Lei Anticorrupção gera Incertezas, mas Consolida a Necessidade do Compliance
1. Introdução
Uma breve cronologia da honestidade nos lembrará que, já no Corpus Juris Civilis de Justiniano, os preceitos do Direito eram assim sintetizados: viver honestamente, não lesar outrem e dar a cada um o que é seu. Essa síntese das exigências da convivência humana, antes traduzida de forma semelhante em diversas doutrinas religiosas, seguramente, até hoje, anima o comportamento da maioria das pessoas.
O problema é que a luta pelo poder – e por sua manutenção – ao longo dos tempos é uma guerra sem quartel e sem regras, muitas vezes se confundindo com a história do crime.
A ocupação do território brasileiro, por exemplo, se fez às custas de entrega de parcela ilimitada de poder aos donatários, aos governa- dores. A um oceano de distância da metrópole, criou-se um clima propício à corrupção, em que o poder e a pessoa se confundiam e eram vistos como uma coisa só1
Sendo a honestidade um valor, sua aferição remete ao patamar de civilização de cada mo- mento histórico. Assim, no Brasil, a honestidade já conviveu com escravidão, nepotismo, corrup- ção etc.
Em alguns países da Europa, até anos atrás, corromper não era crime. Desonesto, para a lei penal, era ser corrompido.
Assim, o que se vê, é que a honestidade con- vive com a valorização política da corrupção, criando uma cultura, se não de incentivo, pelo menos de tolerância a atitudes ilícitas.
De repente, alguns acontecimentos colocam em cheque essa contradição. Nesses momentos, a sociedade tende a reagir, exigindo normas mais duras contra o crime, seja ele de corrupção ou outro.
Segundo Sergio Ferraz, em recente conferên- cia no Instituto dos Advogados de São Paulo, procuramos solucionar o problema da corrupção com normatividade, mas o que nos falta é uma ambiência cultural do valor honestidade.
2. A legislação americana e sua influência
Durante a década de 1970, verificaram-se inúmeras investigações promovidas por parte da U.S. Securities and Exchange Commis- sion (SEC) – o equivalente, nos Estados Unidos, à Comissão de Valores Mobiliários brasileira (CVM) – sobre pagamentos questionáveis realizados por diversas empresas americanas a fun- cionários públicos, políticos ou partidos políticos de nações estrangeiras.
Os pagamentos realizados eram sempre utili- zados para assegurar algum tipo de “ação positi- va” por parte dos governos estrangeiros ou con- cessão de facilidades. Entre os escândalos mais famosos da época encontram-se os casos de su- bornos a governos estrangeiros por funcionários da empresa Lockheed para que aqueles dessem preferência de compra às aeronaves produzidas pela companhia.
Após os escândalos da Enron e Worldcom e, consequentemente, a promulgação da Lei Sarba- nes-Oxley (SOX), verificou-se um aumento das investigações por parte da SEC, bem como o crescimento da preocupação de empresas ameri- canas em prevenir a corrupção por meio de ferra- mentas de compliance.
No Brasil, o conceito de compliance aparece no cenário nacional com a abertura comercial crescente, por volta da década de 1990, quando o país passou a ocupar posição internacional de destaque e, desta forma, começou a sofrer fre- quentes pressões para desenvolver uma política que satisfaça o padrão de transparência exigida e adotada pela SEC2.
As primeiras referências expressas do com- pliance no Brasil vêm com a Lei 9.613/1998, a Lei de lavagem de dinheiro, principalmente com sua alteração pela Lei 12.683/2012. Além de ins- tituir o crime de lavagem de dinheiro no país, essa lei também criou o Conselho de Controle de
Atividades Financeiras (Coaf3), responsável por coordenar e propor mecanismos de cooperação, troca de informações e controle interno entre os sujeitos aos mecanismos de controle ao combate de crime de branqueamento de capitais.
Ademais, em 2012, ficou expressamente pre- vista como obrigação, por parte das pessoas físi- cas e jurídicas sujeitas ao cumprimento das obri- gações relacionadas ao combate à lavagem de dinheiro, a adoção de “políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e com o volume de operações’.
Essas normas, no entanto, não bastavam diante dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil como signatário da Convenção sobre o Com- bate da Corrupção de Funcionários Estrangeiros em Transações Comerciais da Organização para a Coo- peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Desta forma, em 1º de agosto de 2013, foi sancionada a Lei nº 12.846, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pes- soas jurídicas, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, in- cluindo fundações, associações de entidades ou pessoas, bem como sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira.
3. Condutas
A Lei nº 12.846, conhecida como Lei Anticorrup- ção, não criou condutas novas, nunca antes tipi- ficadas pelo Código Penal ou por legislação especial. Em outras palavras, não incluiu em seu rol de atos lesivos à Administração Pública conduta que ante- riormente fosse considerada lícita e praticada por todos. Fraudar licitação, oferecer ou dar vantagem indevida a agente público, utilizar-se de interposta pessoa (“laranja”) para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade do beneficiário, já eram condutas consideradas ilícitas pelo Código Penal, pela Lei de Improbidade e pela Lei de Licitações4. A novidade trazida por esse ordenamento é, de fato, a mudança de perspectiva dada pelo le- gislador no combate aos crimes contra a Admi- nistração Pública, substituindo o direito penal e a persecução do agente pessoa física, pelo direito administrativo sancionador, que visa à pessoa ju- rídica, ainda que continue a se valer de conceitos e instrumentos oriundos do direito criminal. Como dizem Pierpaolo Bottini e Igor Tama- sauskas, em seu artigo “Nova Lei Anticorrupção vai estimular compliance”5, onde houver um cor- rompido, há sempre um corruptor interessado na prática espúria, e a nova lei tem como objetivo punir esse corruptor. Em realidade, o que se quer atingir, agora, é a empresa favorável a quem atuou como corruptor.
Cabe ressaltar que, com a vigência da nova le- gislação, o Poder Público passa a assumir sua in- capacidade para prevenir ou investigar delitos econômicos mais complexos, delegando essa res- ponsabilidade às instituições privadas6. A nova lei, portanto, imputou a pessoas jurídicas responsabi- lidades pelo combate à corrupção, por meio do investimento em programas e ferramentas de compliance, entre eles o treinamento de emprega- dos e diretores em práticas de respeito à lei.
Passemos aos “tipos”, assim considerados como descrição dos atos lesivos à Administração Pública, previstos na Lei nº 12.846.
Segundo o art. 5º, inciso I, constitui ato lesivo à Administração Pública “prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agen- te público ou a terceira pessoa a ele relacionada”. O problema nessa conduta refere-se ao conceito de “vantagem indevida”. O que poderá ser considera- do uma vantagem indevida? Uma carona em um avião particular para um funcionário público pode ser assim considerado? Sob o ponto de vista do Di- reito Penal, dependeria das circunstâncias para que tal conduta configurasse crime, uma vez que a van- tagem indevida deve ser “patrimonial, como di- nheiro ou qualquer utilidade material, ou qualquer espécie de benefício ou de satisfação de desejo”7, e a promessa oferecida tem que estar atrelada ao fun- cionário público encarregado de praticar, em troca, algum ato de ofício para que fosse configurado o crime de corrupção ativa (art. 333, do Código Pe- nal). Mas, agora, sob a luz da Lei 12.846, que vei- cula normas civis de um direito administrativo san- cionador, estaria a empresa cometendo essa infra- ção por somente oferecer “vantagem”, mesmo na ausência de um acordo específico com servidor público para prática de determinado ato de ofício?
O intérprete ou o aplicador da lei deverá se valer dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, buscando exigir a presença de cada elemento do tipo, conforme o procedimento que se espera de um juiz penal, atento ao princí- pio constitucional de que a dúvida conduz à ab- solvição, e que é a conduta ilegal que deve ser provada e não a inocência, que é presumida. Sem isso não se evitarão decisões arbitrárias.
Outra conduta passível de sanção, descrita no art. 5º, inciso II, refere-se ao ato de “comprova- damente financiar, custear, patrocinar ou de qual- quer modo subvencionar a prática dos atos ilíci- tos previstos”, ou seja, dos atos contra a Admi- nistração Pública. Essa conduta é relevante uma vez que o ente privado ou está diretamente en- volvido no esquema “criminoso” ou dele se be- neficia, já incidindo em ambas as hipóteses a Lei de Improbidade Administrativa. Neste caso, qual lei será aplicada? O bis in idem será um grave problema na aplicação do texto legal.
Já o inciso III do mesmo art. 5º da Lei Anticor- rupção dispõe que quem “comprovadamente, uti- lizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados” cometerá ato ilícito contra a Administração Públi- ca. Chama a atenção a utilização pela lei de previ- são de comportamentos vagos, de múltiplo enten- dimento, permitindo grande poder discricionário às autoridades competentes para a investigação em relação à incidência ou não da norma.
No tocante a licitações e contratos, o art. 5º, inciso IV, considera ilícito frustrar, fraudar, im- pedir ou manipular a realização de qualquer pro- cedimento licitatório público8. Em que situações poderemos afirmar a incidência da lei? Se em um determinado período de tempo uma empresa im- pugnar um número relevante de editais haverá a incidência do referido dispositivo? Seguramente essa não poderá ser a linha de interpretação a ser utilizada. Há a necessidade do “elemento voliti- vo do dolo”, ou seja, será necessário comprovar a concreta intenção do agente (pessoa jurídica) em fraudar, manipular ou impedir determinado liame licitatório.
Por último, em seu art. 5º, inciso V, a Lei 12.846 prevê a conduta de quem “dificultar ativi- dade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências regu- ladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”. Chama atenção, de novo, a preferência do legislador por “tipos abertos”, descrevendo condutas que permitirão excesso de subjetividade no seu entendimento, com o agra- vante de que as sanções são extremamente pesa- das e graves. A Constituição Federal garante a todos, em seu art. 5º, inciso LXIII, o princípio da não autoincriminação, ou seja, a garantia de não produzir provas contra si mesmo. Desta forma, esse inciso terá que ser interpretado de forma restritiva, respeitando os limites estabelecidos pela Carta Magna.
Como mencionado anteriormente, a Lei aproveitou condutas ilícitas conhecidas e repro- váveis, dando-lhes novas perspectivas. O proble- ma mais flagrante aparece quando se vê que essa lei irá conviver com a Lei de Licitações (Lei nº 8.666), a Lei de Improbidade (Lei nº 8.429) e a Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529). Todas elas prevendo condutas ilícitas, se não idênticas, ao menos muito assemelhadas com as previstas na Lei Anticorrupção, mas com san- ções diversas.
A Lei 12.529/2011 (Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), por exemplo, em seu artigo 36, §3º, I, “d”, caracteriza como infra- ção contra ordem econômica acordar, combinar, manipular, ajustar com concorrente, sob qual- quer forma, preços, condições, vantagens ou abs- tenção em licitação pública. Assim, as empresas que por meio de seus funcionários acordarem valores em determinado certame licitatório esta- rão incidindo no referido dispositivo. Ocorre que, para a Lei 12.846/2013, a aludida conduta também representa uma infração prevista em seu art. 5º, inciso IV, alínea “a”. Neste caso, em que a situação fática tanto pode representar uma in- fração perante a Lei Anticorrupção quanto ante a Lei de Defesa da Concorrência, qual norma de- verá ser aplicada?
O perigo de ocorrer bis in idem é grande, já que os atos lesivos à administração pública e os bens jurídicos tutelados ou se identificam ou estão presentes na Lei Anticorrupção, mostrando um real conflito aparente de normas sancionatórias.
4. Responsabilidade objetiva
Inovação relevante trazida pela Lei Anticorrup- ção que merece atenção refere-se à questão da responsabilidade objetiva atribuída à pessoa jurí- dica, conforme texto do seu artigo 2º. Por meio desse dispositivo, a nova lei permite a punição da pessoa jurídica, independentemente da comprovação de dolo ou culpa por parte da companhia. No passado, o funcionário que cometesse quaisquer das condutas previstas na Lei 12.846/2013 responderia por crime de corrupção ativa, fraude à licitação, entre outros delitos, e a empresa poderia, em tese, responder por improbidade administrativa, caso tivesse se beneficiado do ato e caso houvesse a concordância do agente público. Agora, com a atual mudança, a pessoa jurídica poderá ser punida independentemente da sua efetiva concordância com a infração.
No tocante às punições, a Lei Anticorrupção pre- vê pesadas sanções às condutas ilícitas, não mais se limitando à figura do administrador ou do re- presentante legal. A lei dispõe de uma série de mecanismos para recuperação do patrimônio público, uma vez que a maior parte das sanções é de natureza pecuniária, com caráter punitivo indenizatório.
As sanções se dividem em administrativas e judiciais. As primeiras abrangem as multas, no va- lor de 0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, que nunca poderão ser inferiores à vantagem auferida, e a publicação extraordinária da decisão condenatória.
Quando não for possível calcular o montante referente ao valor do faturamento bruto, a Lei prevê a aplicação de multa no valor de R$ 6 mil a R$ 60 milhões.
A lei ainda não está em vigor, o que só ocorrerá ao final de fevereiro de 2014, mas já traz preocupa- ções quanto ao parâmetro impreciso, a falta de crité- rios objetivos, outorgando grande liberdade à Autori- dade Administrativa no momento da aplicação da multa. Por essa mesma razão, deve-se sempre exigir decisões bem fundamentadas e individualizadas, para que não se abra espaço a juízos discricionários.
5. Sanções
Com relação às sanções judiciais, a lei prevê a possibilidade de perdimento de bens, di- reitos ou valores, suspensão ou interdição parcial das atividades da empresa, dissolução compul- sória da pessoa jurídica ou proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de entidades financeiras públicas ou controladas pelo poder público.
A pena de dissolução compulsória da pessoa jurídica, por tratar-se de punição irreversível, merece cautela em sua análise. Uma vez que a lei estabelece a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, haverá a necessidade de o juiz seguir critérios rigorosos para não ensejar abusos no momento da aplicação da pena.
Além disso, uma preocupação geral paira so- bre a aplicação das penas previstas na Lei Anti- corrupção. Juízes cíveis estarão julgando matéria fundamentalmente penal. Como se tem visto em relação à lei de improbidade, não tem havido, em muitos casos, preocupação em justificar penas além do mínimo ou rigor na exigência de todos os elementos do tipo administrativo previsto. Espera-se que a doutrina e a jurisprudência dos Tribunais forneçam parâmetros consistentes para que se evitem injustiças.
Cabe notar que a lei expressa o ápice do po- der de polícia emanado pelo Estado ao prever em seus dispositivos a possibilidade de duas sanções diferentes para o mesmo fato. Uma pela autori- dade administrativa e outra na esfera judicial. O artigo 18 expressamente aduz que a responsabili- zação da pessoa jurídica em uma das esferas não afasta a possibilidade na outra9.
6. Acordo de leniência
Seguindo a mesma linha da Lei de Defesa da Concorrência, a Lei Anticorrupção contempla a possibilidade de a pessoa jurídica celebrar acor- dos de leniência. Tais acordos ensejam efetiva colaboração da pessoa jurídica responsável pela prá- tica da infração, ou parte dela, nas investigações.
Ademais, é necessário que dessa colaboração resulte a identificação dos demais envolvidos na infração e a obtenção célere de informações e do- cumentos que comprovem o ilícito sob apuração. O acordo de leniência somente poderá ser ce- lebrado desde que, cumulativamente: i) a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para apuração do ato ilícito; ii) cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data da propositura do acordo; e iii) admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo.
O acordo de leniência isentará a pessoa jurídi- ca da sanção de publicação extraordinária da deci- são condenatória, bem como de proibição de rece- ber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicos e de instituições financeiras públicas. Ademais, reduzi- rá em até 2/3 o valor da multa aplicável.
Uma dúvida que aparece ao tratarmos do as- sunto refere-se à questão da ação penal. Haverá o mesmo procedimento utilizado na Lei de Defesa da Concorrência, que elimina eventual possibili- dade de denúncia por parte do Ministério Público na esfera penal quando houver acordo de leniên- cia? Acreditamos que isto seria o mais adequa- do, por aumentar o incentivo à cooperação.
7. Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP
A nova lei cria o Cadastro Nacional de Em- presas Punidas (CNEP), que reunirá e dará publicidade às punições aplicadas segundo a Lei 12.846, facilitando, assim, a consulta de informa- ções sobre instituições empresariais. Crê-se que o CNEP seguirá o modelo adotado pelo Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas.
O aludido cadastro mostra-se um inteligente mecanismo de repressão e de combate à corrupção, com o intuito de inibir pessoas jurídicas de cometimento de atos contra a Administração Pú- blica, mas poderá representar agravação de uma situação de arbítrio praticado contra a empresa por uma autoridade local e que gerará graves consequências até sua correção por via judicial.
8. Competência
A questão da competência será um tema de- safiador. A lei conferiu à autoridade máxima de cada órgão ou entidade da Administração Pública o poder de instaurar e julgar o processo administrativo para apuração da responsabilida- de da pessoa jurídica, permitindo a delegação. Ao mesmo tempo, estabelece, na esfera federal, a competência concorrente da Controladoria-Geral da União (CGU) para a mesma missão, incluindo os poderes de avocação.
Essa multiplicidade de competências poderá resultar em ineficiência dos processos adminis- trativos, principalmente nos níveis regionais e locais, mormente se considerada a influência do poder político. A atribuição da instauração e da condução dos processos administrativos a um único órgão para desenvolvimento de conheci- mento técnico necessário para atuar na área pode ser a melhor solução.
A única exceção à regra diz respeito aos pro- cessos relativos à Administração Pública es- trangeira, cuja competência coube exclusiva- mente à CGU.
Cumpre identificar e buscar esclarecer essas imprecisões legais, como o caráter vago de algu- mas condutas puníveis, a multiplicidade de san- ções, a pluralidade de instâncias competentes para apuração e sancionamento de uma conduta, porque, ademais de causar insegurança jurídica, certamente levarão angústia ao empresariado na- cional, motivada por medo de abusos ou arbitra- riedade. Tal temor é agravado pela gravidade das penas e pelo alto valor das multas previstas.
Será interessante pensar, para o futuro ime- diato, em mecanismos de compliance na admi- nistração pública, para reconhecimento formal da necessidade de treinamento dos funcionários encarregados do cumprimento das normas le- gais, inclusive quanto aos deveres previstos pelo Código de Conduta para Funcionários Encarre- gados de Cumprir a Lei, adotado pela Assem- bleia Geral da ONU (Resolução 34/169, de 17.12.1979).
Da mesma forma, seria imperativa a aprova- ção e a sanção de uma lei federal de defesa do usuário do serviço público, a exemplo do que já fez o Estado de São Paulo, exigência constitucio- nal trazida no artigo 37, parágrafo 3º, da Consti- tuição Federal.
- Programas de Compliance
A Lei Anticorrupção importou do direito ame- ricano o conceito de compliance, procedi- mento a ser implantado por pessoas jurídicas para garantir a conformidade de suas condutas às exigências de determinada jurisdição ou setor. Trata-se, em outras palavras, de “ato de cumprir, de estar em conformidade e executar regulamen- tos internos e externos, impostos às atividades da instituição, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e ao regulatório/legal”10.
O principal objetivo de um programa de com- pliance é o planejamento de atividades, tais como a revisão de políticas internas, código de ética e conduta e gestão de risco, para obter uma difusão da cultura da integridade no ambiente da empresa. O artigo 7º, inciso VIII, da Lei Anticorrupção prevê a consideração, no momento da aplicação das sanções, da “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.
Esse dispositivo, atrelado à introdução da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, fará da empresa, embora a custos elevados, a principal interessada em prevenir, investigar e descobrir desvios de condutas e eventuais violações à lei, perpetrados por seus funcionários e/ou dirigentes.
Interessante ainda destacar que a referida pre- visão irá consolidar a cultura do compliance no país, incentivando o empresariado brasileiro a in- vestir em políticas de controle interno para o cum- primento de normas e regulamentos, a fim de mi- tigar riscos, evitando, assim, o comprometimento da instituição com condutas ilícitas, bem como fortalecendo a imagem da empresa perante a so- ciedade em geral e, em especial, diante de seus consumidores clientes, parceiros e colaboradores. Com o objetivo de alcançar um ambiente li- vre de condutas capazes de violar a Lei Anticor- rupção, os programas de compliance deverão in- corporar um Código de Ética e de Conduta de fácil compreensão, canal de denúncias que pres- tigie o anonimato, treinamentos contínuos, mecanismos de comunicação de fácil acesso a todos os funcionários da empresa, monitoramento de áreas sensíveis etc.
Os programas de compliance já criados ne- cessitam ser revistos regularmente, com base na avaliação dos potenciais riscos a que a empresa e seu nicho de negócio estão sujeitos. No entanto, a mera revisão do programa não basta. É impe- rioso divulgar e aplicar efetivamente tais programas dentro das respectivas instituições empresa- riais. Outro ponto de grande importância refere-se a due diligences em empresas da corrente produtiva e nas operações societárias. A fim de prevenir eventuais problemas com a nova lei, é fundamental a empresa realizar due diligence an- ticorrupção em terceiros (fornecedores, entre ou- tros), para evitar o risco de ser responsabilizada objetivamente por atos lesivos à Administração Pública, praticados em seu benefício ou interes- se, ainda que por terceiros.
Em poucas palavras: para ser efetivo, um pro- grama de compliance exige o comprometimento da pessoa jurídica como um todo em todas as fa- ses e aspectos de sua implantação e manutenção.
Um aspecto delicado sobre o tema refere-se a denúncias de condutas que possam significar violação da nova lei ou o cometimento de fraudes dentro da companhia. Nesses casos, as em- presas devem responder rapidamente e investi- gar os fatos denunciados.
A realização de uma sólida investigação in- terna, além de mostrar o grau de comprometi- mento da pessoa jurídica como um todo e da ade- são da alta administração à cultura do complian- ce, também facilita um melhor posicionamento quanto à tomada de decisões sobre possível cele- bração de acordo de leniência, reporte voluntá- rio, demissão de funcionários etc.
Outro ponto de relevância está na realização de treinamentos de funcionários ou de terceiros que atuem em nome da empresa perante a Admi- nistração Pública. É necessário que todos na em- presa sejam bem informados sobre as mudanças estipuladas pela Lei Anticorrupção, e essa opor- tunidade de abordagem do tema deve ser apro- veitada para que se relembrem e reavaliem polí- ticas e procedimentos internos.
De qualquer forma, este é um momento de as- soberbamento dos órgãos de controle, com tantas informações a processar, tantas condutas a anali- sar, por tão diversas óticas. Oxalá, dessa sobrecar- ga não resulte na inversão do princípio da vincula- ção, da obrigatoriedade da investigação diante de todo ato de corrupção, pelo princípio da discricio- naridade ou, melhor dizendo, do arbítrio (opção política ou meramente pessoal de investigar prin- cipal ou primeiramente este ou aquele ato, desta ou daquela empresa, segundo as convicções sub- jetivas, partidárias ou ideológicas da autoridade).
10. Comparativo entre a Lei Anticorrupção, o FCPA e o UK Bribery Act
O tema compliance vem sendo destaque internacionalmente nos últimos anos devido à existência do Foreign Corrupt Practices (FCPA) e da lei britânica UK Bribery Act. Am- bos os ordenamentos, assim como a Lei Anti- corrupção, procuram combater a corrupção de funcionários públicos estrangeiros. No entanto, diferentemente da lei americana FCPA, que somente se preocupou em combater casos de cor- rupção envolvendo funcionários públicos estran- geiros, o legislador brasileiro decidiu por seguir a mesma linha da legislação britânica e respon- sabilizar a pessoa jurídica que pratique tanto atos contra a Administração Pública nacional quanto a estrangeira.
Diferentemente do FCPA e UK Bribery Act, a lei brasileira inclui outros atos lesivos contra a Administração Pública, como, por exemplo, fraudar uma licitação, perturbar a realização de um procedimento licitatório público, afastar lici- tante por meio de fraude ou oferecimento de van- tagem de qualquer tipo e manipular o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a Administração.
Outra diferença refere-se à responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo cometimento de in- frações contra a Administração Pública. Tanto o FCPA como o UK Bribery Act preveem a possi- bilidade da responsabilidade penal da pessoa ju- rídica em atos de corrupção cometidos por fun- cionários ou terceiros relacionados à empresa.
Nos Estados Unidos, a Securities and Exchange Commission e o Departamento de Justiça (DOJ) podem arquivar o caso ou inocentar a empresa que consiga comprovar seu não envolvimento em de- terminada conduta criminosa, mesmo tendo sido beneficiada por aludido ato, demonstrando ter to- mado todas as precauções e medidas necessárias de prevenção e combate à corrupção.
O Bribery Act, em vigor no Reino Unido des- de julho de 2011, estabelece como defesa absolu- ta, capaz de isentar a responsabilidade da pessoa jurídica, a existência efetiva de mecanismos e procedimentos adequados de compliance.
A lei brasileira não prevê essa benesse. Peca por não acrescentar uma isenção absoluta de pena para casos em que a pessoa jurídica tenha tomado todas as medidas de prevenção cabíveis e, mesmo assim, se veja à mercê de uma situa- ção em que seus funcionários ultrapassaram a barreira moral.
A lei americana dispõe sobre a responsabilida- de subjetiva civil e criminal da pessoa jurídica, diferentemente da lei brasileira e também do UK Bribery Act, que prevê a responsabilidade objeti- va da pessoa jurídica por casos de “fracasso em prevenir a corrupção” (failure to prevent bribery). Percebe-se, com essa comparação, que a Lei Anticorrupção representa um notável instrumen- to de combate à corrupção, notadamente em rela- ção às infrações cometidas em contextos empre- sariais complexos, envolvendo práticas sofistica- das. Antes, a repressão aos delitos econômicos e ao crime organizado dava-se através da criação de leis incriminadoras ou majoração das penas previstas. Agora, com o advento da Lei 12.846/2013, verifica-se uma mudança na ótica do legislador quanto à forma de enfrentamento desses esquemas delitivos, reconhecendo que a busca pela informação e o cerco aos principais beneficiários revelam-se muito mais eficazes para o combate à corrupção.
Por último, mas não menos importante, de- vemos ressaltar que determinadas empresas, por exemplo, aquelas que lidam com ADRs (American Depositary Receipts) no mercado global, podem estar sujeitas a outras leis, além das brasileiras. Assim, também por esse motivo, avulta a importância de práticas efetivas e inte- ligentes de compliance.
O momento oferece aos empresários um con- selho: adaptem-se às inovações trazidas pela Lei Anticorrupção, implantando suas ferramentas e mecanismos de prevenção e planejamento estra- tégico, para, assim, monitorarem seu relaciona- mento com a Administração Pública, com a fina- lidade de evitar, no futuro, alguma surpresa inde- sejada. Ademais, o mecanismo ligado à integri- dade permitirá alçar um novo patamar de cultura cidadã e empresarial de honestidade, que rever- berará em toda a sociedade. Quanto ao preocupante grau de arbítrio, hoje possibilitado pela nova lei, espera-se que o tem- po e o bom senso se encarreguem de limitar ou minimizar esse problema, ao mesmo tempo em que ensejem a multiplicação e a ampliação das boas práticas previstas pela mesma legislação.
- Entrevista ao site BBC Brasil da historiadora Denise Moura, “Corrupção no Brasil tem origem no período colonial” http://www.bbc.co.uk/portuguese/
- noticias/2012/11/121026_corrupcao_origens_mdb.shtml. Acesso em: 21/11/2013.
- MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil. São Paulo: Saint Paul, 1ª Ed., 2008, p. 16.
- Coaf – órgão criado para prevenir a utilização dos setores econômicos para a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo, promovendo a cooperação e o intercâmbio de informações entre os Setores Público e Privado (https:// www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/institucional/o-coaf/ missao-valores-e-visao-do-coaf). Acesso em: 21/11/2013.
- SELISTRE PEÑA, Eduardo Chemale. Punição às empresas é diferencial da Lei Anticorrupção. http://www.conjur.com. br/2013-set-26/eduardo-pena-punicao-empresas-diferencial- lei-anticorrupcao. Acesso em: 29/09/2013.
- http://www.conjur.com.br/2013-ago-06/direito-defesa-lei- anticorrupcao-estimular-compliance. Acesso em: 21/11/2013.
- BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais; comentários à Lei 9.613/1998 com as alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012
- DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado: acompanhado de comentários, jurisprudência, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 794.
- IV – no tocante a licitações e contratos:
- a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;
- b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;
- c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;
- d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;
- e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar
- contrato administrativo;
- f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou
- g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública.
- MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil. São Paulo: Saint Paul, 1ª Ed., 2008, p. 15.
- Art. 18. Na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial.
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