11 julho 2019

Fake news, Desinformação e Liberdade de Expressão

Boatos, lendas urbanas e mentiras espalhadas maliciosamente – inclusive no contexto eleitoral – sempre existiram. Desenho datado de 1894 do pioneiro cartunista americano Frederick Burr Opper, colaborador dos melhores jornais da época, já ilustrava um cidadão segurando um jornal com o termo fake news, r epresentando o alvoroço criado pelos boatos.

Boatos, lendas urbanas e mentiras espalhadas maliciosamente – inclusive no contexto eleitoral – sempre existiram. Desenho datado de 1894 do pioneiro cartunista americano Frederick Burr Opper, colaborador dos melhores jornais da época, já ilustrava um cidadão segurando um jornal com o termo fake news, r epresentando o alvoroço criado pelos boatos.

A novidade deste século é que o avanço tecnológico, a expansão da internet e das redes sociais ampliaram exponencialmente o poder de propagação desse tipo de conteúdo. Estudo produzido por pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) a respeito das notícias distribuídas pelo Twitter entre 2006 e 2017 mostrou que notícias falsas têm 70% mais chances de serem retuitadas do que notícias verdadeiras[1].
Pesquisa realizada pela IDEIA Big Data divulgada em maio de 2019 revela que mais de dois terços das pessoas receberam fake news pelo Whatsapp durante a campanha eleitoral brasileira de 2018[2].
Nesse contexto, a sociedade como um todo – poderes públicos, entidades privadas e sociedade civil – precisa se engajar na compreensão do fenômeno e na formulação de ferramentas adequadas para seu enfrentamento.
Trata-se de tarefa desafiadora, dadas as peculiaridades da nova era da informação. Conforme afirma o historiador Yuval Harari, “(…) a revolução da internet foi dirigida mais por engenheiros do que por partidos políticos (…) O sistema democrático ainda está se esforçando por entender o que o atingiu (…)”[3].
Na seara jurídica, a abordagem do tema traz complexidades peculiares, como a relação entre o combate às notícias falsas e a liberdade de expressão.
O que são precisamente as chamadas fake news? Em que medida elas são danosas à democracia? Como fake news e liberdade de expressão se relacionam? Como enfrentar o problema? O presente texto tem menos a pretensão de fornecer respostas a essas perguntas do que contribuir com elementos para tais reflexões, inserindo-se no esforço existente hoje de compreender o fenômeno e de pensar em medidas para combatê-lo.

  1. Compreendendo o fenômeno

As novas ferramentas tecnológicas permeiam nosso cotidiano. Influenciam nossas relações pessoais, a forma como consumimos, como administramos nosso dinheiro, como tomamos decisões. Por meio das redes sociais, estabelecemos e mantemos relações afetivas e profissionais; compartilhamos ideias e opiniões; consumimos; influenciamos e somos influenciados pelos nossos pares do mundo digital.
Esse novo cenário trouxe grandes benefícios: por um lado, democratizou o acesso ao conhecimento, a produção de conteúdo e a informação; por outro lado, facilitou as transações econômico-financeiras e o intercâmbio cultural. No entanto, no ambiente virtual, as informações transitam em enorme volume e com grande velocidade, não havendo a pausa necessária para se discernir o real do irreal, o ético do não ético. Trata-se de um cenário sujeito à difusão massiva e, muitas vezes, maliciosa de informações inverídicas e danosas para a sociedade como um todo, seja pela ação humana, seja pela ação de robôs.
É nesse contexto que se inserem as fake news, expressão que, conforme venho defendendo, é inadequada para designar o problema. Considero mais adequado falar em notícia fraudulenta, por melhor exprimir a ideia da utilização de um artifício ou ardil – uma notícia integral ou parcialmente inverídica apta a ludibriar o receptor, influenciando seu comportamento – com o fito de galgar uma vantagem específica e indevida.
A crítica que faço ao uso da expressão fake news não é isolada. Outras pessoas questionam o uso do termo, sobretudo em razão da dificuldade de se precisar seu conteúdo. Conforme afirma Diogo Rais, “Fake news tem assumido um significado cada vez mais diversificado, e essa amplitude tende a inviabilizar seu diagnóstico. Afinal, se uma expressão significa tudo, como identificar seu adequado tratamento?”[4].
Tendo em vista a aludida dificuldade, o Grupo de Peritos de Alto Nível sobre Notícias Falsas e Desinformação instaurado pela Comissão Europeia – que conduz as discussões sobre o tema no bloco europeu – apresentou, em 2018, um relatório com uma série de recomendações para o combate aos conteúdos falsos[5], dentre elas que se abandone o uso da expressão fake news e se passe a utilizar desinformação, por duas razões fundamentais.
Primeiramente, porque a desinformação é fenômeno muito mais abrangente e complexo, o qual precisa ser assim compreendido para a elaboração de estratégias adequadas de enfrentamento. Trata-se de “informações falsas, inexatas ou deturpadas concebidas, apresentadas e promovidas para obter lucro ou para causar um prejuízo público intencional”[6], que colocam em risco os processos e os valores democráticos e podem visar uma grande variedade de setores além da política, tais como saúde, ciência, educação e finanças. Em segundo lugar, porque a expressão fake news tem sido utilizada frequentemente de forma maliciosa por grupos poderosos com o objetivo de retirar a credibilidade de conteúdos jornalísticos que contradigam seus próprios interesses.
A desinformação é potencializada pela coleta e pelo uso desenfreado de dados pessoais dos usuários da internet, prática que também tem preocupado governos democráticos no mundo inteiro. Esses dados alimentam os algoritmos de aprendizado de máquinas, permitindo que anúncios e notícias sejam fabricados e direcionados especificamente para determinado perfil de usuário, a partir da compreensão dos seus hábitos, preferências, interesses e orientação ideológica.
Por refletirem exatamente as preferências e visões de mundo do usuário e servirem perfeitamente à confirmação destas, essas notícias tendem a ser compartilhadas de pronto, sem o devido questionamento ou checagem, tendo em vista a ânsia de se comprovar uma dada convicção, um comportamento característico da era da pós-verdade. Tais conteúdos têm um enorme poder de propagação, como mostra a pesquisa divulgada pelo MIT, já mencionada anteriormente, a qual atestou que os seres humanos são mais responsáveis pela propagação de notícias falsas do que os robôs instalados com tal finalidade.
Esse é um dos motivos pelos quais é crescente a preocupação com a proteção dos dados dos usuários, a qual ensejou a criação do Regulamento Geral Sobre Proteção de Dados na União Europeia (Regulamento 2016/679), que começou a viger em 2018, e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil (Lei nº 13.709/2018), que vigerá a partir de 2020. São legislações que protegem, sobretudo, a privacidade das pessoas, criando condições para que os usuários imponham limites à utilização de seus dados pessoais e exigindo das empresas maior segurança e transparência na coleta e no uso dessas informações.

  1. Desinformação e riscos à democracia

Hannah Arendt afirmou em entrevista dada em 1974 que, “se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada”[7]. A filósofa política falava tendo em vista as experiências totalitárias do século 20, em que a propaganda ideológica estatal tinha como base a manipulação do sentido de realidade das pessoas. No entanto, a reflexão cabe perfeitamente ao momento atual.
A desinformação retira a capacidade de discernir o real do irreal, gerando um ambiente de crescente desconfiança e descrença. Como agir sem um substrato de realidade? Como tomar decisões adequadas sem a capacidade de discernir o real do irreal?
Outro fenômeno relacionado à desinformação é a polarização de opiniões na sociedade. Conforme mencionado aqui, um dos mecanismos utilizados é a fabricação e o direcionamento de conteúdos cada vez mais ajustados ao perfil do receptor. Essa prática propicia a difusão sectária de conteúdos na internet, ou seja, determinados conteúdos chegam somente a determinados círculos de usuários, ao passo que os conteúdos que veiculam ou confirmam opiniões dissidentes tendem a não alcançar esses mesmos círculos. No universo do mundo em rede são criados verdadeiros guetos e muros de separação.
Resta, então, minimizada a possibilidade de confronto entre opiniões e visões de mundo dissidentes, o que enfraquece ou mesmo nulifica o debate, tão essencial para a democracia. Além disso, cria-se um ambiente propício ao avanço de discursos de ódio e de intolerância, os quais estimulam a divisão social a partir da dicotomia “nós” e “eles”, um modo de pensar que remete ao fantasma das ideologias fascistas, conforme explica o filósofo Jason Stanley[8].
Em tal cenário – caracterizado, no extremo, pela destruição de uma compreensão comum da realidade –, cria-se também uma atmosfera de medo. É nas fraturas sociais que se semeiam os medos, e o maior deles é o medo do outro, visto como inimigo, opoente, ameaça. O medo alimenta o preconceito e o ódio e é por eles alimentado, criando um círculo vicioso.
Tudo isso polui o debate democrático. O cidadão passa a formar sua opinião e a se conduzir na democracia guiado por ilusões, por inverdades, e a deturpação da realidade obstrui os caminhos da democracia. Ademais, ultrapassada a fronteira do pluralismo – compreendido como “equilíbrio dinâmico” entre as diferenças, como embate construtivo e transformador –, inviabiliza-se o diálogo.
A saúde da democracia depende da qualidade do diálogo realizado dentro dela. Por isso, é necessário primar pela verdade e pela disseminação de informações fidedignas, por meio do uso ético e transparente das novas tecnologias. Esses são elementos aos quais não podemos renunciar, sob pena de colocar em risco nossas conquistas democráticas.

  1. Democracia e liberdade de expressão na era da (des)informação

O regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito a voz. De fato, a democracia somente se firma e progride em um ambiente em que diferentes convicções e visões de mundo possam ser expostas, defendidas e confrontadas umas com as outras, em um debate rico, plural e resolutivo.
Nesse sentido, é esclarecedora a noção de “mercado livre de ideias”, oriunda do pensamento do célebre juiz da Suprema Corte Americana Oliver Wendell Holmes, segundo o qual ideias e pensamentos devem circular livremente no espaço público para que sejam continuamente aprimorados e confrontados em direção à verdade[9].
Além desse caráter instrumental para a democracia, a liberdade de expressão é um direito humano universal – previsto no artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948[10] –, sendo condição para o exercício pleno da cidadania e da autonomia individual.
A liberdade de expressão está amplamente protegida em nossa ordem constitucional. As liberdades de expressão intelectual, artística, científica, de crença religiosa, de convicção filosófica e de comunicação são direitos fundamentais (art. 5º, incisos IX e XIV) e essenciais à concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil, notadamente o pluralismo político e a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I e IV).
A liberdade de expressão é um dos grandes legados da Carta Cidadã, resoluta que foi em romper definitivamente com um capítulo triste de nossa história em que esse direito – dentre tantos outros – foi duramente sonegado ao cidadão. Graças a esse ambiente pleno de liberdade, temos assistido ao contínuo avanço das instituições democráticas do país.  Por tudo isso, a liberdade e os direitos dela decorrentes devem ser defendidos e reafirmados firmemente.
O Supremo Tribunal Federal tem construído uma jurisprudência consistente em defesa da liberdade de expressão: declarou a inconstitucionalidade da antiga lei de imprensa, por possuir preceitos tendentes a restringir a liberdade de expressão de diversas formas (ADPF 130, DJe de 6/11/2009); afirmou a constitucionalidade das manifestações em prol da legalização da maconha, tendo em vista o direito de reunião e o direito à livre expressão de pensamento (ADPF 187, DJe de 29/5/14); dispensou diploma para o exercício da profissão de jornalismo, por força da estreita vinculação entre essa atividade e o pleno exercício das liberdades de expressão e de informação (RE 511.961, DJe de 13/11/09); determinou, em ação de minha relatoria, que a classificação indicativa das diversões públicas e dos programas de rádio e TV, de competência da União, tenha natureza meramente indicativa, não podendo ser confundida com licença prévia (ADI 2404, DJe de 1/8/17) – para citar apenas alguns casos.
No entanto, a liberdade de expressão deve ser exercida em harmonia com os demais direitos e valores constitucionais. Ela não deve respaldar a alimentação do ódio, da intolerância e da desinformação. Essas situações representam o exercício abusivo desse direito, por atentarem, sobretudo, contra o princípio democrático, que compreende o “equilíbrio dinâmico” entre as opiniões contrárias, o pluralismo, o respeito às diferenças e a tolerância.
Essa compreensão foi uma das razões pelas quais o STF, no julgamento do HC 82.424 (DJ de 19/3/04), conhecido como Caso Ellwanger, manteve a condenação de um escritor e editor julgado pelo crime de racismo por publicar, vender e distribuir material antissemita. A garantia da liberdade de expressão foi afastada em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.
É também do célebre Juiz Oliver Wendell Holmes, grande defensor da liberdade de expressão, a ideia de que esse direito pode ceder nos casos em que a manifestação de pensamento implique perigo evidente e atual capaz de produzir males gravíssimos. Entendo ser esse o caso de determinadas notícias fraudulentas, tendo em vista os sérios danos à democracia que o compartilhamento massivo desses conteúdos pode causar.
Ademais, correlata da liberdade de expressão, a liberdade de informação também está amplamente protegida em nossa ordem constitucional. Com efeito, a Carta assegura a todos o acesso à informação, de natureza pública ou de interesse particular (art. 5º, incisos XIV e XXXIII, e art. 93, inciso IX). No contexto da comunicação social, a Constituição confere “acentuada marca de liberdade na organização, produção e difusão de conteúdo informativo” (ADI 4451, DJe de 6/3/19), proibindo qualquer restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação (art. 220).
As liberdades de expressão e de informação fidedigna são complementares. A desinformação turva o pensamento; coloca-nos no círculo vicioso do engano; sequestra a razão. A dificuldade de discernir o real do irreal e a desconfiança prejudicam nossa capacidade de formar opinião e de nos manifestar no espaço público. Por isso, combater a desinformação é garantir o direito à informação, ao conhecimento, ao pensamento livre, dos quais depende o exercício pleno da liberdade de expressão.

  1. O enfrentamento à desinformação

5.1. Estratégias multidimensionais  e multissetoriais
A desinformação é um problema complexo que envolve dimensões tecnológicas, sociológicas e jurídicas que devem ser consideradas no enfrentamento do problema. Por isso, ela requer uma abordagem multidimensional e multissetorial, ou seja, na qual estejam engajados diferentes setores da sociedade civil, como usuários, empresas de tecnologia, provedores, imprensa, veículos de comunicação e organizações sociais, além dos poderes públicos.
Na União Europeia, as discussões relativas ao tema estão sendo conduzidas pela Comissão Europeia, que tem embasado suas ações no relatório elaborado em 2018 pelo Grupo de Peritos de Alto Nível sobre Notícias Falsas e Desinformação On-line. Embora direcionado aos países do bloco europeu, esse documento serve de inspiração para os debates acerca do tema.
O relatório sugere uma abordagem baseada em seis pilares: i) mais transparência por parte dos portais e provedores; ii) “alfabetização midiática e informacional” (media and information literacy) de jovens e adultos; iii) desenvolvimento de ferramentas para capacitar usuários e jornalistas a combater a desinformação; iv) promoção do uso positivo de tecnologias de informação de rápida evolução; v) proteção da diversidade e da sustentabilidade do ecossistema dos meios de comunicação; vi) promoção de pesquisas acadêmicas sobre a desinformação.
Pensando nas eleições do parlamento europeu de 2019, a Comissão Europeia instituiu o Sistema de Alerta Rápido, plataforma digital que coloca em contato 28 Estados-membros e instituições do bloco, facilitando o compartilhamento de dados e a análise de campanhas de desinformação, sinalizando ameaças em tempo real. É uma abordagem que envolve múltiplos atores, privilegiando o diálogo e a interlocução de vários setores da sociedade.
No Brasil, as principais iniciativas têm sido encabeçadas pela Justiça Eleitoral – a quem cabe zelar pela realização de eleições livres, seguras, equânimes e que concretizem a vontade popular –, a partir de abordagens que consideram, em certa medida, a dimensão multidimensional e multissetorial do problema.
Em 2017, foi criado o Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições pela Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o objetivo de “desenvolver pesquisas e estudos sobre as regras eleitorais e a influência da internet nas eleições, em especial o risco das fake news e o uso de robôs na disseminação das informações”[11].
Em 2018, tendo em vista as eleições gerais que se avizinhavam, o Tribunal Superior Eleitoral celebrou acordo de colaboração com 28 partidos políticos, por meio do qual eles se comprometeram “a manter o ambiente de higidez informacional, de sorte a reprovar qualquer prática ou expediente referente à utilização de conteúdo falso”.
Este ano, o TSE promoveu o seminário internacional “Fake News e Eleições”, com o objetivo de fomentar a discussão sobre formas de se impedir a propagação de notícias falsas nos processos eleitorais. O evento reuniu autoridades públicas, representantes de instituições da sociedade civil e pesquisadores, nacionais e internacionais, que compartilharam conhecimento, dados, experiências e sugestões sobre o tema.
Recentemente, no Supremo Tribunal Federal, foi lançado o Painel Multissetorial de Checagem de Informações e Combate a Notícias Falsas, que mobiliza todos os órgãos da cúpula do Poder Judiciário brasileiro[12], instituições essenciais à Justiça[13], associações de magistrados[14], associações e representantes da imprensa brasileira e da sociedade civil organizada[15]. A mobilização teve início com a campanha #FakeNewsNão, capitaneada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com tribunais superiores e entidades representativas da magistratura, que se propõe a divulgar conteúdos educativos para o combate às notícias fraudulentas. O painel é o resultado da adesão voluntária de diversas entidades à campanha.
O objetivo fundamental do Painel é alertar os leitores e os internautas sobre os perigos do compartilhamento de informações duvidosas, além de os orientar sobre como checar a veracidade das notícias, sobretudo aquelas relativas à Justiça brasileira, que lida diariamente com temas sensíveis e que podem afetar a vida dos cidadãos se o teor de suas decisões for distorcido. Todos os integrantes do painel contribuem para o projeto dentro de sua própria área de atuação e com ferramentas de que já dispõem, respeitando-se as especificidades e a linha editorial de cada veículo de imprensa.
Portanto, no Brasil, as instituições públicas – sobretudo o Poder Judiciário – e a sociedade civil estão se mobilizando em defesa da verdade e da informação. As iniciativas são recentes, mas os prognósticos são os melhores possíveis, tendo em vista o comprometimento de múltiplos setores da sociedade que estão aderindo a essas políticas de forma voluntária e com total autonomia.
5.2. Estratégias regulatórias
ALguns países no mundo estão editando leis especificamente voltadas ao combate à desinformação. Citarei alguns casos emblemáticos e a abordagem brasileira.
A União Europeia optou por não adotar regulamentação sobre o tema. No contexto do bloco, o que existe é um sistema de autorregulação, no qual as plataformas digitais e as empresas de publicidade estabelecem para si normas de conduta. Assim, no final de 2018, Google, Twitter, Facebook e Mozilla apresentaram um código de conduta, com o qual se comprometem, por exemplo, a implementar medidas e ferramentas que auxiliem o usuário a priorizar e identificar informações autênticas.
Não obstante, alguns países do bloco optaram por adotar medidas regulatórias. Nesse sentido, a Alemanha aprovou, em 2017, lei que confere grande responsabilidade às plataformas digitais pela disseminação de notícias falsas ou de discursos de ódio. Dentre as principais obrigações previstas na lei, consta a determinação de que as redes sociais e as plataformas de compartilhamento de vídeo criem sistemas de denúncia pelos próprios usuários. Os conteúdos manifestamente ilegais devem ser removidos no prazo de 24 horas, a contar da reclamação ou de determinação judicial, sob pena de multa de até 50 milhões de euros.
A França aprovou, no final de 2018, lei de combate à desinformação mirando o período eleitoral, a qual também obriga as plataformas digitais a criar um sistema de denúncias. Ademais, exige-se transparência por parte dessas plataformas quanto aos algoritmos utilizados.
No Reino Unido, o Parlamento Britânico divulgou um relatório em julho de 2018 propondo medidas para combater a desinformação, dentre elas a instituição de um código de ética para as plataformas on-line que determine a remoção de conteúdos danosos a partir de denúncias dos usuários e a adoção de medidas para o aumento da transparência das plataformas frente aos usuários e ao Poder Público[16]. O relatório servirá de base a um projeto de lei, o qual será apresentado ao parlamento após consulta pública sobre as propostas formuladas.
Esses casos demonstram um movimento no sentido de ampliar a responsabilidade das plataformas pelo controle da disseminação de notícias fraudulentas e outros conteúdos maliciosos, fixando a obrigação de retirar o conteúdo mediante denúncia do usuário.
Normas eleitorais e não eleitorais podem ser usadas
O Brasil não possui legislação direcionada especificamente ao combate às notícias fraudulentas. Não obstante, o país possui normas – eleitorais e não eleitorais – que podem ser utilizadas no enfrentamento à desinformação.
A Lei 12.891/2013 (Minirreforma Eleitoral de 2013) criminalizou a contratação direta ou indireta de grupo de pessoas com a finalidade específica de emitir mensagens ou comentários na internet para ofender a honra ou denegrir a imagem de candidato, partido ou coligação (§§ 1º e 2º do art. 57-H). Não somente quem contratou pode ser punido, mas também as pessoas contratadas com tal objetivo.
A Lei 13.488/2017 (Minirreforma Eleitoral de 2017) avançou no combate aos conteúdos falsos ao não admitir a veiculação de conteúdos de cunho eleitoral “mediante cadastro de usuário de aplicação de internet com a intenção de falsear identidade”, ou seja, perfil falso (art. 57-B, § 2º). Tanto o responsável pela veiculação quanto o beneficiário podem ser punidos com multa de até R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
A Resolução nº 23.551/2017 (que dispõe sobre a propaganda eleitoral, a utilização e a geração do horário gratuito e sobre as condutas ilícitas em campanha eleitoral nas eleições), por seu turno, ressalva da garantia de livre manifestação de pensamento os casos de divulgação de “fatos sabidamente inverídicos” (art. 22, § 1º), situação que pode ensejar ordem judicial determinando a remoção do conteúdo (art. 33, § 1º).
Essa norma foi aplicada pela primeira vez em junho de 2018, em representação oferecida pelo Diretório da Rede Sustentabilidade perante o TSE, na qual o partido indicava a ocorrência de publicações falsas relativas a um suposto envolvimento da pré-candidata Marina Silva em atos de corrupção delatados na Operação Lava Jato. O ministro relator deferiu a liminar, determinando ao Facebook que removesse o conteúdo no prazo de 48 horas[17].
Para além do direito eleitoral, temos o art. 19[18] da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que possibilita que o provedor de internet torne indisponível conteúdo danoso gerado por terceiro mediante ordem judicial, cujo descumprimento gera responsabilidade civil para o provedor. O preceito permite, inclusive, em seu § 4º, a antecipação dos efeitos da tutela, havendo “prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”.
Ressalto que o Supremo Tribunal Federal recentemente reconheceu a repercussão geral, em processo da minha relatoria, da matéria relativa à constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet no que tange à exigência de ordem judicial para a retirada ou a indisponibilização de conteúdo ilícito e a responsabilização do provedor (Tema 987, RE 1037396-RG, DJe de 4/4/18).
O recurso representativo da controvérsia foi interposto pelo Facebook em face de acórdão com o qual a turma recursal cível afastou a necessidade de prévia decisão judicial para a remoção de conteúdo danoso ao usuário – um perfil falso criado em seu nome. A empresa recorrente sustentou a constitucionalidade do requisito, tendo em vista a vedação da censura, a liberdade de expressão e a reserva de jurisdição.
Conforme consignei no voto que proferi pelo reconhecimento da repercussão geral, é preciso definir se,
“(…) à luz dos princípios constitucionais e da Lei nº 12.965/2014, a empresa provedora de aplicações de internet possui os deveres (i) de fiscalizar o conteúdo publicado nos seus domínios eletrônicos, (ii) de retirar do ar informações reputadas como ofensivas mediante simples notificação extrajudicial e (iii) de se responsabilizar legalmente pela veiculação do aludido conteúdo antes da análise pelo Poder Judiciário.”
O debate instaurado no aludido processo insere-se na reflexão relativa à necessidade ou não de decisão judicial para a remoção de conteúdo falso da internet, a qual está no cerne dos debates acerca dos mecanismos adequados ao combate à desinformação.
Tramitam no Congresso Nacional propostas direcionadas a aumentar o rigor no enfrentamento das notícias fraudulentas[19]. Os projetos propõem basicamente dois tipos de regras: criminalizam os usuários que difundem ou produzem notícias falsas; ou responsabilizam as plataformas digitais pelo conteúdo que circula em seu interior, sujeitando-as a multas na hipótese de não remoção de mensagens falsas ou prejudiciais, independentemente de decisão judicial.[20]
A discussão não é trivial e teremos de enfrentá-la cedo ou tarde, dadas as propostas em trâmite no Congresso Nacional e a repercussão geral, pendente de julgamento no STF.

  1. Conclusão

As notícias fraudulentas e a desinformação são extremamente danosas à democracia. Por gerarem desconfiança e incerteza, prejudicam a ação individual no espaço público, visto que o cidadão passa a se guiar por inverdades. Além disso, essas práticas facilitam a polarização social, dificultando, ou mesmo inviabilizando, o diálogo plural, tão fundamental para a democracia.
O regime democrático necessita de um ambiente em que ocorra o livre trânsito de ideias, razão pela qual as nações democráticas tutelam com vigor a liberdade de expressão. No entanto, esse direito não pode dar guarida à desinformação. Em verdade, o pleno exercício da liberdade de expressão depende do acesso a informações fidedignas, as quais são necessárias ao conhecimento e ao pensamento livre.
A sociedade como um todo – poderes públicos, instituições essenciais à Justiça, comunidade acadêmica, imprensa, jornalistas, provedores de internet, plataformas digitais e verificadores de notícias – deve estar engajada no enfrentamento à desinformação. Precisamos manter o diálogo e cooperar na busca por soluções que, a um só tempo, privilegiem o debate democrático, a verdade e a liberdade de expressão.
[1].
The spread of true and false news online
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[2].
MELLO, Patrícia Campos. 2 em cada 3 receberam fake news nas últimas eleições, aponta pesquisa. Folha de S.Paulo, 19 mai. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/2-em-cada-3-receberam-fake-news-nas-ultimas-eleicoes-aponta-pesquisa.shtml. Acesso em: 9 jun. 2019.
[3]
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Trad. Paulo Geiger. Companhia das Letras, 2018.
[4]
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[5].
EUROPEAN COMMISSION. A multi-dimensional approach to disinformation: Report of the independent High level Group on fake news and online disinformation. 2018. Disponível em: https://blog.wan-ifra.org/sites/default/files/field_blog_entry_file/HLEGReportonFakeNewsandOnlineDisinformation.pdf. Acesso em: 9 jun. 2019.
[6].
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[7]
Apud GRENIER, Elizabeth. Por que se recorre a Hannah Arendt para explicar Trump. DW, 3 fev. 2017. Disponível em: https://p.dw.com/p/2WvMH. Acesso em: 28 mar. 2019.
[8].
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Trad. Bruno Alexander. L&PM Editores, 2018.
[9].
TORRES, Marta Bisbal. El mercado libre de las ideas de O. W. Holmes. Revista Española de Derecho Constitucional. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Septiembra/diciembre 2007.
[10].
“Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
[11].
Portaria TSE nº 949, de 7 de dezembro de 2017.
[12].
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho da Justiça Federal (CJF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Tribunal Superior do Trabalho (TST) e Superior Tribunal Militar (STM).
[13].
Defensoria Pública da União (DPU) e Advocacia-Geral da União (AGU).
[14].
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
[15].
Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Fundação Getúlio Vargas (FGV), Observatório da Liberdade de Expressão da OAB, Boatos.org, Aos Fatos, Jota, Jus Brasil, Jus Navigandi, Site Migalhas, Revista eletrônica, Consultor Jurídico (ConJur) e Universo Online – UOL.
[16].
VALENTE, Jonas. Parlamento britânico faz recomendações para combater fake news. Agência Brasil. 30 jun. 2018. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/parlamento-britanico-faz-recomendacoes-para-combater-fake-news. Acesso em: 9 jun. 2019.
[17].
TSE aplica pela primeira vez norma que coíbe notícias falsas na internet. Portal do Tribunal Superior Eleitoral. 7 jun. 2018. Disponível em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Junho/tse-aplica-pela-primeira-vez-norma-que-coibe-noticias-falsas-na-internet. Acesso em: 9 jun. 2019.
[18].
“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
[19].
VALENTE, Jonas. Legislação sobre notícias falsas divide opiniões no Congresso. Agência Brasil. Brasília, 8 jul. 2018. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-07/legislacao-sobre-fake-news-divide-opinioes-no-congresso. Acesso em: 9 jun. 2019.
[20].
São exemplos disso o Projeto de Lei 8592/2017, do Deputado Jorge Côrte Real (PTB/PE), que altera o Código Penal, tornando crime a divulgação de informação falsa ou prejudicialmente incompleta; e o Projeto de Lei 7.604/2017, do Deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), que atribui aos provedores de conteúdo nas redes sociais a responsabilidade pela divulgação de notícias falsas, ilegais ou prejudicialmente incompletas, em detrimento de pessoa física ou jurídica, fixando multa de 50 milhões de reais caso o provedor não remova o conteúdo.


É presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente da Comissão de Juristas incumbida, pelo Senado Federal, de elaborar anteprojeto do Novo Código Eleitoral. Professor da Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.

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