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Interesse Nacional
05 abril 2024

Forças armadas e a crise institucional na área de Defesa do Brasil


Júlio C. Rodriguez

O Brasil atravessa uma crise institucional no âmbito da Defesa desde o ingresso dos militares no governo de Jair Bolsonaro. O acesso de militares da ativa e da reserva, especialmente, os oficiais-generais para funções tipicamente civis, no auxílio à gestão de problemas públicos nacionais, já havia afetado a imagem das forças armadas perante a sociedade; principalmente pelos equívocos na condução das políticas públicas de saúde durante a pandemia.[1] Também fez recrudescer o criticismo dos especialistas em relações civis-militares do país sobre o papel das forças armadas na política nacional[2]. As principais críticas desses especialistas referem-se ao desvio de função dos militares quando ocupam cargos públicos, tipicamente civis, e pelos efeitos sobre as forças armadas do envolvimento no governo e na política partidária. 

As investigações recentes sobre os atentados contra os prédios dos três poderes da República demonstraram o envolvimento de parte dos oficiais-generais da ativa e da reserva nas tramas auto golpistas e golpistas. Esse envolvimento resultou na piora da reputação das forças armadas. Assim, as dificuldades apresentadas pelos oficiais na condução de ministérios civis revelaram para a sociedade, novamente, os problemas de mantermos militares na gestão da administração pública civis, tal qual tivemos durante o período da ditadura militar entre os anos de 1964 e 1985. O governo Bolsonaro, conforme Amorim Neto e Rodriguez (2022, p.320):

“durante seu mandato, por meio de nomeações políticas para Ministérios, para cargos de confiança e de assessoria, bem como para direção de estatais, como a Petrobras e a Itaipu Binacional, estima-se que mais de 6 mil militares ocuparam cargos no governo e, em alguns momentos, quase 40% dos Ministérios foram chefiados por militares da ativa ou reserva”.

Não bastassem os problemas de gestão pública, especialmente os ligados à pandemia, somamos a isto o embarque de parte dos oficiais que estavam em cargos ministeriais e cargos de confiança na defesa de interesses políticos do governante de se conservar no poder à revelia das regras democráticas. O envolvimento desses militares, então, nos planos do governo Bolsonaro de (1) impedimento da eleição, (2) de impedimento da posse pela contestação dos resultados eleitorais e (3), depois das eleições, pela tentativa de deposição do governo eleito democraticamente pela via de um golpe de Estado disfarçado de estado de sítio, revelou que o golpismo e a consequente falta de compromisso com a democracia ainda pairam sobre parte dos oficiais militares.

Os resultados desse período recente da política nacional sobre as forças armadas são, principalmente, (1) a percepção por parte da elite política nacional do regresso do golpismo militar, (2) a percepção da sociedade sobre a ineficiência dos militares na gestão pública civil e (3) o regresso, derivado do golpismo, das práticas não democráticas na gestão pública, especialmente no GSI (Gabinete de Segurança Institucional), que afetou, por exemplo, órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (SiSBin).

Tais resultados têm como consequência imediata a perda de confiança do atual governo e de parte da sociedade nas forças armadas, para funções de defesa nacional. A dúvida principal que paira no ar se refere a qual compromisso as forças armadas estão mais fiéis. Seriam elas mais afeitas a governos que defendem seu protagonismo na política nacional e a garantia de seus interesses corporativos (salários e ganhos particulares) ou seriam defensoras da constitucionalidade, da integridade do Estado e da democracia, colocando o interesse nacional acima dos anseios políticos e dos interesses corporativos particulares? Parece que quanto mais envolvidas em política interna estiverem, mais descuidadas estarão com seus propósitos basilares na defesa do Estado. Também parece que quanto mais envolvidos na defesa dos seus interesses corporativos, menos afeitos às mudanças necessárias para a melhoria das condições orçamentárias, para investimento em melhores equipamentos e treinamentos para um futuro cada vez menos pacífico. Os dados do Latinobarómetro Corporation[3] parecem apontar para a mesma direção: quanto mais afastados da política nacional estiveram, maior era a confiança da população nas forças armadas, como ocorreu nos períodos dos governos Lula I e Lula II.

O regresso da confiança nas forças armadas, portanto, parece estar ligado ao seu regresso às funções prioritárias e distantes da política nacional. Desta forma, é urgente que os militares nacionais retornem para a caserna, pois o contexto internacional que se avizinha dependerá, cada vez mais, de prontidão e capacidade de mobilização das forças armadas para atuarem externamente, do que em atender a chamados de governos para atuarem internamente ou para rompantes golpistas. As forças armadas devem perceber que a sociedade, mesmo que ainda com resquícios de herança autoritária em sua maioria, não apoia o golpismo, como mostram os dados do Latinobarómetro de 2023[4].

O paradoxo no qual estamos envolvidos no Brasil põe em risco nosso Estado, enquanto o mundo, segundo Hal Brands (2024), está cada vez mais próximo do período entre as duas grandes guerras mundiais, do que em qualquer outro de nossa história contemporânea. Portanto, estamos diante da realidade mais ameaçadora desde 1962, tratando-se de uso de armas nucleares, em especial, armas nucleares táticas e com tensões crescentes nas fronteiras das grandes potências rivais dos Estados Unidos, ou seja, China e Rússia.

As nossas forças armadas, que são responsáveis pela Defesa Nacional, ao invés de retomar o intervencionismo militar, deveriam estar se preparando para o pior cenário internacional. Paradoxalmente, tivemos nossas forças armadas, pelas mãos de oficiais de alto escalão, envolvidas mais com a política nacional, na defesa de interesses de governantes e afastadas da defesa externa do Estado brasileiro. Este descuido com os problemas externos, em nome de dedicação a qualquer outro problema nacional, que supostamente resolveriam pela via golpista, pode, sim, ter golpeado nossa capacidade de dissuasão extrarregional e limitado o papel do Brasil a coadjuvante militar no século 21.

Para iniciarmos a resolver este paradoxo, parece que teremos que refundar as forças armadas em bases democráticas, que é essencial para a Defesa Nacional. Essa refundação tem passos obrigatórios a serem tomados tanto pelos militares como pelo governo. O compromisso deve ser amplo sob risco de vulnerabilidade externa crítica. Há seis passos a percorrer:

O primeiro, que parece estar, lentamente posto em curso, é o regresso à caserna – o chamado desembarque dos militares (ativa e reserva) do governo e da administração pública.

O segundo passo, seria refazer o compromisso com a democracia e a reafirmação do protagonismo dos civis na gestão pública de qualquer ordem, especificamente, na gestão do ministério da Defesa.

O terceiro seria a revisão da formação dos oficiais em bases democráticas, isto é, com o abandono da concepção de inimigo interno, que orienta treinamentos para as chamadas ‘outras operações militares além de guerra’ (MOOTW – Military Operation Other Than War) como prioritárias.

O quarto passo seria a reconstrução das doutrinas militares voltadas para a guerra externa, em especial a dissuasão extrarregional, em função das crescentes ameaças extrarregionais aos recursos estratégicos do Estado brasileiro.

O quinto seria a reconfiguração da Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa em função das mudanças doutrinárias acima, com a participação efetiva da sociedade civil e das universidades nesta construção republicana.

O sexto passo seria a democratização do Ministério da Defesa com a criação de carreiras civis para equilíbrio das relações entre civis e militares.

Os passos citados não são exaustivos e nem suficientes. Entretanto, são necessários para o enfrentamento da crise institucional que atravessa o setor da Defesa Nacional após os anos de bolsonarismo. Obviamente, elas não contemplam as questões sobre a remanescente cultura autoritária nacional e a importância da memória dos crimes da ditadura militar para que a sociedade de fato compreenda e para que nunca mais aconteçam.

O governo atual parece estar centrado nos primeiros passos acima elencados, especialmente aqueles relacionados ao desembarque dos militares, à recomposição do ministério da Defesa e dos orçamentos e investimentos militares. O capital político conquistado pelos militares no último governo não é desprezível e, por isso, é necessário ter paciência estratégica para avançar nos próximos passos na repactuação nacional com as forças armadas. Tal paciência, contudo, pode não acompanhar as demandas da sociedade, das universidades e dos partidos políticos. Os efeitos sobre as forças armadas são profundos sobre a República, são importantes e podem levar mais tempo que o desejado para ser corrigidos. Deve ficar claro, contudo, que sem esta readequação no rumo das relações civis-militares, a Defesa Nacional é que estará em risco.

Referências


AMORIM NETO, O. ; RODRIGUEZ, J. C. Forças armadas, Defesa e Inteligência: desafios do regime democrático brasileiro em um mundo em transformação. In: INÁCIO, M.; OLIVEIRA, V. E. de (Org). Democracia e eleições no Brasil: Para onde vamos? São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/ANPOCS, 2022. p.317-35.


BRANDS, Hal.  The Next global war. Foreign affairs, 26 jan 2024. Disponível em: <https://www.foreignaffairs.com/united-states/next-global-wa>.


[1].
<https://www.poder360.com.br/governo/imagem-das-forcas-armadas-piora-29-acham-trabalho-ruim-ou-pessimo/>.

[2].
<https://www.brasildefato.com.br. Governo-lula-3-navega-em-aguas-turbulentas-na-relacao-com-as-forcas-armadas /2024/01/08/>

[3]. <www.latinobarómetro.org>

[4]. <https://www.latinobarómetro.org/latOnline.jsp>


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

JÚLIO C. RODRIGUEZ é professor de Relações Internacionais no Departamento de Economia e Relações Internacionais e da pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria

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