Expansão global do PCC ameaça a defesa e a segurança dos países envolvidos
Atualmente, o narcotráfico é considerado um problema global pela maioria dos países. Verifica-se que, nos últimos anos, o continente sul-americano tem sido palco de diversos delitos transnacionais, com destaque para o tráfico de drogas operado por organizações criminosas, sendo que a ocorrência desses crimes constitui ameaça à defesa e à segurança regional e nacional dos países envolvidos, pois estão associados ao crescimento dos níveis de violência, que se sustenta na lavagem de dinheiro dessas organizações, além de gerar corrupção de agentes públicos e aumento da exploração dos mercados ilícitos.
No Brasil, uma das maiores organizações criminosas de caráter transnacional é o Primeiro Comando da Capital (PCC), originária do sistema prisional paulista. Fundada em 1993 na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, atua hoje em todos os estados brasileiros e está presente em vários países da América do Sul, nos Estados Unidos, e nos continentes africano e europeu, através de conexões com outras organizações criminosas estrangeiras, possuindo cerca de 40 mil integrantes.
Essa constatação decorre das evidências produzidas desde 2006, de maneira ininterrupta, nas investigações desenvolvidas pelo Ministério Público de São Paulo, por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), em vários procedimentos investigativos criminais instaurados pelo núcleo ministerial especializado.
As investigações igualmente revelaram o modelo de governança da organização criminosa na exploração dos mercados ilícitos, notadamente o tráfico de drogas.
Por outro lado — com fundamento na literatura sobre governança multidimensional, caso da obra dos pesquisadores Henrik Ederlein, Sonja Wälti e Michael Zürn sobre o tema —, há o reconhecimento de que a resposta à problemática dos mercados ilícitos transnacionais e, consequentemente, às organizações criminosas (com destaque para o Primeiro Comando da Capital) impõe a construção e/ou o aperfeiçoamento de modelos institucionais colaborativos, não somente no plano interno, mas principalmente transnacional.
Leis próprias e “estatuto” do crime
As investigações do GAECO do Ministério Público de São Paulo revelam que o PCC é uma organização criada para a prática de atos ilícitos, caracterizada, desde a sua fundação, por uma estrutura hierarquizada e disciplinada, dividida por células. Seus membros são integrados por meio de batismo formal, com rígido controle sobre suas atividades criminosas; leis (“O Estatuto”) e nomenclatura próprias adotadas por todos os integrantes; e amplo controle da população carcerária, agindo como como verdadeiro “Estado Paralelo”.
Seus membros também consideram o PCC uma organização criminosa, pois o novo “Estatuto do Primeiro Comando da Capital”, difundido através do que chamam de “salve geral”, estabelece no seu artigo quarto: “Aquele integrante que for para a rua tem obrigação de manter o contato com a sintonia de sua quebrada ou da quebrada em que o mesmo estiver, e estar sempre à disposição do comando. A organização necessita do empenho e da união de todos os seus integrantes, deixando claro que não somos sócios de um clube, e sim integrantes de uma organização criminosa, que luta contra as opressões e injustiças que surgem no dia a dia e tentam nos afetar. Sendo assim, o comando não admite acomodações e fraqueza diante de nossa causa”.
Segundo o estatuto do PCC, seus membros 1. vivem especificamente da prática de crimes, notadamente do tráfico de drogas (que eles chamam de “progresso”); 2. ignoram as leis brasileiras e o Poder Judiciário; 3. tratam as organizações policiais como inimigas; e 4. servem de modelo exemplar para o mundo marginal.
É possível verificar em uma simples leitura do estatuto que o PCC age como uma verdadeira empresa, ou mesmo unidade militar, pois divide seus membros por funções, que são exercidas por confiança, sendo seus membros batizados e cadastrados.
O PCC é um grupo criminoso organizado de acordo com o conceito legal[1], nos termos da definição contida na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, ratificada pelo Decreto nº 5.015/04.
A organização mantém uma estrutura ordenada e hierarquizada, com distribuição de funções entre seus integrantes, organização de poder de forma “piramidal” e divisão das células que compõem os diversos setores por “sintonias”, como especificado no décimo artigo do estatuto da facção: “Deixamos claro que a sintonia final é uma fase da hierarquia do comando, composta por integrantes que já estão há alguns anos no comando e por integrante que tenha sido indicado e aprovado pelos outros irmãos que fazem parte da sintonia final. No comando existem várias sintonias, mas a final é a última instância. Um dos principais objetivos da sintonia final é lutar pelos nossos ideais e pelo crescimento da nossa organização”.
Essa estrutura demonstra claramente o expressivo número de pessoas que integram a organização criminosa, a qual é ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas. Com a reunião de todos os líderes no mesmo estabelecimento prisional, Marcos Willians Verbas Camacho, o Marcola, solidificou seu prestígio e sua liderança à frente da facção[2], designando seus “homens de confiança” para compor com ele o primeiro escalão do PCC (“sintonia final geral”).
A partir da composição da sintonia final geral da facção, reclusa na Penitenciária II de Presidente Venceslau de 2006 até 2019, os demais integrantes da organização que compõem as diversas “sintonias” e “células” formam os mais variados setores da organização criminosa. Cada qual com uma função específica, mas todos unidos através da convergência de vontades com os integrantes da sintonia final geral, todos imbuídos do objetivo de praticar os mais variados crimes, como tráfico de drogas, tráfico de armas, roubo, extorsão mediante sequestro, corrupção etc. — os quais sustentam financeiramente a organização criminosa.
Não fosse suficiente, os membros do PCC protegem a organização a todo custo, deflagrando violentíssimas ações criminosas sempre que é ameaçada a estrutura de funcionamento do bando.
Conclui-se, portanto, que o Primeiro Comando da Capital é uma organização criminosa armada, de caráter permanente, destinada à prática do tráfico de drogas e armas, corrupção de agentes públicos para infiltração no poder do Estado e diversos outros delitos, estando todos seus membros incursos nas sanções do artigo segundo, § 2º, da Lei nº 12.850/2013, sem prejuízo de outros específicos crimes cometidos por cada integrante.
Com o objetivo de estabelecer um entendimento prático relacionado às funções e aos limites de atribuições de cada integrante desta facção, ao longo dos anos — por meio de análise, busca e coleta de dados —, foi possível traçar e definir dentro da organização criminosa a estrutura geral do PCC, que pode ser visualizada no organograma abaixo.
Terminologia das funções e das atividades ilícitas
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O reconhecimento do PCC como um dos principais atores responsáveis pelo aumento expressivo do tráfico de cocaína do Brasil para a Europa tem despertado cada vez mais a atenção das autoridades brasileiras e internacionais, tornando o combate a essa organização criminosa de matiz mafiosa um dos grandes desafios para a segurança mundial.
De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), “o crime organizado afeta todos os Estados, seja como países de oferta, trânsito ou demanda. Como tal, o crime organizado moderno constitui um desafio global que deve ser enfrentado com uma resposta global e concertada”.
O estudo de 2011 do UNODC estima que o fluxo do tráfico de drogas e de outras atividades do crime organizado produziu uma receita equivalente a U$ 650 bilhões por ano, na primeira década do novo milênio, ou equivalente a 1.5% do PIB global. Os fundos disponíveis para lavagem por meio do sistema financeiro seriam equivalentes a aproximadamente 1% do PIB global, cerca de U$ 580 bilhões, em 2009.
A maior receita financeira do crime organizado transnacional vem das drogas ilícitas, que representam algo em torno de 20% (entre 17% e 25%) do proveito de todos os crimes, aproximadamente metade dos proveitos do crime organizado transnacional e entre 0.6% e 0.9% do PIB global. Por outro lado, o produto da droga disponível para lavagem de dinheiro por meio do sistema financeiro seria equivalente a 0.4% e 0.6% do PIB global. Como proporção do PIB nacional, o produto de todos os crimes tende a ser maior nos países em desenvolvimento — porém, lavado em outros países mais frequentemente.
O Brasil é um dos principais países de trânsito e destino da cocaína produzida nos países andinos, sendo considerado o segundo maior consumidor mundial de cloridrato de cocaína e, provavelmente, o maior consumidor de produtos à base de cocaína, segundo dados do National Drug Threat Assessment referentes a 2017. A fronteira do Brasil com Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai — países produtores de drogas — é porosa e tem mais de três vezes o comprimento da fronteira dos EUA com o México. A maior parte da cocaína que circula pelo Brasil é destinada ao próprio mercado interno e à Europa, muitas vezes passando pela África Ocidental. Os produtos de cocaína são contrabandeados pelas fronteiras terrestres, por meio de pequenas aeronaves e caminhões, bem como por barcos que usam o sistema ribeirinho da Amazônia. Os portos marítimos do Brasil desempenham um papel fundamental no transporte de narcóticos.
A agência policial europeia, Europol, já trata o PCC como um dos maiores grupos criminosos do mundo. Policiais de Portugal, Bélgica, Alemanha, Itália, França, Eslovênia, Espanha, Romênia, Brasil e Panamá deflagraram, no dia 3 de maio de 2023, a Operação Eureka para desarticular o tráfico internacional coordenado pela máfia italiana Ndrangheta, uma das redes criminosas mais poderosas do planeta e grande aliada do PCC.
Segundo a Europol, os clãs da Ndrangheta também estavam envolvidos no tráfico internacional de armas e intermediaram o carregamento de um arsenal do Paquistão para a América do Sul, oferecendo o armamento para integrantes do PCC em troca de remessas de cocaína para a Europa. Investigadores da Europol rastrearam a movimentação financeira da rede criminosa e descobriram um extenso sistema global de lavagem de dinheiro com investimentos maciços na Bélgica, na Alemanha, na Itália, em Portugal, na Argentina, no Uruguai e no Brasil. Foram presos 132 suspeitos no mesmo dia 3 de maio de 2023.
Para as autoridades europeias, o PCC é um dos principais fornecedores de cocaína para a Ndrangheta e arrecada bilhões de reais por ano com o narcotráfico. A droga vem da Colômbia, do Peru e da Bolívia e segue para a Europa via portos brasileiros.
Forte cooperação contra o crime entre órgãos e instituições
O comércio ilegal de drogas é um problema que afeta praticamente todos os países do mundo. Essa atividade ilícita propiciou o crescimento e a transnacionalização do PCC, que hoje pode ser considerada uma organização criminosa de matiz mafiosa.
O Brasil, além de possuir um grande mercado consumidor de substâncias ilícitas, é também um grande entreposto comercial dos produtos do tráfico do drogas, que daqui seguem para o seu destino final no continente europeu.
Com o avanço do narcotráfico, as organizações criminosas responsáveis por operacionalizar esta atividade ilegal passaram a ter maior relevância. O fenômeno da globalização alavancou de maneira significativa o crescimento dessas facções, contribuindo para a sua internacionalização.
A ineficiência no combate ao tráfico de drogas e aos demais crimes transnacionais proporciona consequências bastante negativas para o Brasil, com destaque para a desmoralização das instituições de Estado, a intimidação de autoridades constituídas e o aumento da violência.
Como vimos, a presença das organizações criminosas ligadas ao narcotráfico na América do Sul constitui-se efetivamente em uma ameaça à paz e à segurança regional. A ressaltar que os efeitos da atuação dessas facções não afetam somente os Estados, mas atingem diretamente a integridade das pessoas e das sociedades. Portanto, o combate a essas facções criminosas é um dos grandes desafios para a segurança regional, nacional e mundial.
Para impedir o avanço do narcotráfico é fundamental que o combate a essas organizações seja realizado de forma eficaz. Para tal, devem ser desencadeadas ações nos diversos níveis de planejamento e execução.
Nos níveis político e estratégico é fundamental que haja uma cooperação cada vez maior entre os diversos órgãos, agências e instituições ligados ao combate ao crime organizado. Afinal, “o crime organizado moderno constitui um desafio global que deve ser enfrentado com uma resposta global e concertada”, conforme aponta, desde 2018, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.
Essa cooperação deve existir tanto no âmbito nacional quanto no internacional, uma vez que tais crimes são transnacionais. Deve, ainda, transpassar por várias áreas, tais como realização de acordos e tratados internacionais, estabelecendo marcos legais comuns relacionados ao tema; troca de informações de inteligência; e controle de fronteiras. Portanto, quanto maior essa integração, maiores serão os resultados positivos. n
[1].
Nesse sentido já se manifestou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar os autos de Apelação nº 0012137- 65.2008.8.26.0576, da Comarca de São José do Rio Preto, oportunidade em que reconheceu a existência do “PCC” como organização criminosa armada que atua dentro e fora dos presídios paulistas, seja pelos inúmeros processos envolvendo a facção, seja pelo farto noticiário que é veiculado pela imprensa a esse respeito, o que constitui, por si só, um fato notório, na dicção legal (art. 334, inciso I, do Código de Processo Civil), que independe de prova.
[2].
Conforme informações extraídas da denúncia oferecida pelo GAECO nos autos nº 0002529-47.2013.8.26.0483, da 1ª Vara da Comarca de Presidente Venceslau/SP, no qual o Ministério Público denunciou as principais lideranças da organização criminosa.
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