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Interesse Nacional
18 outubro 2012

Impactos da Lei de Transparência no Controle das Compras Públicas

Do ponto de vista conceitual, o direito à informação é um dos princípios mais valorizados do moderno Estado democrático. Ele é tutelado internacionalmente pela Declaração dos Direitos Humanos, pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos e também por Convenções Regionais de Direitos Humanos. Em todos esses tratados, nos quais o Brasil figura como signatário, prega-se a adoção do princípio da transparência para assegurar ao cidadão administrado a possibilidade de acompanhar e conhecer a atuação estatal, através do acesso às informações sob a guarda do Estado. Trata-se de um princípio fundamental na medida em que, se posto em prática, viabiliza o controle social dos atos estatais e, em especial, de seus processos decisórios.

Na prática, porém, em grande parte do mundo, o direito à informação ainda se encontra em construção. Vale dizer, sua aplicação in concreto esbarra em dificuldades de vulto, a começar pela definição do que é acessível à sociedade e do que deva ficar sob a guarda sigilosa do poder público. É uma fronteira móvel a variar em função das circunstâncias políticas. Após os ataques do 11 de setembro, o governo norte-americano aumentou dramaticamente as informações que cidadãos e empresas têm que prestar aos órgãos públicos para prevenção do terrorismo e da lavagem de dinheiro e, de outro lado, passou a tratar com absoluto sigilo informações que se ajustavam aos direitos tutelados com o US Patriot Act. No Brasil, parte das informações relativas à Guerra do Paraguai e a outros momentos históricos polêmicos permanece inacessível, mas em relação ao cidadão presume-se que exista um dever de prestar informações a qualquer autoridade, ainda que a requisição não esteja devidamente embasada. A lista de exemplos de tratamentos díspares do acesso à informação é enorme.

Mas, se informação é poder, não basta assegurar ao cidadão o acesso a ela. Também é imprescindível que as próprias autoridades públicas possam consultar informações armazenadas por outros órgãos da administração. É comum se ouvir em Brasília que ninguém sabe o que se faz do outro lado da Esplanada dos Ministérios, o que não está longe da verdade. Pelo menos duas razões óbvias se entrelaçam para criar reservas de mercado em torno das informações governamentais: uma é a tendência das burocracias de guardar para si, hoje, o que lhes pode ser útil mais à frente; a outra poderosa razão é a manipulação da informação para fins político-eleitorais, quando não simplesmente para fins de corrupção.

Buscando fomentar o acesso à informação, a Constituição de 1988 dedicou vários dispositivos ao tema, dentre os quais se destacam os artigos 5°, inc. XXXIII , 37, § 3°, inc. II e 216, §2º3. Em essência, tais artigos estabelecem de maneira inequívoca e como uma garantia fundamental dos cidadãos o direito de acesso às informações que estejam sob a guarda do Estado, ressalvando apenas aquelas sigilosas imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado.

Essa iniciativa, no final da década de 1980, colocou o Brasil na vanguarda do assunto. Em 1990, somente 13 países haviam adotado leis nacionais relacionadas ao tema4. Contudo, essa posição moderna era apenas ilusória, pois na realidade o princípio da transparência não foi efetivamente implementado com tais dispositivos constitucionais.

Apesar de assegurarem de maneira inequívoca o direito de acesso à informação, em obediência ao princípio da transparência, o seu efetivo exercício dependia da promulgação de uma lei federal regulamentando o tema. Eram normas constitucionais de eficácia limitada, as quais não poderiam ser aplicadas plena e efetivamente sem regulamentação superveniente. Na ausência de tal regulamentação, o princípio, apesar de expresso na Constituição, vinha sendo solenemente ignorado na esfera governamental.

Com efeito, são inúmeros os exemplos de violação ao princípio da transparência (“publicidade” de acordo com o art. 37 da CF). Eles vão desde a dificuldade na obtenção de simples certidões até os processos administrativos que tramitavam sem que as partes tivessem efetivo acesso aos autos, o que, por mais que seja negado, era praxe até bem pouco tempo em algumas agências. Essa dificuldade em obter informações de órgãos públicos sempre foi notória e explica em parte a indústria das certidões, uma forma mais branda de corrupção.

“Cultura do segredo”

Além de não implementar os preceitos constitucionais, verifica-se que, ao contrário, foram produzidas normas no sentido de burocratizar ou mesmo expressamente vedar o acesso à informação. Na contramão das tendências modernas de tratamento igualitário dos indivíduos, a assimetria de informações entronizou privilégios. E, assim, os privilegiados trataram de assegurar as vantagens dela advindas mediante normas para manter o status quo. Paradoxalmente, apesar das disposições expressas na Constituição, antes de efetivar o direito à informação, o legislador nacional consagrou o direito ao sigilo, fomentando a “cultura do segredo”. Nessas circunstâncias, o administrador público atuava sem qualquer possibilidade de controle social. Inexoravelmente, a cultura do segredo alimentou a sensação de impunidade que, somada à disfuncionalidade do sistema político-eleitoral, exacerbaram a corrupção.

Buscando mitigar os efeitos prejudiciais da “cultura do segredo”, finalmente, passados 23 anos desde a Constituição de 1988, foi promulgada em 18 de novembro de 2011 a Lei 12.527, que regula o acesso às informações geridas e tuteladas pelos entes públicos.

A lei em questão representa enorme avanço ao adotar como regra o acesso pleno, imediato e gratuito às informações sob a tutela do Estado, sendo possível sua recusa somente nos casos excepcionais previstos em lei e mediante decisão devidamente fundamentada. Trata–se de uma quebra de paradigma. Neste artigo, buscar-se-á, inicialmente, fazer uma análise histórica do tratamento legislativo dado ao tema no exterior e no Brasil. Em seguida, serão destacadas as principais inovações e os efetivos méritos da legislação recentemente posta em vigor. Por fim, tentaremos avaliar se a nova legislação poderá melhorar a qualidade ética dos procedimentos aplicáveis às compras públicas.

O acesso à informação sob uma perspectiva histórica

Há mais de dois séculos, entrou em vigor na Suécia aquele que pode ser considerado o primeiro estatuto sobre acesso a informações públicas. Trata-se da Lei de Liberdade de Imprensa, datada de 1766, que, dentre outros aspectos, regulava especificamente a possibilidade de acesso a documentos oficiais, que teriam natureza pública. Naquela oportunidade, vislumbrava-se a importância do acesso como forma de redução das assimetrias de informação, o que foi visto pelos partidos políticos como algo positivo, especialmente quando não estavam no poder.

Outra norma pioneira sobre o tema foi a Lei de Liberdade de Informação dos Estados Unidos (Freedom of lnformation Act, ou FoiA), de 1967, o qual estabelece o acesso às informações de domínio do Estado por qualquer pessoa, exceção feita àquelas justificadamente classificadas como confidenciais. A FoiA estabelece, inclusive, a possibilidade de se levar o pleito de acesso aos tribunais judiciais.

Tais exemplos, no entanto, não fomentaram, de imediato, outras iniciativas de vulto. Apenas nas últimas décadas verificou-se um boom mundial de legislações de acesso à informação, sendo certo que, hoje, a maior parte dos Estados que advogam a ideia de um moderno Estado democrático já possui lei específica ou está discutindo a implementação de alguma norma para esse fim. Para traduzir em números esse crescimento do tratamento legislativo à matéria, veja-se que, entre os anos de 1990 e 2008, o número de países com normas sobre o tema cresceu de 13 para 705.

Portanto, reforça-se a percepção de que o acesso à informação de domínio público está sendo cada vez mais reconhecido como direito difuso fundamental dos cidadãos. Em um grande avanço rumo à consolidação das instituições democráticas, advoga-se cada vez mais o direito ao acesso amplo a informações públicas, tendo em vista os ganhos para a comunidade de maneira geral. Tal conscientização internacional é fruto, principalmente, do trabalho desenvolvido por organismos internacionais como a ONU e a UNESCO, que difundiram a percepção de que a transparência aumenta a eficiência do poder público, diminui a corrupção e eleva a accountability.

Como resultado dessa campanha internacional, legislações sobre o tema proliferaram. Atualmente, os diplomas de relevo não se restringem aos países com economias mais avançadas. Também nossos vizinhos da América Latina passaram por inovações legislativas antes de nós. As leis mexicana e peruana, que entraram em vigor em 2003, são bastante citadas como referências. E a legislação da África do Sul também merece especial menção, tendo em vista sua abrangência ampliada, alcançando até mesmo as empresas privadas que atuam mediante concessão ou se utilizam de verbas públicas.

Na esfera do direito internacional, uma série de pactos foi igualmente firmada para consignar a importância do acesso à informação como requisito essencial à consolidação de regimes democráticos. Esse conjunto de provisões inclui a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual registra em seu artigo 19 que “toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”, bem como outros diplomas de especial relevo, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos. Tal direito também é assegurado em dispositivos da Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos e na Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, que são ainda mais explícitos ao reforçar a caracterização do acesso à informação como um direito humano fundamental.

No Brasil, contudo, o desenrolar histórico foi bastante peculiar. Apesar dos dispositivos modernos inseridos na Constituição Federal de 1988, a carência de uma regulamentação específica apta a conferir efetividade à garantia constitucional fez com que o princípio da transparência não fosse efetivado. Ao contrário, ancorado na “cultura do segredo”, o legislador cuidou de regular primeiro o sigilo, deixando em um segundo plano a iniciativa legislativa necessária para assegurar o efetivo acesso à informação.

Primeiro legislou-se sobre o sigilo oficial de informações antes de serem institucionalizados procedimentos para garantir o amplo acesso às informações de domínio público por parte dos cidadãos comuns. Como exemplo marcante desse movimento, menciona-se o Decreto Presidencial 4.553, de 2002, que estabeleceu um critério de classificação das informações de acesso restrito e ficou conhecido como o “diploma do sigilo eterno”, por ter aberto a possibilidade de se manter o caráter sigiloso de informações classificadas como ultrassecretas por tempo indeterminado. Importante mencionar, ainda, as legislações e regulamentos das Agências Reguladoras e do Tribunal de Contas da União que, a par de lidarem com questões de interesse de toda a população, restringiam sobremaneira o acesso aos processos administrativos, tornando públicas apenas as decisões adotadas.

Antes da promulgação da Lei 12.527/2011, houve iniciativas no sentido de fomentar o acesso a informações sob a tutela do Estado, mas sempre de maneira tímida e de pequeno alcance. Não obstante, nos últimos anos foram criados o Sistema Integrado de Administração Financeira – Siafi e o Portal da Transparência. O Siafi permite que se fiscalizem todos os gastos públicos com indicação precisa do seu destino. O Portal da Transparência, como o nome sugere, destina-se a dar mais acesso ao cidadão para acompanhamento do processo decisório governamental. Mas, essas experiências ainda eram incipientes, com efetividade restrita e, muitas vezes, limitadas apenas à esfera interna do próprio governo, não conferindo amplo acesso à sociedade.

Cidadãos poderão exercer o controle social?

Por tudo isso, a adoção de um marco regulatório para a matéria no Brasil assume importância ainda maior. Com efeito, a nova Lei de Acesso à Informação (LAI) não representou apenas uma continuidade evolutiva, tal qual sugeriria o contexto internacional. Ao contrário, a nova lei representou uma verdadeira ruptura com o cenário anterior.

A efetivação desse direito fundamental deve ter como ponto de partida a publicização do Estado, em todas as suas esferas e níveis. Aqui, reside o ponto fulcral da nova legislação e o norte que deve guiar a administração pública e o Poder Judiciário.

Vale dizer, a promoção da ética e a ampliação da transparência da administração devem ser consideradas finalidades instrumentais da legislação. Se as novas regras forem efetivamente aplicadas haverá uma redução substancial da atual assimetria de informação que marca a relação entre administrador e administrado no Brasil. Conferindo-se vias adequadas e menos custosas para o acesso à informação, os cidadãos estarão em condições mais propícias para exercer o controle social.

Como dissemos antes, informação é poder e sua disseminação na sociedade é essencial para o exercício efetivo da cidadania de modo compatível com os princípios básicos do moderno Estado democrático.

A Lei 12.527/2011 e as principais inovações no ordenamento jurídico nacional

Ao regulamentar os dispositivos constitucionais relacionados ao tema, a Lei 12.527, sancionada em 18 de novembro de 2011, representa uma verdadeira ruptura com a até então preponderante cultura do segredo, um paradigma no sentido de implantar no Brasil a cultura do acesso à informação. A grande inovação da norma está em estabelecer, de maneira expressa, o livre acesso à informação pública como regra e o sigilo como verdadeira exceção.

A norma possui abrangência ampla. Trata-se de lei nacional, aplicável a toda a administração pública direta e indireta federal, estadual e municipal. A norma também incide no chamado terceiro setor, ou seja, as entidades que recebem recursos públicos, como as organizações sociais e as organizações civis de interesse público (art. 2°). Contudo, neste caso, sua aplicação restringe-se apenas aos recursos públicos por elas geridos.

Como forma de dar efetividade à publicidade e ao desenvolvimento do controle social da administração pública, a norma criou o que se convencionou chamar de “transparência ativa” e ‘’transparência passiva”. Ativa seria a divulgação de informações por iniciativa da própria administração em meios de fácil acesso ao cidadão (internet, jornais, etc.), enquanto a transparência passiva seria aquela relacionada aos pleitos apresentados pelos cidadãos.

No caput do artigo 8° está regulamentada a transparência ativa, quando se estabelece que “é dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”. Já no artigo 10 e seguintes está regulamentada a transparência passiva, ou seja, os procedimentos e mecanismos vinculados à solicitação de informações por parte dos cidadãos. É importante destacar que as requisições de acesso à informação não precisam ser justificadas e nem há a necessidade de demonstrar interesse (o § 3° do art. 10 é taxativo ao dizer que “são vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público”). Na verdade, segundo a sistemática da LAI, o Estado assume o ônus de apontar eventual confidencialidade de informações que estão sob sua guarda, sempre de maneira fundamentada.

A fundamentação da denegação deve ser do conhecimento do interessado, pois a ele é facultado recorrer dessa decisão, nos termos do artigo 15 da LAI. O recurso deverá ser dirigido à autoridade hierarquicamente superior. No caso de pedidos endereçados a autoridades federais, depois de interposto o recurso hierárquico, o interessado poderá ainda recorrer à Controladoria Geral da União – CGU e, em caso de nova negativa, à Comissão Mista de Reavaliação de Informações.

O princípio que orienta a lei é o da máxima divulgação, devendo sempre se ter em mente o âmbito limitado das exceções. Aliás, todas as possibilidades de restrição ao acesso estão previstas no artigo 23 e seguintes.

Explicitando quais informações são consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado, a LAI indica que são passíveis de classificação como informações sigilosas aquelas que possam: (i) pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; (ii) prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do país, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; (iii) pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; (iv) prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas; (v) prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional; (vi) pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou (vii) comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Destaque-se que a LAI rechaça qualquer possibilidade de informações serem consideradas sigilosas por prazo indeterminado, estipulando como prazo máximo de sigilo o período de 25 anos para a informação ultrassecreta, 15 anos para a secreta e cinco anos para a reservada.

O cuidado na classificação de informações também constitui uma importante ferramenta para não banalizar a classificação de informações como sigilosas, pois apenas as autoridades listadas no art. 27 da lei é que poderão estabelecer a classificação das normas como ultrassecreta, secreta ou reservada. Por exemplo, a classificação de ultrassecreta apenas poderá ser feita pelo presidente ou o vice-presidente da República, os ministros de Estado e autoridades com mesmas prerrogativas, os comandantes das Forças Armadas e os chefes de Missões Diplomáticas e Consulares. Até mesmo para classificar informações como reservada há a necessidade de alguma graduação (funções de direção, comando ou chefia, nível DAS 101.5 ou Superior, etc.).

Importante destacar também que a classificação da informação em algum dos graus de sigilo previstos na lei terá de ser feita por decisão fundamentada, com a indicação do prazo de sigilo, o seu termo final e a indicação da autoridade que o classificou. Nestes termos, verifica-se que, efetivamente, a nova regra tratou a confidencialidade como absoluta exceção.

Em um breve resumo, essas são as principais inovações trazidas pela LAI. Obviamente, trata-se de uma grande evolução legislativa, capaz de trazer inúmeros benefícios. Contudo, é preciso reconhecer que sua aplicação também representará um verdadeiro desafio para o Poder Público e para a sociedade como um todo.

Os benefícios e desafios da nova Lei

A Lei de Acesso à Informação brasileira consagra o que há de mais moderno em termos de transparência e controle social da administração pública. É um marco histórico da efetivação do direito fundamental ao acesso à informação. Espera-se que a sua aplicação resulte em verdadeiro rearranjo político-institucional na forma de governar o país.
Não raro, o particular encontra tamanho obstáculo para obter informações de órgãos públicos que acaba por não ter os incentivos necessários para insistir no acesso. As barreiras colocadas pela máquina estatal obscurecem não apenas seu passado, mas também seu presente e futuro. Por óbvio, a abertura de documentos e de informações em poder do Estado, que tratam períodos marcadamente autoritários, é de especial relevância para a conformação de uma memória nacional. Esse é um primeiro benefício que promete resultar da nova lei. A conferir.

Igualmente relevante é a abertura das atividades estatais correntes, o que representará uma revolução no processo de tomada de decisão no âmbito administrativo. Isso porque, atualmente, observa-se o funcionamento de uma burocracia complexa e fechada. A abertura, neste sentido, representa não apenas um novo padrão de relacionamento do Estado com a sociedade, como também a adoção de políticas públicas voltadas para a desburocratização de múltiplos procedimentos de modo a reduzir trâmites e papelório desnecessários ou redundantes. Para tanto, será imprescindível uma corajosa reforma legislativa que remova pontualmente os principais entraves. Um deles é a existência de “controles cruzados” de natureza fiscal e tributária. A participação em licitações públicas, por exemplo, demanda certidões negativas variadas, o que também fomenta as fraudes e demoras incalculáveis.

Ocorre que, para abrir a “caixa-preta” do Estado, apenas a lei não é suficiente. Em seguimento à nova legislação, devem ser adotadas políticas de sensibilização dos administradores públicos para que estes se tornem instrumentos das mudanças que se fazem necessárias. Isto significa treinamento específico, como ocorreu na Comissão de Ética Pública da Presidência da República que, em parceria com a Escola Nacional de Administração Pública (Enap), instituiu cursos de formação de gestores da ética.

Especialmente no âmbito dos processos administrativos, deve-se alinhar a atuação do administrador com os princípios que orientam a legislação, de forma que não se utilize dos dispositivos que versam sobre acesso restrito para tornar toda e qualquer informação confidencial. Da mesma maneira que é imprópria e vedada pela legislação a imposição de um pedido de informação justificado, que demonstre algum interesse do particular na sua obtenção, o princípio da máxima abertura impõe ao administrador que qualifique restrições ao acesso apenas em situações extremamente excepcionais, limitando-se àqueles casos em que a segurança de particulares ou do próprio Estado está em jogo.

A transparência na aplicação da lei também é fundamental, sendo certo que o controle social é a forma mais poderosa, eficaz e democrática de fiscalização do Estado, incluindo–se aqui até mesmo os órgãos que exercem o controle público. Entidades sindicais e associações patronais e de trabalhadores também devem ser mobilizadas para ajudar no esforço de viabilização da LAI.

Ao descentralizar sua aplicação por todos os órgãos da Administração Pública, a lei impõe uma completa reestruturação governamental. Do ponto de vista institucional, isto significa a implantação de microestruturas internas destinadas a garantir a efetividade da LAI. Isto é, em cada órgão da administração deverá haver agentes encarregados de atender aos ditames legais de forma objetiva, clara e transparente.

O governo federal parece ter incorporado o espírito da legislação a partir do Decreto no 7.724, de 16 de maio de 2012, que regulamenta a LAI no âmbito do Poder Executivo federal. Seus termos parecem endereçar muitas das preocupações ora destacadas, valendo citar a obrigação estabelecida no artigo 7°, que fixa o “dever dos órgãos e entidades de promover, independentemente de requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”, bem como a obrigação de criação de um Serviço de Informações ao Cidadão (SIC), dentro de cada um dos órgãos e entidades (art. 9°), que serviria para atendimento e orientação ao público. É uma primeira e salutar resposta ao desafio institucional ora colocado, mas cujos resultados ainda precisam ser avaliados. Merece especial atenção sua aplicação nos processos decisórios das Agências Reguladoras e tribunais administrativos, tendo em vista o histórico de falta de transparência em sua atuação.

Ainda mais preocupante é a aplicação da LAI nas demais esferas da Federação. Como bem aponta Fernando Abrucio, é justamente nos âmbitos estadual e municipal que a dificuldade de aplicação da lei deve ser maior7. Não obstante, acreditamos que nos municípios mais desenvolvidos se possam mobilizar escolas e entidades de fins sociais para auxiliar na sensibilização da população e dos administradores municipais.

Dever de prestar contas

Outra preocupação – não menos importante e de solução mais dificultosa – diz respeito a uma questão eminentemente cultural. O agente público deve abandonar uma postura conflituosa, que muitas vezes marca seu relacionamento com a sociedade, em favor de uma concepção mais transparente e cooperativa. Lembra Roberto DaMatta que “a concepção que o servidor público tem do papel do Estado interfere na sua capacidade deoperacionalizar uma política de acesso”8.Neste sentido, o dever de prestar contas e de prover o particular de todas as informações públicas solicitadas não deve ser visto como um estorvo, mas, antes, como uma forma de aperfeiçoamento do Estado republicano.

Conclusão: transparência nas compras públicas

Diante da corrupção praticamente generalizada em certas atividades-fim da administração, duas indagações são inevitáveis: a) será que a implantação da LAI e a adoção de políticas de transparência se coadunam com o sigilo exigido pela Lei de Licitações e Compras Públicas? b) haveria clima político e de opinião pública para se implantar transparência nos processos de compras públicas?

À primeira vista, os maiores focos de corrupção estariam nas grandes obras públicas. Trata-se, porém, de um equívoco, pois há outras áreas extremamente críticas, como, por exemplo, a de concessões em geral e de compra de medicamentos. Supõe-se que o regime de licitações é suficiente para assegurar a lisura integral do processo, bastando, para tanto, que sejam rigorosamente observados todos os trâmites previstos na legislação.

Há, no entanto, uma etapa prévia, que se passa praticamente sem qualquer transparência. Referimo-nos à fase em que o órgão público decide pela necessidade de construir uma determinada obra pública ou de adquirir determinado produto. Essas decisões são de natureza interna corporis, mas muito pouco se sabe como o órgão chegou à conclusão a respeito da necessidade efetiva da obra, qual a razão de se priorizar determinada obra ou aquisição, os motivos da indicação de determinadas características e especificações de determinado objeto, ou seja, quase nada se sabe sobre as causas que levam a administração a intentar determinada compra de produto ou serviço.

Tais atos e informações antes estavam disponibilizados praticamente apenas à própria administração, pois se dificultava o acesso de tais informações por parte dos cidadãos. Agora, contudo, podemos afirmar que, sem dúvida, toda essa etapa prévia estará submetida às regras de transparência instituídas pela LAI e, portanto, poderão ser acessadas livremente por qualquer cidadão. O benefício, neste caso, é viabilizar um controle social mais efetivo sobre o processo decisório prévio às compras públicas.

Mais uma vez, a grande dificuldade será abrir a “caixa-preta” do processo decisório em si mesmo. Os exemplos estão aí, bem visíveis na multiplicação de “arenas multiuso”, em lugares extravagantes e na certeza de que elas ficarão ociosas depois da Copa do Mundo; ou se os campos de petróleo do pré-sal são tão grandes e valiosos quanto se dizia na hora de valorizar a posição comercial estratégica da Petrobras; ou se as vacinas compradas agora a preço de ouro não chegarão atrasadas para o próximo surto de dengue. O que a LAI poderá fazer é exatamente abrir a porta das salas de situação em que tais decisões são tomadas.

Um levantamento das decisões dos últimos anos do Tribunal de Contas da União, que se modernizou e, atualmente, exerce uma função de singular relevância ao Estado brasileiro, mostraria de modo arrasador a quantidade de irregularidades praticadas na etapa preliminar da contratação das obras públicas, inclusive nas importantes obras do PAC. Essas irregularidades, intrinsicamente relacionadas à falta de planejamento e transparência na etapa preliminar das compras públicas, podem ser apontadas como uma das principais razões para o atraso nas obras públicas, já que as impropriedades detectadas em projetos e opções técnicas têm que ser corrigidas no curso da execução dos contratos, importando na necessidade de celebrar aditivos, contratações de preços novos, por exemplo. Com isso, os cronogramas inicialmente idealizados têm de ser abandonados e a execução das obras acaba superando em muito os prazos originais.

O que se tem visto, portanto, é que a pressa em licitar e inaugurar essas obras faz com que o Estado perca muito pouco tempo planejando e estudando efetivamente o que será licitado. Com isso, o planejamento tem de ser feito efetivamente no curso da execução do contrato, o que multiplica exponencialmente o tempo consumido na sua execução. A fiscalização dessa etapa prévia, se não representa uma solução definitiva, poderá ao menos mitigar significativamente os efeitos perniciosos que escolhas mal feitas resultam para toda a população.

Resta, então, saber se haveria clima político e de opinião pública para levar a transparência aos confins mais remotos e escuros do processo decisório governamental, especialmente aos processos decisórios prévios à realização de qualquer compra pública.
Em nossa opinião, acreditamos que sim e que o exemplo deve ser dado pelo próprio governo federal, mais precisamente pelo Executivo. Reconhecemos, porém, que tal missão demandará esforço, muita paciência e sabedoria política. Está neste exato momento acontecendo o inimaginável: a condenação pelo Supremo Tribunal Federal dos artífices e beneficiários de um dos maiores casos de corrupção política. Tudo indica que, doravante, o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União serão importantes aliados na luta que continuará.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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