronto entre animais de que possa resultar lesão, mutilação ou morte:

Pena – prisão, de dois a seis anos.

§ 1o A pena é aumentada de metade se ocorre lesão grave permanente ou mutilação do animal.
§ 2º A pena é aumentada do dobro se ocorre morte do animal.

Por esta descrição típica percebe-se que a conduta delituosa consiste em organizar, financiar ou participar de confronto entre animais, ou seja, “briga de galo”. A pena, portanto, para quem organiza ou para aquele que assiste é a mesma: a elevada sanção de dois a seis anos de prisão.Mas, alcança o manifestamente absurdo aumentar a pena de metade se o animal se fere gravemente e em dobro, ou seja, pena de quatro a doze anos, se o animal morre.

Esta disposição vai além da responsabilidade objetiva. Aquele que assiste é punido em dobro se um animal demonstra mais força e mata o outro no confronto. Trata-se de responsabilidade penal, do assistente de “briga de galos”, pelo galicídio: se o galo vencedor mata o perdedor, punido é o assistente, com uma pena igual à do homicídio privilegiado e superior à pena da lesão corporal gravíssima.

Outro absurdo está na figura penal do molestamento de cetáceo, criada pela Lei n. 7643/87 que se considerava revogada pela Lei dos Crimes Ambientais. O projeto a restaura e ainda a piora:

Molestamento de cetáceo

Art. 399. Pescar ou de qualquer forma molestar cetáceos em águas territoriais brasileiras:

Pena – prisão, de dois a cinco anos.

§ 1o A pena é aumentada de metade se:
I – em razão do molestamento o animal sofre lesão grave, permanente ou mutilação;
II – o delito for cometido em período de reprodução, gestação ou amamentação; ou
III – o delito for cometido contra filhote.
§ 2º A pena é aumentada do dobro se ocorre morte do animal.

Acresceram-se, ao que se dispunha sobre molestamento de cetáceo, as formas qualificadas. Assim, se o cetáceo molestado for filhote, a pena passa a ser de três anos de prisão, no mínimo. Se o cetáceo morre, a pena será de quatro anos, no mínimo.

A escolha de relevância penal para fatos indiferentes no campo dos valores fundamentais à vida social já seria o suficiente para comprometer a proposta legislativa, mas a total ausência de critérios na cominação de penas torna impossível se pensar na possibilidade de correção de um conjunto normativo tão desorganizado.

Conclusão

O bom senso e a prudência indicam que só o esquecimento de uma proposta dessa natureza é viável, pois os erros no campo da teoria do crime e as propostas estapafúrdias de incriminação impedem que haja possibilidade de reconstrução de um todo orgânico, homogêneo, seguro. Muito mais poderia ser dito, especialmente na parte relativa às penas e às medidas de segurança referidas na parte geral, mas creio ter sido viável se ter uma ideia da aventura que consistiu a apresentação deste projeto que, repito o que afirmei em artigo no jornal O Estado de S. Paulo: trata-se de um passeio pelo absurdo.


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