Número 68

Ano 18 / janeiro - março 2025

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Fatos e hipóteses sobre as eleições municipais de 2024

Nesse momento, especialistas que estudam processos eleitorais estão debruçados sobre os resultados do pleito de outubro deste ano para deles tirar conclusões firmes quanto a seu significado e suas implicações. Há coisas que já se sabe e outras que circulam como verdades, embora ainda careçam de comprovação. Trato aqui do que já é possível dizer com certeza e do que é conjectura à espera de verificação empírica.

No Brasil, falar de eleições municipais no plural é tirar conclusões gerais a partir de 5.569 disputas, cada uma delas com suas peculiaridades. Assim, o que vale no atacado quase nunca explica um caso específico.

Mas vamos aos fatos. Alguns relacionam-se à estrutura institucional do sistema político brasileiro e às regras que regem a competição eleitoral nos municípios. Outros são propriamente políticos, fruto das estratégias dos partidos e candidatos e das preferências majoritárias dos eleitores.

Instituições e formato da competição

Nossos municípios formam a base da federação, reconhecidos na Constituição como entes federativos com autonomia política, administrativa e financeira. Mas, enquanto a escolha de membros dos executivos e legislativos dos níveis estadual e federal ocorre simultaneamente — no que se costuma chamar de eleições casadas —, os pleitos municipais acontecem em data própria. Esse fato torna mais complexa a conexão entre as disputas na base do sistema e aquelas que acontecem nas esferas superiores da federação, em que a coordenação partidária entre palanques estaduais e nacional é mais visível e os resultados mais nitidamente relacionados, ainda que nunca o sejam completamente. Por exemplo, nos pleitos de 2018 e 2022 a disputa radicalizada entre o campo organizado em torno da candidatura petista e aquele que se aglutinou em volta de Jair Bolsonaro teve impacto claro nas escolhas para os governos dos estados.

Embora não fossem poucos os analistas que tenham previsto que a mesma cisão vertebraria as eleições de 2024, isso não ocorreu. Assim, partidos mais conservadores, que ocupam ministérios do governo Lula, coligaram-se ou apoiaram candidatos também sustentados por Bolsonaro e seus seguidores fiéis em cidades importantes, como São Paulo. Nem ali, no maior colégio eleitoral do país, prosperou a tentativa dos dois blocos de “nacionalizar a disputa”, transformando-a em medição de força exemplar entre petismo e bolsonarismo. Maioria folgada de paulistanos usou seu voto para manifestar morna preferência pelo prefeito incumbente.

Por outro lado, cientistas políticos já demonstraram a existência de correlação entre o pleito municipal e o subsequente para a Câmara Federal. Não só aqueles prenunciam predisposições políticas dos votantes que se tornarão visíveis nas disputas seguintes nos outros níveis da federação. Prefeitos e vereadores tornam-se cabos eleitorais de deputados quando não se candidatam ao legislativo federal.

Se as eleições são solteiras e seguem o mesmo calendário em todo território nacional, as regras não são as mesmas para os 5.569 municípios. Em 5.466 cidades brasileiras elas se dão em turno único. A segunda volta ocorre apenas naquelas que contam com mais de 200 mil eleitores. São cerca de uma centena e formam o G103, que inclui as 26 capitais dos estados.

Tamanho do eleitorado e formatos de competição diferentes incentivam estratégias partidárias distintas. Se o número de votantes é pequeno e a contenda tem que se resolver em um turno, há estímulo para que forças políticas locais se agrupem em torno de poucos candidatos. Em 2024, 55% dos pleitos foram de fato bipartidários. Em 223 municípios, regidos pela regra do turno único, apresentou-se apenas um candidato. No conjunto, diz estudo da Confederação Nacional de Municípios, as disputas foram mais enxutas, com poucos candidatos encabeçando coligações de partidos.

Eleições mantenedoras, preferências conservadoras

Cientistas políticos costumam distinguir disputas, denominadas críticas, nas quais ocorre realinhamento das preferências dos eleitores, com mudanças dramáticas na distribuição costumeira dos votos pelos partidos, daquelas em que há certa continuidade da força relativa das agremiações. A essas últimas costumam chamar de eleições mantenedoras. Assim, em 2018 o país assistiu ao primeiro realinhamento eleitoral na competição para a Presidência da República desde 1994, quando votantes do campo antipetista abandonaram o PSDB e despejaram seus votos em Jair Bolsonaro.

Os dois conceitos se aplicam com dificuldade ao plano municipal, dada a multiplicidade dos colégios eleitorais e a consequente diversificação dos partidos competidores nas diferentes localidades. De toda forma, é possível dizer que as eleições de 2024 podem ser consideradas mantenedoras em dois sentidos diferentes.

Em primeiro lugar, elas se caracterizaram por taxas muito elevadas de reeleição dos prefeitos que tentaram um segundo mandato —82% dos prefeitos que se recandidataram tiveram êxito. Foi a maior porcentagem desde que a possibilidade de reeleição foi instituída, em 1997. A partir de então, cerca de 60% dos prefeitos que se recandidatavam à prefeitura voltavam ao cargo, à exceção do pleito de 2016, quando a taxa caiu para 49%, prenunciando o terremoto político nacional de 2018.

Como sempre, em 2024 houve diferenças de estado para estado. Em um extremo, todos os prefeitos de Roraima em busca de um segundo mandato foram bem-sucedidos. Já na outra ponta, em Santa Catarina, 64% deles voltarão a governar suas cidades, uma taxa de sucesso que, sendo a menor do país, não deixa de ser significativa.

Em segundo lugar, as eleições municipais reafirmaram fenômeno que vem se repetindo a cada quatro anos desde o início da Nova República e remonta, pelo menos, às disputas limitadas que ocorreram durante o regime autoritário. Trata-se do predomínio das forças de direita no nível municipal. Os partidos mais beneficiados pelo voto popular variaram ao longo do tempo e regionalmente. Mas as forças de direita — de diferentes matizes e abrigadas em várias legendas — sempre levaram a melhor na base do sistema político, como demonstraram Timothy Power e Rodrigo Rodrigues-Silveira em Mapping ideological preferences in Brazilian elections, 1994-2018.E, em consequência, também na Câmara Federal. As esquerdas, por seu turno, sempre foram minoria no nível local — e no Congresso Nacional —, mesmo quando o PT ocupou a cadeira presidencial, entre 2004 e 2016.

Dos 29 partidos políticos brasileiros, 24 garantiram prefeituras em 2024, conforme dados da Confederação Nacional dos Municípios.Os cinco partidos com maior número de prefeitos eleitos são do campo conservador: PSD (891 prefeitos eleitos), MDB (864), PP (752), PL (516) e Republicanos (433). As direitas são dominantes na base do sistema político, mas são também muito diversas. O PL, agremiação do ex-presidente Bolsonaro, cresceu mostrando não só a influência do líder, apesar de seus problemas com a lei, mas o espaço conquistado por uma direita extremada e ideológica. Entretanto, nesse território muito povoado e disputado, continuam a reinar os agrupamentos mais pragmáticos e dispostos a compor ou negociar com qualquer governo que lhes sacie o apetite por cargos e verbas. O avanço do partido do deputado Gilberto Kassab e a permanência do MDB velho de guerra entre os partidos mais fortes na esfera municipal confirmam a primazia da direita pragmática sobre o fervor ideológico dos que ganharam cara política própria sob a liderança de Bolsonaro.

O PT conquistou 252 prefeituras e ficou em nono lugar, sendo superado pelo PSB e pelo PSDB. Embora o desempenho do partido do presidente da República tenha sido melhor agora do que em 2020, os resultados não foram de porte a reverter a queda sofrida a partir de 2016. Neste ano, o partido começou a perder importância nas cidades do G103, que concentram fatia politicamente importante dos eleitores pobres urbanos, como definiu em 2020 o cientista político Jairo Nicolau. Entre as cidades com eleitorado que ultrapassa 200 mil votantes, o PT ganhou em uma só capital, Fortaleza; e em um único município, Mauá, na Grande São Paulo. Perder a corrida eleitoral não é o mesmo que desaparecer como força política. Mas, inequivocamente, hoje o PT tem pela frente adversários fortes e capazes de disputar o apoio da massa de eleitores pobres das grandes cidades.

Finalmente, do ponto de vista sociodemográfico, as últimas eleições registraram aumento do número de mulheres e pessoas autodeclaradas negras, tanto entre candidatas quanto entre aquelas que venceram a disputa. As competidoras pertencem a diferentes legendas, muitas alinhadas à direita. Mas não cabe dúvida de que a diversificação das candidaturas por gênero e cor foi bandeira das esquerdas, e seu avanço não deixa de ser conquista sua.

Os resultados: determinantes e consequências

É um truísmo afirmar que as escolhas dos eleitores são limitadas pela oferta de candidatos pelos partidos. Sobre a decisão desse voto restringido pela oferta incidem condições prévias, recursos materiais e políticos à disposição dos candidatos, e seu desempenho ao longo da campanha eleitoral. No caso de candidatos à reeleição, tem importância também a avaliação pelos eleitores de seus feitos durante o primeiro mandato. Nunca é fácil separar os dois tipos de recursos — materiais e políticos —, muito menos aquilatar seu peso em relação à importância dos fatos de campanha e, em especial, da propaganda eleitoral propriamente dita.

Entretanto, os resultados mostram que os governadores foram agentes importantes nos pleitos municipais de seus estados. Em 16 deles, o partido do governador fez o maior número de prefeitos. Em 21 unidades da federação, a agremiação do governador esteve entre as três que mais abocanharam prefeituras.

O crescimento significativo da taxa de reeleição levou analistas a apontarem a importância das emendas parlamentares para a recondução de prefeitos, que tiveram à sua disposição mais dinheiro para políticas públicas — em especial, obras — que redundariam em votos. Atraente e até plausível, essa é ainda uma hipótese a ser testada por estudos cuidadosos e empiricamente bem fundamentados. Em resumo, a observação do mosaico político, que eleições municipais sempre produzem, permite poucas conclusões gerais.

A primeira delas é que a confrontação nacional entre centro-esquerda, liderada pelo Partido dos Trabalhadores, e extrema-direita, mobilizada por Jair Bolsonaro, não se reproduziu no nível da disputa local nem mesmo nos colégios eleitorais mais importantes: as capitais dos estados.

À esquerda, o PT recuperou apenas parte do espaço perdido desde 2016, mas não ali onde se concentra o grande contingente de eleitores pobres e remediados, nas capitais e cidades com mais de 200 mil votantes. O Partido Socialista, seu aliado mais ao centro, fez um número maior de prefeitos e teve vitória simbólica importante com a votação estrondosa com a qual se reelegeu o prefeito de Recife.

À direita, o campo saiu do pleito como entrou: majoritário na base do sistema político e fragmentado em muitos partidos. É vastamente ocupado por legendas a um tempo conservadoras e pragmáticas no trato com os governos, que convivem com uma franja radical, bem menor, mas politicamente mobilizada e ideologicamente definida, que a falta de melhor denominação atende pelo nome de bolsonarismo. Na sua vizinhança habitam forças de centro que já foram maiores e de feições mais nítidas, nos bons tempos do PSDB e do MDB, e hoje são quase indistinguíveis dos conservadores pragmáticos.

Esses resultados não permitem prever a forma que tomará a disputa presidencial em 2026, muito menos seu desfecho. Mas, seja ele qual for, terá que lidar com um sistema político no qual as direitas continuarão dominando as bases locais, serão majoritárias no Legislativo federal e importantes na esfera estadual.

Referências:

Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Os Candidatos eleitos no primeiro turno das eleições municipais. Estudos Tecnicos, 2024a. Disponível em:www.cnm.org.br.

Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Os resultados das eleições municipais. Estudos Tecnicos, 2024b. Disponível em: www.cnm.org.br.

Lavareda, Antônio. Capítulo 1. In: Lavareda, Antônio; Telles, Helcimara (orgs). Eleições Municipais na Pandemia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2022.

Limongi, Fernando; Guarnieri, Fernando. Competição partidária e voto nas eleições presidenciais no Brasil. Opinião Pública 21 (1), jan.-abr. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-019121160.

Nicolau, Jairo. O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2020.

Power, Timothy; Rodrigues-Silveira, Rodrigo. Mapping ideological preferences in Brazilian elections, 1994-2018. Brazilian Political Science Review 13(1), 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-3821201900010001. n

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