26 junho 2024

Itaipu e a contribuição da diplomacia

O diplomata Eduardo Santos rememora — no embalo dos 50 anos do tratado que deu vida à usina hidrelétrica binacional de Itaipu — os fatos históricos sobre a contribuição da diplomacia na construção dessa portentosa obra, a única do sistema elétrico brasileiro que não foi concebida pela Eletrobrás nem pelo Ministério das Minas e Energia, mas pela atuação do Itamaraty. Envolveu a elaboração de tratado arquitetado com a finalidade de regulamentar a construção e o funcionamento da mais importante obra de integração física e energética da América do Sul.


A Itaipu Binacional, constituída em maio de 1974 pelos governos do Brasil e do Paraguai, comemora em 2024 o seu cinquentenário. O estatuto da entidade é um dos anexos do Tratado de Itaipu, que, em 2023, também completou 50 anos. Assinado no dia 26 de abril de 1973 pelos chanceleres Mario Gibson Barboza e Raúl Sapena Pastor, o tratado foi rapidamente aprovado pelos Congressos dos dois países, ratificado e colocado em vigor.

Hoje, depois de muitas realizações de Itaipu ao longo de seu meio século de vida, passam a integrar a lista de prioridades do relacionamento brasileiro-paraguaio as negociações sobre a revisão do Anexo C do tratado, que estipula as bases financeiras e de prestação de serviços da entidade binacional. O próprio texto do Anexo C prevê que o documento pode ser revisto após 50 anos de vigência. Os governos estarão, doravante, engajados nessa negociação, com a participação da Itaipu Binacional em caráter consultivo. Antes de iniciá-la, no entanto, resolveram dedicar-se à questão da definição do valor da tarifa de energia, que é feita anualmente. Apesar de divergências entre os dois lados quanto ao nível da tarifa — se mais alto ou mais baixo —, esperava-se que, em algum momento, fosse encontrada uma solução.

Escapa, porém, ao propósito deste artigo tratar de questões da atualidade em Itaipu ainda sujeitas à consideração das partes. O objetivo aqui é aproveitar o embalo dos 50 anos para propor um olhar dirigido ao passado e recordar alguns fatos históricos que ressaltam, como tem sido reconhecida e valorizada, a contribuição da diplomacia enquanto fundamento básico de Itaipu.

De conteúdo criativo e, em muitos aspectos, inovador, o Tratado de Itaipu foi arquitetado com a finalidade de regulamentar a construção e o funcionamento daquela que viria a ser a mais importante obra de integração física e energética da América do Sul. O documento criou uma entidade com personalidade jurídica própria e estabeleceu regras originais para o cumprimento de requisitos específicos relativos às características e ao modo de operação da usina, tal como decidido de comum acordo pelos dois países. Dessa forma, ela se tornou a maior central hidrelétrica do mundo em geração, apenas superada pelo empreendimento chinês de Três Gargantas segundo o critério de capacidade instalada.

Como costumam salientar autoridades e especialistas do setor, a Usina Hidrelétrica de Itaipu é a única obra do sistema elétrico brasileiro que não foi concebida pela Eletrobrás nem pelo Ministério das Minas e Energia — foi concebida pelo Itamaraty. Essa história é conhecida e está bem contada no livro “Na diplomacia, o traço todo da vida”, do embaixador Gibson Barboza. Trata-se de uma crise transformada em oportunidade ou de uma situação de conflito cuja solução foi alcançada de forma inteligente e engenhosa. Referências ao episódio também podem ser encontradas na obra “Apuntes para la historia política de Itaipu”, de autoria do engenheiro Enzo Debernardi, que participou da negociação do tratado. Depois, ele viria a ser o primeiro diretor, pelo lado paraguaio, da entidade binacional criada pelo referido instrumento.

Argumentação de Guimarães Rosa

Em meados da década de 1960 do século passado, o Paraguai pleiteou uma controvérsia na fronteira com o Brasil, na região de Sete Quedas. A reação do governo brasileiro, ao refutar aquela iniciativa, provocou em Assunção um clima exaltado de críticas e hostilidades dirigidas ao nosso país. O Brasil contestou as alegações paraguaias de maneira amplamente fundamentada, demonstrando que os limites entre os dois países já estavam claramente definidos nos tratados celebrados anteriormente. O escritor e diplomata Guimarães Rosa, que na ocasião chefiava a divisão de fronteiras do Itamaraty, levantou minuciosamente os argumentos históricos e jurídicos que constam da nota brasileira pela qual foi dada resposta à reivindicação do Paraguai.

Uma hipótese que se considera como explicação das pretensões do país vizinho tinha a ver com os estudos que se realizavam no Brasil com vistas ao aproveitamento do potencial dos recursos hídricos da região Centro-Sul. Um projeto elaborado pelo engenheiro Marcondes Ferraz, então presidente da Eletrobrás, previa a construção de uma hidrelétrica em trecho exclusivamente brasileiro do rio Paraná. A reivindicação do Paraguai talvez traduzisse receio do impacto negativo que teria um empreendimento tão próximo de suas fronteiras do qual não retiraria benefícios.

Ao assumir o posto de embaixador em Assunção, Gibson Barboza foi recebido com cobranças da imprensa, protestos de rua e até queima de uma bandeira brasileira. Não se intimidou nem tampouco se sentiu desencorajado ante o que parecia ser uma situação insolúvel. De suas reflexões pessoais e sondagens de caráter informal que conduziu, no mais alto nível, junto às autoridades paraguaias, surgiu a ideia de um projeto binacional no trecho compartilhado daquele rio internacional, cujo reservatório serviria para cobrir a área supostamente litigiosa, fazendo desaparecer o conflito ou, na prática, retirar-lhe o sentido. Outra importante vantagem estava no nível da produção de energia, que seria maior que o da obra planejada por Marcondes Ferraz.

Na verdade, o que ficaria submerso seria o território na região de Sete Quedas que o Paraguai, sem razão, alegou pertencer-lhe. O lago de Itaipu não encobriria propriamente o litígio, como se ele ficasse oculto ou disfarçado mediante um artifício jurídico. Para o Brasil, não havia dúvida sobre a delimitação fronteiriça. Tanto é assim que o tratado consignou, em seu artigo 7, que as instalações de Itaipu destinadas à produção de energia elétrica e obras auxiliares “não produzirão variação alguma nos limites entre os dois países estabelecidos nos tratados vigentes”.

Intuição do embaixador na origem dos entendimentos

A intuição do embaixador e a recomendação que fez a seus interlocutores no Paraguai e no Brasil constituíram a origem dos entendimentos que resultaram no encontro das Cataratas do Iguaçu, realizado em junho de 1966, entre os chanceleres Juracy Magalhães e Sapena Pastor, ambos acompanhados de numerosas comitivas. A ata da reunião registrou, pela primeira vez, a possibilidade do aproveitamento do potencial hidráulico disponível do rio Paraná, pertencente em condomínio aos dois países, desde e inclusive o Salto Grande de Sete Quedas ou Salto do Guaíra até a foz do rio Iguaçu. Naquela oportunidade, as partes concordaram que a energia produzida seria dividida em partes iguais entre os dois países, sendo reconhecido a cada um deles o direito de preferência para a aquisição desta mesma energia a justo preço, a ser fixado por especialistas. A partir daí, à medida que a ideia foi amadurecendo politicamente, bem como tecnicamente, diplomacia e engenharia andaram juntas.

A história de Itaipu registra alguns marcos fundamentais ao longo das suas cinco décadas de existência. Em outubro de 1972 foi concluído o relatório do consórcio internacional encarregado de preparar o estudo de viabilidade do empreendimento. Esse documento foi apresentado aos dois governos, em janeiro de 1973, pela comissão técnica brasileiro-paraguaia instituída na Ata das Cataratas. Três meses depois, o tratado foi assinado.

A 20 de outubro de 1978 realizou-se a abertura do canal de desvio do rio Paraná de modo a permitir a construção da barragem. No dia 13 de outubro de 1982 teve início o enchimento do reservatório da usina, completado em duas semanas. Posteriormente, realizaram-se as sucessivas inaugurações das turbinas e dos geradores que viriam a integrar a central hidrelétrica binacional. Além da engenharia diplomática que viabilizou a construção da obra, foi necessária a montagem de uma complexa engenharia financeira que gerou a dívida de Itaipu, cuja liquidação se deu no ano de 2023, por ocasião do cinquentenário do Tratado de Itaipu.

n Acordo tripartite sobre a compatibilização

Outro marco fundamental foi o acordo tripartite sobre a compatibilização entre Itaipu e o projeto argentino-paraguaio de Corpus, assinado a 19 de outubro de 1979. Esse acordo encerrou um longo período de divergências com a Argentina, que vinha se opondo frontalmente à realização do aproveitamento brasileiro-paraguaio com base na tese da consulta prévia, nunca admitida pelo governo brasileiro. O empenho com que Buenos Aires promoveu um prolongado e desgastante debate de natureza jurídica no âmbito regional, bem como no foro das Nações Unidas, poderia ter feito pairar uma sombra de incertezas sobre a construção de Itaipu, não fosse a firme determinação do governo brasileiro de dar máxima prioridade à execução da obra.

Sobre a questão de fundo suscitada pela Argentina, o Brasil fez prevalecer a sua posição, com base nos termos da Declaração de Assunção sobre Aproveitamento de Rios Internacionais, aprovada pelos chanceleres da bacia do Prata em 1971. Aquele documento consagrou a clara distinção existente entre os critérios que regem os casos de aproveitamento de rios internacionais contíguos, em que a soberania é compartilhada pelos ribeirinhos; e os de curso sucessivo, em que, ao contrário, os estados podem utilizar os recursos hídricos conforme suas necessidades, desde que não causem prejuízo sensível a terceiros.

Curiosamente, partiu da própria Argentina, então representada pelo chanceler Luis Maria de Pablo Pardo, a proposta que deu origem àquela declaração, imediatamente aceita pelo embaixador Gibson Barboza, já em sua função de chanceler. Os argentinos certamente tiveram o propósito de realçar, no texto de sua proposta, a hipótese de que Itaipu acarretaria prejuízos a jusante, mas os termos em que foi redigida prestaram-se a traduzir fielmente o princípio da responsabilidade jurídica dos Estados, que corresponde à posição brasileira na matéria. Dada a importância de que se revestia a tomada de uma decisão sobre o assunto da parte da reunião de chanceleres, Gibson Barboza propôs que o projeto de resolução submetido pela Argentina fosse aprovado por aclamação, como o foi, e que tivesse, como de fato passou a ter, o statusde uma declaração, norma de valorhierárquico superior.

 Com a definição alcançada em torno dos dois temas que ficaram pendentes nas negociações tripartites mantidas ao longo de 1977 e 1978, quais sejam, o número de turbinas de Itaipu e a cota do empreendimento de Corpus, o acordo de 1979 representou uma solução prática e objetiva que teve o mérito de contornar o impasse de natureza conceitual e jurídica que ameaçava, em última instância, atribuir à Argentina, o vizinho a jusante, um virtual poder de veto à consecução da obra compartilhada pelos ribeirinhos a montante.

De qualquer forma, a preocupação do Brasil de salvaguardar seu interesse na urgência e na continuidade da construção de Itaipu, de modo a assegurar seu abastecimento energético, já estava juridicamente atendida, e isso foi obra da diplomacia. O Tratado da Bacia do Prata, negociado após o encontro bilateral das Cataratas e assinado em 1969, estipulou, em seus artigos 5 e 6, as garantias de ação autônoma e soberana das partes signatárias ao executarem seus projetos e obras na região. Por sua vez, a Declaração de Assunção de 1971 corroborou a base doutrinária apta a dirimir qualquer dúvida ou contencioso que viesse a ser levantado. Tanto o Tratado da Bacia do Prata quanto a Declaração de Assunção são expressamente citados no preâmbulo do Tratado de Itaipu, o que mostra como a execução do projeto binacional no rio Paraná foi levada a cabo em sintonia com o processo jurídico e institucional que se conduziu paralelamente no foro da bacia do Prata.

Na condução dessas complexas e entrelaçadas agendas — a de Itaipu e a da bacia do Prata — foi especialmente relevante a atuação, à época, do chanceler Antonio Azeredo da Silveira e, especialmente, de dois embaixadores que se sucederam na chefia do departamento das Américas do Itamaraty: Espedito de Freitas Resende e João Hermes Pereira de Araújo.

A gravitação do tema Itaipu na relação bilateral com o Paraguai e a sensibilidade que adquiriu em nossos vínculos com a Argentina evidenciaram claramente o papel da diplomacia. Itaipu não só ajudou a resolver um conflito potencial entre dois países que se tornaram sócios de um inédito e magnífico empreendimento, como também permitiu construir entre eles uma forte teia de interesses, apesar da visão crítica sobre Itaipu da parte de certos setores do governo e da sociedade do Paraguai, como ocorreu durante a presidência de Fernando Lugo.  Ao mesmo tempo, o acordo tripartite de 1979, que resultou de um diálogo pragmático entre os parceiros interessados, abriu caminho para a reaproximação e a relação de maior confiança com a Argentina, processo fortalecido no período democrático. Em consequência, Itaipu assumiu historicamente a condição de precursor do Mercosul. Nada mais simbólico dessa tendência do que o gesto espontâneo do presidente da Argentina Raúl Alfonsín, em 1985, ao visitar pessoalmente a usina de Itaipu, já em plena operação, por ocasião de seu encontro com o presidente José Sarney, quando ambos inauguraram a ponte internacional sobre o rio Iguaçu. Daquele momento até o início do projeto de cooperação e integração econômica, que passaria a contar com a participação do Paraguai e do Uruguai, dando origem ao Mercosul, o caminho

é diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty, embaixador no Paraguai e em outros postos, além de assessor na Presidência da República

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