Excepcionalismo americano
A deportação de imigrantes pelo governo Trump foi analisada como um evento excepcional na história norte-americana. No entanto, uma caminhada pelos desvarios incrustrados na história do Irmão do Norte traria informações que desmentem a excepcionalidade das proezas de Donald Trump e seus asseclas.
No artigo American Exceptionalism, Daniel Deudney and Jeffrey Meiserdesvendam as origens da autolouvação norte-americana, que invoca o caráter único e superior de sua posição no âmbito dos Estados Nacionais. “Desde a suafundação, há quase um quarto de milênio, os Estados Unidos da América se consideram e são amplamente percebidos como excepcionais.”
Os autores discorrem sobre os movimentos contraditórios da afirmação desse excepcionalismo ao longo da história: “Na política americana e mundial contemporânea, o excepcionalismo americano significa coisas diferentes para as pessoas e países. Para alguns, é uma visão, para outros uma farsa, e para outros um pesadelo. Para alguns americanos, particularmente neoconservadores recentes, intoxicados de poder, a excepcionalidade americana é uma luz verde, uma justificativa e uma desculpa para todos os fins, para ignorar a lei internacional e a opinião pública mundial, para invadir outros países e impor governos”.
Na reafirmação de sua excepcionalidade, a trajetória dos EUA recebeu contribuição valiosa da Doutrina Monroe. Vou me valer da ousadia para esclarecer, de forma sucinta, os pontos centrais da doutrina formulada pelo presidente americano James Monroe (1817-1825). “América para os americanos” é a frase que resume uma das políticas externas mais antigas e emblemáticas dos EUA. A Doutrina foi apresentada em 2 de dezembro de 1823 pelo presidente Monroe em discurso perante o Congresso americano.
Na sua mensagem, Monroe emitiu alerta às potências europeias para que permanecessem fora do continente americano. Aqueles eram os anos posteriores às independências que as Nações americanas ganharam frente às monarquias da Espanha, França ou Portugal. “Os continentes americanos, pela condição de liberdade e independência que assumiram e mantêm, não deverão doravante ser considerados sujeitos de futura colonização por qualquer potência europeia”, disse Monroe no Congresso do seu país. Ele afirmou que qualquer intervenção seria considerada um ataque aos próprios Estados Unidos e garantiu que o seu país não se envolveria em nenhuma disputa na Europa.
A solidariedade anticolonialista culminou em uma política expansionista e à proteção dos interesses econômicos dos EUA no Hemisfério Ocidental. É importante registrar os contornos da “nova ordem mundial” imposta pelos EUA depois da queda do Muro de Berlim. A “nova ordem” foi o resultado do exercício, sem peias, do poder dos Estados Unidos. As normas da mercantilização generalizada e da concorrência universal, apresentadas como forças naturais, refletem, na verdade, a predominância dos interesses do país dominante sobre o resto do mundo. As reformas liberaisvêm sendoimpostas aos governos da periferia pelos organismos internacionais – Banco Mundial, FMI, BID – que, por sua vez, funcionam como executores das políticas compatíveis com a preservação da Ordem Americana.
Ainda não estão claras as consequências da disseminação dos padrões americanos sobre sociedades que apresentam trajetórias históricas diferentes daquelas percorridas pelo país do norte. O potencial de conflito não é desprezível, ainda que edulcorado por essa ideia de que ingressamos no caminho sem volta da harmonia universal.
Episódio Charles Chaplin nos EUA
Vou recorrer ao episódio da perseguição a nosso Carlitos – Charles Chaplin. A perseguição foi desatada pelo governo americano na era do macartismo. Na derradeiro capítulo de sua autobiografia, Carlitos faz relato de uma entrevista que, às vésperas de sua partida da América, Chaplin concedeu aos jornalistas americanos:
“Depois que eles serviram alguns coquetéis, eu apareci, mas imediatamente senti o cheiro de alguma coisa.
Falei atrás de uma pequena mesa e, exibindo toda a capacidade de sedução que pude, disse: “Como vocês estão, senhoras e senhores? Estou aqui para informá-los de tudo o que possa lhes interessar em relação ao meu filme e meus planos futuros”.
Eles permaneceram em silêncio.
“Não falem todos de uma vez”, eu disse, sorrindo.
Finalmente, um jornalista que estava sentado quase em frente disse:
“Você é comunista?”
“Não”, respondi categoricamente. “A próxima pergunta, por favor.”
Então, uma voz começou a murmurar algo. Achei que ele seria meu “amigo” do Daily News, mas ele se destacou por sua ausência. O orador era um sujeito de aparência elegante, com o casaco, curvado sobre um manuscrito, do qual estava lendo alguma coisa.
“Com licença”, eu disse. “Você terá que lê-lo novamente; não entendo uma palavra do que você está dizendo.”
“Nós”, começou ele, “os ex-combatentes católicos da guerra…”
“Não estou aqui para responder aos veteranos católicos da guerra”, interrompi-o. “Esta é uma conferência de imprensa.”
“Por que você não se tornou um cidadão americano?” disse outra voz.
“Não vejo nenhuma razão para mudar minha nacionalidade. Eu me considero um cidadão do mundo”, respondi.
Houve uma grande agitação. Duas ou três pessoas queriam conversar ao mesmo tempo. No entanto, uma voz dominou as outras:
“Mas você ganha dinheiro nos Estados Unidos.”
“Bem”, eu disse, sorrindo, “se você falar de uma perspectiva de negócios, vamos direto aos fatos. Meus negócios são internacionais: 70% da minha renda ganho no exterior, e os Estados Unidos tributam 100%. Então, você vê, sou um hóspede muito bem pago”.
O da Legião Católica atacou novamente com voz estridente: “Quer você ganhe seu dinheiro aqui ou não, nós que desembarcamos nas costas da França lamentamos que você não seja um cidadão desta nação”.
“Você não é o único homem que desembarcou nessas praias”, eu disse. “Meus dois filhos também estavam lá, no Exército de Patton, firmes na linha de frente, e eles não saem por aí se gabando ou explorando o fato, como você está fazendo”.
Eu gostaria de dizer a eles que, quanto mais cedo eu estivesse livre daquele ambiente carregado de ódio, melhor, e que estava farto dos insultos e da moral hipócrita da América e que a coisa toda era um grande incômodo. Mas tudo o que eu tinha estava nos Estados Unidos e estava com medo de que eles pudessem encontrar uma maneira de confiscá-lo. Agora eu poderia esperar qualquer ação inescrupulosa deles.”
Em sua segunda eleição, Donald Trump fez vibrar a corda sensível da alma dos americanos brancos subempregados no Meio-Oeste desindustrializado. Os últimos 40 anos prometeram a prosperidade e entregaram a pobreza escorada no Food Stamps, o programa de subsídio alimentar. “A América vai ser grande outra vez” ou “Vamos devolver os empregos aos americanos”. Em suas arengas, Trump promete impor tarifas sobre produtos chineses, além de promover a volta das empresas americanas (des)localizadas no México.
Subempregados e precários
Para espantar a estupefação, muitos gritam: “Protecionismo! Populismo!” Os subempregados e precários não estão preocupados com o que pensam os adeptos do livre-comércio. Querem seus empregos de volta.
Vou relembrar o “fechamento” das economias nos anos da Grande Depressão. Sugiro uma olhadela na lei americana Smoot-Hawley, de 1930, que elevou brutalmente as tarifas. Em seguida, a Inglaterra abandona o padrão-ouro, em 1931, e os EUA caem fora em 1993. As tarifas e as desvalorizações competitivas produziram brutal contração do comércio internacional. A deflação de preços das commodities e produtos industrializados comprovou o óbvio: se todos tentam desvalorizar, ninguém consegue, ainda que alguns consigam mais que os outros.
Na Alemanha, Hjalmar Schacht, o banqueiro de Hitler, lançou em 1934 o Novo Plano. O “plano” impunha uma brutal centralização do câmbio. Transações em moeda estrangeira não poderiam ser efetuadas diretamente entre residentes e não residentes. Tudo tinha de passar pelo controle e permissão da burocracia do Reichsbank. A violação dessas normas era considerada “crime de alta traição à Mãe-Pátria”. Os métodos extremos de controle cambial incluíam adoção de práticas de comércio bilateral com os países da periferia europeia e sul-americana, que estavam praticamente alijados de negócios internacionais desde o crash de 1929.
Um livre-cambista pode degustar o texto do Tariff Act saboreando a releitura da biografia de Schacht. Desgraçadamente, as baboseiras do liberalismo econômico empurram as sociedades e suas democracias para a destruição do liberalismo político.
Penso nos EUA e na China empreendendo uma escalada protecionista na era da globalização. As palavras de ordem do protecionista e populista Trump são proclamadas em meio a insultos aos latinos e ameaças de violência contra os adversários.
O establishment americano está à beira do pânico. Diante da agressiva campanha eleitoral, já seria possível antecipar os riscos envolvidos em uma possível eleição de Trump. Depois dos confrontos entre apoiadores e oponentes do desvairado presidente, republicanos “moderados” e seus financiadores trataram, sem sucesso, de impedir a vitória do simulacro de Hitler.
Para adicionar infâmia à injúria, diante da agressividade de Trump, a revista Der Spiegel, invocou Frauke Petry, a jovem líder do partido de
extrema-direita Alternativa para a Alemanha. A jovem ultradireitista não oferece alternativas. Só negativas: contra os refugiados, contra a Europa, contra o Euro, contra o Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento. Contra, contra, contra.
A revista Der Spiegel não apalpa: “A estratégia de apresentar uma solução única e incontestável deve ser reavaliada. Caso contrário, o mundo estará encarando uma era na qual serão cada vez mais fortes aqueles que não oferecem qualquer solução, os que só oferecem rejeição e medo”.
No Brasil da Avenida Paulista, além das heranças e sestros da casa-grande, pulsavam os desconfortos com a crise econômica deflagrada pelos aloprados dos mercados financeiros, em contubérnio com um governo Bolsonaro aturdido por suas próprias incoerências. Vou repetir o aconselhamento da revista Der Spiegel: “A estratégia de apresentar uma solução única e incontestável deve ser reavaliada. Caso contrário, o mundo estará encarando uma era na qual serão cada vez mais fortes aqueles que não oferecem qualquer solução, os que só oferecem rejeição e medo”.
As promessas e ameaças de Donald Trump reproduzem episódios já vividos nos labirintos da economia global. Digo “reproduzem” para exprimir a incompatibilidade do factual imediato com a concepção que advoga a dinâmica das estruturas nas trajetórias das economias de mercado monetário-financeiras capitalistas.
A mais conhecida e dolorosa restruturação daquilo que, parodiando Schumpeter, poderíamos chamar de Ordem Capitalista, começou a se desenvolver a partir dos anos 30 e encontrou seu apogeu nas duas primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Esta reordenação foi uma resposta aos desastres provocados pelas “falhas” do mercado autorregulado, agravadas pelo apego dos governos a políticas fiscais e monetárias conservadoras. Esta miopia liberal-conservadora suscitou violentas reações de autoproteção da sociedade assolada por desgraças como o desemprego em massa, o desamparo, a falência,a bancarrota.
Neste período, a economia mundial foi palco de rivalidades nacionais irredutíveis, que se desenvolveram sem impedimentos, na ausência de mecanismos de coordenação capazes de conter as desesperadas iniciativas para escapar aos danos da crise. As ações particularistas, tomadas em defesa das economias nacionais ou de grupos sociais revelaram-se danosas para o conjunto.
Falhas do mercado autorregulado
Este foi o caso, no plano internacional, das desvalorizações competitivas que acabaram provocando uma contração espetacular dos fluxos de comércio e suscitando tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se livremente, sem qualquer providência dos governos, imobilizados pelos fetiches do padrão-ouro e do equilíbrio orçamentário. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos bens e dos ativos.
Frações importantes das burguesias europeia e americana tiveram que rever seu patrocínio incondicional ao ideário do livre-mercado e às politicas desastrosas de austeridade na gestão do orçamento e da moeda, diante da progressão da crise social e do desemprego.
Não bastasse isso, assim que a coordenação do mercado deixou de funcionar, setores importantes das hostes conservadoras aderiram aos movimentos fascistas e à, assim chamada, “estatização” (sic) impiedosa das relações econômicas, como último recurso para escapar à devastação de sua riqueza.
Aqui cabem considerações a respeito do recrutamento dos grandes industriais alemães pela liderança nazista. Reunidos por Goering no Reichstag, os grandes empresários ouviram o chanceler Adolf Hitler. Disse o Führer: “há que acabar com um regime fraco de Weimar, afastar a ameaça comunista, eliminar sindicatos e permitir que cada empresário fosse o Führer de sua própria empresa”. O discurso durou meia hora. Quando Hitler terminou, Gustav Krupp levantou-se, deu um passo à frente e, em nome de todos os presentes, agradeceu-lhe por ter finalmente esclarecido a situação política. O chanceler deu uma volta rápida em torno da mesa quando saiu. Eles o parabenizaram cortesmente.
A opinião convencional e conservadora insiste em afirmar a “estatização” da economia alemã na era nazista. Alguém mais atilado poderia argumentar que, na verdade, ocorreu uma brutal privatização da política econômica alemã.
Malgrado as diferenças históricas, são inequívocas as semelhanças de inspiração entre o programa de Trump e as políticas econômicas dos regimes nazifascistas dos anos 30 do século XX. As semelhanças abrangem a proclamação da primazia do interesse nacional; a privatização do Estado, ocupado diretamente por um comitê de grupos empresariais do Vale do Silício; e a politização da economia, administrada despoticamente pelo estatal-privatismo, na contramão da “liberdade de mercado”. A onipresença dos poderosos das plataformas e das finanças no gabinete de Trump mimetiza o poder da Siemens e da Krupp na política econômica do III Reich.
Karl Polanyi, em sua obra A Grande Transformação, escrevendo sobre esse momento da história, mostrou como a revolta contra o despotismo do “econômico” revelou-se tão brutal quanto os males que a economia destravada vinha impondo à sociedade. Estudando o avanço do coletivismo, nesta quadra, Polanyi conclui que não se tratava de uma patologia ou de uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas sim da emergência de forças gestadas nas entranhas do mercado destravado.
Com o colapso dos mecanismos econômicos, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo da mão invisível teria de ser substituído pela tirania visível do chefe. O político e a polícia começaram a invadir todas as esferas da vida social, como se fossem suspeitas de quaisquer formas de espontaneidade.
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