Facções e milícia nas eleições municipais brasileiras
Em um dos vídeos de maior sucesso da campanha municipal de São Paulo, visto milhões de vezes nas redes sociais, a candidata Tabata Amaral narrou as conexões do PRTB, partido de seu concorrente, Pablo Marçal, com o Primeiro Comando da Capital (PCC). As informações, que tinham sido reveladas dias antes pela imprensa, dariam o tom das denúncias durante o processo eleitoral. Leonardo Avalanche, presidente do PRTB, partido de Marçal, gabava-se, em um áudio de WhatsApp, de ter sido o responsável por “soltar o André do Rap”, considerado um dos principais traficantes internacionais brasileiros, que deixou a prisão em 2020 depois de obter um habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal Federal (STF).
Outras suspeitas graves vinculando Marçal e o PRTB ao mundo do crime se repetiram na campanha. O próprio Marçal já tinha sido condenado em 2010 por participar de uma quadrilha que aplicava golpes financeiros por e-mails. A notícia voltou a ser divulgada com alarde. Também voltou a público a investigação da Polícia Federal contra seu sócio e amigo, o influencer fitness Renato Cariani, denunciado por ter emitido notas frias em sua empresa para desvio de toneladas de insumos químicos para refino de crack e cocaína. Outros dois dirigentes de seu partido eram acusados de usar dinheiro da venda de carros para a compra de cocaína, mediada por integrantes da facção. Marçal ainda concedeu a um piloto de avião acusado de transportar cocaína uma procuração para que ele o representasse junto ao Governo Federal.
Apesar das denúncias, o candidato continuou subindo nas pesquisas, como se seus eleitores não se importassem ou não acreditassem no que era revelado. Marçal dizia não saber de nada e não ter relação com o crime, mas constatava que o PCC estava em “quase tudo” e que tinha virado uma “megaoperação de empreendedorismo”.[1]
Não foi a primeira vez que o nome do grupo criminoso apareceu na disputa eleitoral paulistana. O PCC assombrou também a campanha do prefeito Ricardo Nunes, que concorre à reeleição. Em abril, proprietários de duas empresas de ônibus da capital, Transwolff e UpBus, responsáveis por transportar milhares de passageiros na cidade, foram denunciados pelo Ministério Público por ligações com o PCC. A Justiça determinou que o prefeito assumisse a operação das empresas para evitar o colapso do sistema de transporte. Durante a campanha, Nunes precisou explicar por que pagou subsídio aos empresários denunciados. Ele negou que soubesse da relação entre o crime e as empresas, que prestavam o serviço como as demais. As suspeitas de ligação com o PCC também não atingiram a campanha de Nunes.
A relação entre a facção e o poder público não se restringe ao município de São Paulo. O problema se espalhou. Atinge outros municípios paulistas e estados brasileiros, com a facção atuando na máquina e/ou como fonte de financiamento ilegal de campanhas. A inteligência da Polícia Militar de São Paulo tinha confirmado os indícios do ingresso do crime na disputa eleitoral de diversos municípios paulistas. Empresas de fachada, com objetivos criminais, financiavam as campanhas para depois receberem o dinheiro dos candidatos que eles patrocinaram. Quanto menor o município, maior o risco.
Uma das lideranças que atuava para financiar campanhas nestas eleições municipais era Anderson Manzini, o Gordo, cujas empresas, segundo a Polícia Civil de São Paulo, havia movimentado 5 bilhões de reais nos últimos cinco anos. Já havia informações sobre os tentáculos do PCC em serviços públicos de outras prefeituras, como saúde, coleta de lixo e aterros para entulho da construção civil. Na prefeitura de Arujá, o acusado de liderar o esquema do crime no município foi Anderson Lacerda Pereira, conhecido como Gordão, ligado ao traficante André do Rap. Gordão foi preso e acusado de montar 38 clínicas médicas e odontológicas para lavar dinheiro do tráfico. Em março deste ano, depois do assassinato de Cristiano Lopes Costa, aliado de Marcola apontado como um dos líderes do PCC na Baixada, veio a público que sua empresa tinha dois contratos com a Prefeitura do Guarujá para fazer limpeza em hospitais. A infiltração parecia um caminho promissor para legalizar o dinheiro do crime e exercer influência econômica e política.
Suspeita de facções criminosas atuando em nove estados
Em outros estados, a situação também era preocupante. O coordenador-geral de Defesa Institucional da Polícia Federal, Thiago Borelli, em um encontro no Fórum Brasileiro de Segurança Pública este ano, apontou indícios de que facções criminosas já atuassem em nove estados brasileiros para influenciar eleições financiando candidatos ou partidos, lançando candidaturas ou coagindo eleitores.[2] O Comando Vermelho, facção carioca com abrangência nacional, era um dos nomes recorrentes nas denúncias.
Em Sobral, no Ceará, um candidato a vereador relatou ao jornal O Globo ter sido abordado por traficantes que cobraram dele 60 mil reais para autorizar que ele fizesse campanha no bairro. Houve, ainda, denúncias de cobranças de taxas pelo crime a candidatos nos municípios da Grande Belém na eleição do Pará. A presença e a influência dessas quadrilhas também podiam ocorrer pelo financiamento da campanha de candidatos. No Rio de Janeiro, Fernanda Costa, filha de Fernandinho Beira-Mar, tentou se reeleger vereadora em Duque de Caxias, apesar de ter sido condenada por envolvimento com tráfico de drogas. Ainda havia 14 candidatos investigados por suspeitas de envolvimento com grupos milicianos.
Atualmente, segundo balanço do Ministério da Justiça e Segurança Pública, existem pelo menos 88 facções espalhadas pelo território nacional. PCC e CV se destacam por estarem em praticamente todas as unidades da federação. Além da influência econômica e política, esses grupos armados afetam o cotidiano dos territórios em que mandam. Uma pesquisa do DataFolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que 23,5 milhões de brasileiros com mais de 16 anos vivem cotidianamente em seus bairros sob a influência de facções ou de milícias, o que corresponde a 14% da população. Nas capitais, esse percentual sobe para 20% das respostas.
Outra frente de infiltração do crime no poder público, desde o final dos anos 90, são as milícias. Formadas inicialmente por policiais, tinham forte ascendência sobre a opinião pública porque se colocavam como representantes da ordem, em contraponto aos fuzis e às balas traçantes disparadas nas disputas entre facções de droga no Rio. Os paramilitares eram considerados a ameaça mais concreta e real de infiltração nas instituições.
Em 2008, a CPI da Milícias na Assembleia Legislativa do Rio dissecou a crueldade e a extensão das atividades milicianas, apontando diversos políticos entre suas lideranças. As prisões ocorridas depois da CPI e o clima de otimismo na cidade associado ao sucesso da política das Unidades de Polícias Pacificadoras (UPP) deixaram o tema em banho-maria. Parecia que a resposta das instituições tinha sido eficiente para afastar o grupo das instituições políticas. Os milicianos, contudo, vinham crescendo discretamente. Tinham se expandido em direção à Baixada Fluminense e ao interior do estado. A situação se revelou explosiva em 2016, com a crise política e econômica do Rio, que culminou com a prisão de dois governadores. Nesse ano, 13 pessoas envolvidas com a disputa eleitoral na Baixada foram assassinadas durante as disputas eleitorais.[3]
O modelo dos negócios de traficantes e milicianos se equivalem
Atualmente, o modelo dos negócios de traficantes e dos milicianos está cada vez mais parecido. Implica o controle armado de um território, para explorá-lo economicamente a partir de venda de segurança, casas, terrenos, gás e drogas. Toda a receita é bem-vinda para financiar o poder armado e político do grupo. Alianças estratégicas entre milícias e facções passaram a ser feitas no Rio na luta para ampliar poder e mercado. Segundo levantamento da Universidade Federal Fluminense e do Fogo Cruzado, 18,2% da área construída na região metropolitana do Rio de Janeiro estava sujeita à autoridade de grupos armados em 2023.
O envolvimento de policiais no crime também se tornou uma preocupação nacional. Começou a despontar em estados como Amazonas, Pará, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo, envolvidos em crimes ambientais, disputas de terra, venda de segurança, extermínio, tráfico de drogas entre outras atividades.
Um dos sintomas desse descontrole dos governos sobre suas polícias foi o crescimento da letalidade das forças policiais no Brasil, que triplicou na última década. Em 2013, foram registrados 2.212 casos, concentrados em São Paulo e Rio de Janeiro. Desde 2018, as ocorrências ultrapassaram o patamar das 6 mil mortes, registrando 6.393 em 2023. Estados como Amapá e Bahia passaram a liderar o ranking das corporações mais violentas, deixando o Rio de Janeiro para trás. A elevada letalidade da polícia acaba caminhando junto com a corrupção de integrantes dessas corporações.
Apesar da ineficiência desse modelo de segurança pública baseada no aprisionamento em flagrante das polícias militares e no encarceramento em massa, a popularidade da guerra ao crime continua em alta e pode ser sentida pela quantidade de postulantes a cargos eletivos vindo das forças de segurança. Foram 6.649 candidatos no Brasil em 2024, 23% a menos que os 8.673 de 2020, no auge do bolsonarismo.[4] A violência fardada, mais do que políticas públicas racionais, segue no imaginário coletivo como uma forma eficiente de garantir o respeito às leis e produzir algum tipo de ordem e previsibilidade.
Em quase 50 anos de presença ostensiva nas cidades brasileiras, o tráfico de maconha e de cocaína passou por diversas fases. Nos anos 80 e 90, pequenos varejistas travavam conflitos autodestrutivos nas periferias, morros e favelas de São Paulo e do Rio. Os “bandidos”, com todos os estigmas que a palavra carregava, eram considerados os inimigos públicos número um dos centros urbanos. Para combater o crime, as autoridades apostaram no patrulhamento ostensivo de policiais militares nos bairros pobres e no aprisionamento em flagrante. Entre os efeitos colaterais dessa política, o Brasil passou a ter a polícia mais letal do mundo e alcançou o terceiro lugar entre os países com a maior população prisional do planeta. Foi a partir dos presídios superlotados, com mais de 800 mil presos, que as organizações criminosas souberam crescer e dar passos largos em direção ao lucrativo mercado atacadista. Além das dezenas de facções espalhadas pelo território nacional, facções com dimensões nacionais ampliaram sua capacidade de chegar aos grandes mercados consumidores globais.
Ironicamente, policiais e traficantes, os dois lados opostos dessa guerra longeva, tornaram-se forças influentes na política e na economia nos dias de hoje. Não foi diferente do que ocorreu em outros países em que a droga tem um peso importante na economia, como México e Colômbia, onde narcotraficantes e paramilitares se infiltraram no Estado e exercem amplo poder político e econômico nas instituições de seus países.
É o caminho que vem sendo seguido no Brasil, desde que as facções conseguiram multiplicar suas vendas e receitas. De um lado, a popularidade dos candidatos policiais, militares e milicianos, cresceu com a crise da Nova República e da política. A promessa de vencer o crime e aplacar o medo na base do fuzil os tornam representantes de uma ordem que se sente ameaçada pelo crime e pela degradação dos valores morais.
Já os traficantes, com o passar dos anos, liderados pelo PCC, conseguiram crescer pelas brechas do sistema. A criação de modelos de governança mais eficientes, a partir de bases prisionais e conexões em territórios, permitiu a esses grupos ampliarem seus negócios e acumularem dinheiro suficiente para empreender, lavar dinheiro com eficiência, investir na legalidade, comprar autoridades e consciências. O sucesso desse movimento pode ser identificado pelo crescimento do dinheiro movimentado pelo PCC e por seus integrantes na última década. Segundo as autoridades paulistas, a facção conseguiu aumentar seu faturamento em 2.400%, passando de cerca de 40 milhões de dólares para mais de 1 bilhão de dólares por ano. Essa estimativa contempla apenas os ganhos da facção pessoa jurídica, sem contar a receita de seus membros, pessoas físicas.
Mercado globalizado e conexões internacionais
O acesso a mercados globais e a conexão com máfias internacionais, como a calabresa Ndrangheta, ampliaram a participação do PCC no mercado global de drogas. O dinheiro da droga a entrar na economia formal e apagar seus rastros, além de financiar outros tipos de crime, como o ambiental. Só no ramo dos combustíveis, a estimativa da Polícia Federal é de que os postos da facção tenham movimentado 30 bilhões de reais. O grupo, segundo essa estimativa, teria 1.500 postos no país[5]. Ficou cada vez mais difícil saber a diferença entre o empreendedor endinheirado e o criminoso que lavou dinheiro, comprador de ouro, frequentador de igrejas, dono de hotéis, Porsche, aviões, adegas, organizações sociais, produtor de discos e shows, negociador de jogadores de futebol, fintechs, bancos eletrônicos, de empresa que prestam serviços para o setor público, casas de apostas, entre outros ramos.
Novos ativos financeiros, como as criptomoedas, permitiram a transação internacional com chances reduzidas de identificação. O papel-moeda praticamente sumiu da praça, ao mesmo tempo que o dinheiro virtual e as redes sociais criaram uma nova fronteira para o crime prosperar. Essa transformação já foi identificada no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2024. Os estelionatos passaram de 426,8 mil casos em 2018 para 1.965 milhão, um crescimento de 359% em cinco anos. Já os roubos em geral (a transeuntes, comércio, residências, banco e carga) caíram de 1,506 milhão em 2018 para 870,3 mil em 2023, uma redução de 42%.
Mais do que medo, o novo modelo negócio criminal, depois de regulamentado pelas facções, parece despertar respeito por gerar prosperidade e ordem. Como mostraram os eleitores de Embu das Artes, administrada desde 2017 pelo prefeito Ney Santos. Dono de postos de gasolina, produtor de shows e filantropo, Santos enfrenta diversos processos e acusações na Justiça: por mais de uma década, a polícia e o Ministério Público de São Paulo acusam Santos de pertencer ao PCC.
Mesmo assim, ele conseguiu se tornar um dos prefeitos mais populares da Grande São Paulo pelo partido da Igreja Universal do Reino de Deus, o Republicanos, contando com o apoio entusiasmado de seus correligionários, como o pastor e deputado federal Marcos Feliciano. Quando disputou a reeleição em 2020, os integrantes da candidatura de oposição decidiram levar o tema do PCC para a campanha. Antes de iniciar os ataques nas redes sociais, no entanto, eles preferiram fazer uma pesquisa qualitativa para escutar os eleitores. A maioria disse enxergar a relação entre o prefeito e o crime como positiva, já que poderia contribuir para a redução do roubo e da violência na cidade. A estratégia da oposição de vincular Santos ao PCC foi deixada de lado e ele venceu a disputa.
A ordem do crime parece ter se normalizado a partir do momento em que a facção passou a criar regras para dar vazão ao empreendedorismo no imenso mercado ilegal brasileiro. O dinheiro do crime começou a girar a economia. O Estado, por sua vez, parece ter perdido sua credibilidade como regulador da vida cotidiana, como se fosse incapaz de exercer o monopólio legítimo da força para exigir o cumprimento das normas e mediar os interesses privados em nome de projetos coletivos. Os fenômenos Jair Bolsonaro e Pablo Marçal são figuras desse tempo: políticos que enxergam o Estado como meio para promover o empreendedorismo e os negócios dos seus aliados, em detrimento dos seus adversários. Nesse sentido, não importa se as conexões de ambos com milicianos ou facções são verdadeiras. Podem até contribuir para os empreendimentos de seus apoiadores depois que ganhar a eleição e garantir proteção pelos fuzis amigos.
Para reverter a situação, será preciso: reestabelecer no imaginário dos eleitores o papel central da política na construção de um futuro coletivo, menos desigual e mais justo; despertar novamente a crença na razão e nas políticas públicas para alcançar esse caminho; e desconstruir a ideia de que uma guerra suicida contra uma parte da população é a solução para eliminar o atraso. A guerra tem servido apenas para empoderar homens armados que buscam se perpetuar no poder para tentar se manter relevantes no cotidiano das cidades.
[1] https://www.metropoles.com/sao-paulo/marcal-chama-de-bandidos-prtb-elo-pcc.
[2]. https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/22/crime-organizado-nas-eleicoes-faccoes-criminosas-do-brasil-na-politica.htm.
[3]. https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/eleicoes/2016/noticia/2016/09/mortes-na-baixada-do-rj-veja-quem-sao-os-13-assassinados-em-9-meses.html.
[4]. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/eleicoes-tem-ao-menos-6600-candidatos-militares-ou-ligados-a-forcas-de-seguranca.shtml.
[5]. https://ultimosegundo.ig.com.br/policia/2024-06-21/pcc-adota-nova-modalidade-de-crime.html.
É jornalista, doutor em Ciências Políticas pela USP, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, autor de livros como “A República das Milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro”, e “A Fé e o Fuzil – crime e religião no Brasil do século XXI”
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