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Interesse Nacional
11 julho 2019

Liberdade de Imprensa e o Combate à Corrupção

Em abril, a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) divulgou a versão 2019 de seu relatório anual (elaborado desde 2002) sobre o status atual no plano internacional da liberdade de imprensa, examinando criteriosamente as situações de 180 países.
Coincidentemente, a publicização aconteceu no momento em que os veículos de imprensa brasileiros Crusoé e O Antagonista foram censurados por decisão de um dos ministros do STF (esses casos não foram obviamente contabilizados no índice), a partir de provocação do presidente da mesma corte, desagradado pela divulgação de documento acessível pela internet, que pode ser interpretado como incriminador, apontando-o como beneficiário de propina à época que ocupava o cargo de advogado-geral da União.
Também neste mesmo contexto, veio à tona o fato que uma empreiteira corruptora, cujo presidente vem colaborando de forma premiada com a justiça, mantinha, além do já famoso “departamento de operações estruturadas”, que planejava a distribuição de pagamentos de vantagens indevidas, um “bunker da propina” em plena Avenida Faria Lima, em São Paulo, com estocagem de vultosas quantias de dinheiro vivo para concretizar e operacionalizar variado sortimento de atos de abuso de poder.
O aspecto positivo da história da censura (se é que seja possível encontrar) foi a reação pronta e vigorosa da sociedade civil, de parte significativa do meio jurídico, de outros ministros do STF e da imprensa, inclusive internacional, repudiando com veemência a atitude, classificada como ato de indisfarçável autoritarismo togado pelo Instituto Não Aceito Corrupção e outras cinco entidades, em nota pública apresentada na sequência aos terríveis fatos. Tanto que o próprio ministro, na sequência, retrocedeu e revogou sua decisão.
Afinal, numa democracia verdadeira, quem deve decidir se e como será absorvida ou não uma informação, se ela é de boa qualidade ou não, é o destinatário, e não o Poder Judiciário. Os atingidos podem e devem agir em defesa de sua honra e contra eventuais atos de irresponsabilidade de opinião, se houver, que devem ser punidos exemplarmente, mediante e somente após o devido processo legal.
No entanto, mantém-se vivo e em curso inquérito instaurado pelo Supremo Tribunal Federal para apurar supostas fake news que seriam disseminadas para supostamente atacar a honra de integrantes daquela corte, tendo sido o procedimento investigatório iniciado por determinação de seu presidente, cujo relator determina buscas e apreensões. Chama a atenção ali a concentração de papeis e poderes pelo STF, com a exclusão do Ministério Público, que, nos termos da Constituição, é o titular exclusivo da ação penal pública.
A Procuradoria Geral da República manifestou-se formalmente no caso, promovendo o arquivamento do procedimento inquisitorial, sendo o pedido indeferido pelo ministro relator, o que forçosamente levará a apreciação do mérito sobre tal procedimento investigatório ao plenário da corte, onde, tenho convicção, será arquivado.
Transparência Internacional e Repórteres sem Fronteira
Há poucos meses, a Transparência Internacional divulgou seu índice anual de percepção internacional da corrupção (medido desde 1995) e nele o Brasil ocupa a desfavorável posição 105, exatamente a mesma posição que ocupamos neste mesmo exato universo de 180 países no ranking mundial da liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, cuja metodologia se baseia no desempenho dos países em termos de pluralismo, independência dos meios de comunicação, ambiente e autocensura, arcabouço jurídico e transparência e qualidade da infraestrutura de apoio à produção de informação, não se avaliando, obviamente, as políticas de governo dos países.
Os índices globais e regionais do RSF são calculados a partir da pontuação obtida pelos diferentes países e territórios, estabelecida através de um questionário proposto em 20 línguas a especialistas do mundo inteiro e submetido a uma análise qualitativa.
Vale ressaltar que quanto mais elevado for o índice, pior a situação, sendo certo que vale destacar que mesmo sendo nosso país a nona economia do planeta está próximo do grupo de países em situação difícil (penúltimo pior degrau), os países do alerta vermelho. De 0 a 15 pontos: boa situação (branco); de 15,01 a 25 pontos: situação relativamente boa (amarelo); de 25,01 a 35 pontos: situação sensível (laranja). O Brasil teve 32,79; de 35,01 a 55 pontos: situação difícil (vermelho); de 55,01 a 100: situação grave (preto).
Mas, não é apenas isto. Os campeões da liberdade de imprensa são Noruega, Finlândia, Suécia (que tem sua lei de acesso à informação desde 1766), Holanda e Dinamarca, países que, ao verificarmos o topo do relatório da Transparência Internacional, vemos igualmente entre os dez primeiros colocados, não sendo diferente a situação no ranking da qualidade da educação do Fórum Econômico Mundial (dentre 137 países), no qual novamente entre os 12 primeiros estão Finlândia, Holanda, Dinamarca e Noruega.
O relatório da Repórteres Sem Fronteiras 2019 – A Mecânica do Medo, destaca a sensível percepção em nível global de substancial aumento dos níveis de ódio aos jornalistas, ódio que se tem transformado concretamente em atos de violência contra tais profissionais, em pleno exercício de suas respectivas profissões, crescendo, em decorrência disto, seus níveis de medo para o cumprimento de seus papéis.
Em virtude deste quadro, o Brasil se tornou o 6º lugar mais violento do mundo para o desempenho da profissão de jornalista, conforme ranking da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Estamos atrás apenas de países em manifesta crise institucional, política e até humanitária, como Síria, Iraque, Paquistão, México e Somália.
Punir o crime, e não a verdade, foi o destaque do relatório de 2018 da Unesco sobre segurança dos jornalistas e o perigo da impunidade. O levantamento contabilizou 182 jornalistas assassinados em todo o mundo em 2016 e 2017, o que significa uma morte a cada quatro dias. A mais violenta para o exercício da profissão foi a região da Ásia e Pacífico, com 54 assassinatos. Em seguida, vem os países árabes e a América Latina e Caribe. Em cada uma dessas duas regiões, houve 50 mortes.
O ano de 2016, com 102 mortes, foi mais violento que o de 2017, quando 80 jornalistas foram assassinados no mundo. Na série histórica, o número vem diminuindo desde 2015 e está abaixo do pico verificado em 2012, mas ainda está acima do que era observado até 2011. Segundo a Unesco, 89% dos casos de jornalistas mortos entre 2006 e 2017, para os quais há dados dos processos judiciais, lamentavelmente continuam impunes, o que, inexoravelmente alimenta a manutenção destas práticas criminosas. O problema é maior nos países árabes. Já as regiões com menos impunidade são Europa Ocidental e América do Norte.
Países sem conflitos armados estão concentrando mais o número de mortes. Em 2016, metade era em países nessa situação. Em 2017, os locais sem confrontos respondiam por 55% dos casos. O país em que mais jornalistas foram mortos em 2016 e 2017, por exemplo, foi o México, que registrou 26 casos. Em seguida vêm locais com conflitos armados: Afeganistão, com 24 mortes, Iraque, com 17, e Síria, com 15. Outros países que se destacam negativamente são Iêmen (14), Índia (10 mortes), Paquistão (8) e Guatemala (8).
O relatório da Unesco apontou também a tendência no aumento de mulheres entre as vítimas. Desde que os números começaram a ser coletados em 2006, o ano de 2017 foi aquele que registrou o maior número de jornalistas mulheres assassinadas:11. Em 2016, já tinham sido 10. Elas também são atingidas frontalmente por outros riscos, como assédio sexual, violência sexual e ameaças de violência.
Ranking é desfavorável ao Brasil
O grupo com maior número de jornalistas assassinados no mundo é proveniente da TV, os quais, via de regra, comunicam-se com número maior de pessoas. Eles representaram 45% dos casos em 2017 e 34% em 2016, no entanto são os repórteres locais os que mais são assassinados – 94% do total, uma vez que ataques a jornalistas internacionais costumam atrair mais atenção, o que desinteressa aos criminosos por gerar, em tese, maior mobilização de meios para investigar e trazer respostas à sociedade. Os freelancers (autônomos) também são mais vulneráveis.
Neste quesito, Jamal Khashoggi, o colunista saudita que criticava o regime de governo de Riad – Arábia Saudita e denunciava os obstáculos a uma imprensa livre em seu país será sempre lembrado pela comunidade internacional como um dos exemplos mais cruéis de violação à liberdade de imprensa.
Em outubro de 2018, na condição de colaborador do jornal estadunidense The Washington Post, foi brutalmente assassinado no consulado da Arábia Saudita, em Istambul, na Turquia, quando resolvia questões burocráticas para o casamento com uma turca.
Em seu último artigo “O que o mundo árabe mais precisa é de liberdade de expressão”, publicado logo após sua morte, Khashoggi analisava o relatório anual Freedom in the World (“Liberdade no Mundo”, em tradução livre). Ele denunciou ali prisões, censuras e ataques contra a imprensa no mundo árabe e defendeu uma versão mais moderna da velha mídia nacional, como caminho para que os cidadãos tenham acesso às informações sobre acontecimentos globais.
Mundialmente, os países que vivem sob o domínio de regimes autoritários, via de consequência, têm reforçado seus mecanismos de controle em relação à mídia. Aliás, conforme aponta o relatório da Transparência Internacional, a análise cruzada dos dados do Índice de Percepção da Corrupção (IPC) com os indicadores da democracia no mundo revela ligação entre corrupção e saúde das democracias.
Democracias plenas marcaram, em média, 75 pontos no Índice de Percepção da Corrupção, ao passo que democracias falhas obtiveram uma pontuação média de 49; regimes híbridos – que têm alguns elementos de tendências autocráticas – pontuaram 35; e os regimes genuinamente autocráticos tiveram as piores pontuações, com média de apenas 30 pontos no IPC.
Exemplificando esta tendência, as pontuações do IPC da Hungria e da Turquia diminuíram, respectivamente, oito e nove pontos nos últimos cinco anos. No mesmo período, a Turquia de Erdogan foi rebaixada de “parcialmente livre” para “não livre”, enquanto a Hungria de Orbán registrou sua pontuação mais baixa em matéria de direitos políticos desde a queda do comunismo em 1989.
Tais notas refletem, nesses países, indiscutivelmente, a deterioração dos pilares que sustentam o Estado de Direito e mesmo das instituições democráticas, bem como uma abrupta e grave diminuição do espaço da sociedade civil e da imprensa livre e independente. De modo geral, os países com elevados níveis de corrupção podem ser lugares especialmente perigosos para opositores políticos. Praticamente, todos os países onde assassinatos políticos são ordenados ou tolerados pelo governo são classificados como altamente corruptos no IPC.
Sintomática e ilustrativamente, na parte inferior das tabelas das avaliações da Transparência Internacional e da Repórteres Sem Fronteiras vemos, por exemplo, a Coreia do Norte, onde a ditadura de Kim Jong-un bloqueia a liberdade de imprensa e de expressão, produzindo previsível percepção de corrupção.
Em matéria de fé e confiança na democracia, o Latinobarómetro 2018, mais importante indicador nos planos social, político e econômico dos 18 países da América Latina, aponta para perigoso aumento do número de pessoas na região indiferentes à ascensão de ditaduras.
Além disto, detecta grave crescimento de número de pessoas que têm a percepção clara de que os detentores do poder o exercem para dele se auto-beneficiar, e não o bem comum. O Brasil é o pior colocado, com apenas 7% dos brasileiros avaliando que se utiliza o poder para o bem de todos (em 2017, o quadro era ainda pior: 3%).
Retornando à aferição de níveis de liberdade de imprensa, em nível nacional, dois outros recentes relatórios (CNMP e Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) reforçam e consolidam as conclusões da RSF e Unesco. Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público, nos últimos 23 anos, houve no Brasil 64 assassinatos de jornalistas, mortos em razão do exercício da profissão.
Destes, metade não foi elucidada, o que, reitero, retroalimenta o ciclo, pois amplifica a percepção de impunidade em relação a tais ataques, que vulneram o Estado Democrático de Direito. Chama a atenção o fato de ocupar o Rio de Janeiro o posto de unidade da federação com maior número de assassinatos – 13 (um dos quais, de Tim Lopes). A Bahia é o segundo com quase metade (7). Em seguida vêm Maranhão, com seis, e Ceará, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Pernambuco, com quatro cada. Apenas oito unidades da federação não têm casos registrados: Acre, Amapá, Distrito Federal, Piauí, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Tocantins.
Chama a atenção o fato, porque o Rio de Janeiro tem sido igualmente protagonista nacional em matéria de corrupção, estando presos, ou já tendo sido, os últimos quatro governadores do Estado – Sérgio Cabral, Pezão, Antony Garotinho e Rosinha Garotinho, além de cinco dos sete conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, entre outros.
Também por proibir o presidente da Assembleia do Rio a entrada do povo (mesmo munido de ordem judicial garantidora) nas galerias para acompanhar sessão da Alerj em que se deliberaria sobre a manutenção ou não de três deputados estaduais por corrupção, sem podermos deixar de lembrar que dois ex-procuradores-gerais de Justiça (chefes do Ministério Público) do Rio foram mencionados nos acordos de delação premiada.
Quase todos os atos violentos analisados no relatório do CNMP ocorreram longe dos grandes centros urbanos, envolvendo jornalistas, profissionais de imprensa e comunicadores autônomos ou pertencentes a pequenos grupos de mídia, muitos deles blogueiros e radialistas.
Essa circunstância dificulta a aquisição do conhecimento em relação aos episódios pela massa da população, ficando a repercussão limitada ao território onde ocorreram, diz trecho do relatório, que ainda aponta as “notórias deficiências estruturais das Polícias Judiciárias, sobretudo nos rincões do país”.
Imprensa livre e sociedades transparentes
As mortes são a “ponta do iceberg” das ameaças que existem contra jornalistas, que incluem prisões e detenções ilegais, sequestros e outras formas de violência. Imprensa livre indiscutivelmente garante sociedades transparentes, onde todos podem acessar informações e não há dúvida de que o caminho estratégico a ser seguido é o de priorizar a investigação e a responsabilização rápida e exemplar destes delitos, mobilizando meios na Polícia, Ministério Público e Magistratura para que a resposta seja pronta, eficiente e desestimuladora à reedição da prática.
Quanto mais se mantém o modelo burocrático de tratar um homicídio de jornalista como um crime igual a outro qualquer, a impunidade reinante determinará o prosseguimento sistemático do cometimento de tais delitos, com os quais se pretende calar a própria voz da sociedade e impedir que a imprensa livre e independente investigue desmandos políticos e práticas corruptas.
O Relatório Abert sobre Violações à Liberdade de Expressão – 2018 mostra um outro quadro também bastante preocupante, com relação aos casos de violência não letal. Foram 114 registros, envolvendo pelo menos 165 profissionais e veículos de imprensa.
Na comparação com 2017, houve um aumento de 50%, quando foram registrados 76 casos. Diferentemente do levantamento do ano anterior, os crimes virtuais – ameaças, ofensas e ataques no ambiente digital – promovidos por notícias falsas e ódio disseminado contra jornalistas nas redes sociais são tratados em capítulo à parte.
Em 2018, três radialistas brasileiros foram mortos, vítimas da intolerância daqueles aos quais não convém a veracidade dos fatos. Jefferson Pureza Lopes, Jairo Sousa e Marlon Carvalho, todos profissionais de rádio de cidades do interior do país, foram executados após a divulgação de críticas e denúncias contra autoridades públicas e políticos locais.
O levantamento da Abert indica um aumento de 200% no número de assassinatos em relação a 2017, quando apenas um jornalista foi morto por desempenhar a missão de informar.
Em um ano marcado por importantes fatos de interesse público, como a paralisação dos caminhoneiros, a prisão do ex-presidente Lula e as eleições, os profissionais da imprensa e veículos de comunicação foram, mais uma vez, alvo de manifestantes e militantes partidários.
O desconhecimento do real papel da imprensa – de informar a sociedade sobre fatos que impactam o seu cotidiano – e a intolerância foram responsáveis pelas agressões físicas e hostilidades contra os jornalistas que estavam em campo cumprindo sua missão.
Antes do advento do Iluminismo, no século XVIII, a opacidade era a regra e sempre determinou o tom das relações entre pessoas e instituições. O próprio nome do movimento, a chamada “Era das Luzes” assim ficou conhecida em razão da natureza da reformulação cultural que se consolidava, modificando inclusive o eixo de poder até então vigente: Estado-Igreja, surgindo um novo tempo de preocupação central com o ser humano, controle e desconcentração do poder inclusive com a separação entre Estado e Igreja, fortalecendo-se o conceito de laicização do Estado.
No capítulo “a democracia e o poder invisível”, da obra “O futuro da democracia”, Norberto Bobbio, considerado um dos grandes filósofos políticos, afirma que a democracia é o governo do poder visível e que nela nada pode permanecer confinado no espaço do mistério. Por isto, define o governo da democracia como “o governo do poder público em público”.
Conforme Inacio Strieder, em seu estudo sobre a Transparência Democrática, “um governo democrático se distingue dos governos imperiais, ditatoriais ou tirânicos por sua visibilidade e transparência. A verdadeira democracia não admite mais que as decisões do poder sejam gestadas nas profundezas dos “arcanos do império”, ou nas caladas da noite por escusos “acordos de cavalheiros”.
Por sua própria natureza, o poder democrático deve ser exercido com o máximo de transparência, às claras, e com a participação e o consentimento consciente dos cidadãos. Por isto, a preocupação com a transparência numa sociedade democrática é fundamental, e uma questão de ética.
Mas, até que ponto, na prática, a transparência democrática tem assegurado maturidade política entre nós? Vejamos o exemplo das últimas eleições presidenciais. A responsabilização penal de Lula pareceu irrelevante para o povo, especialmente o nordestino. Afinal, naquela região ele ainda é considerado um novo Padre Cícero, pois colocou comida na mesa e trouxe luz às casas. Se houve ou não desvios, isto não impediu que os eleitores quisessem votar nele ou em quem ele determinasse.
O candidato ultradireitista, que seria eleito ao final presidente, sofreu atentado a faca, um dia antes do feriado da Independência, em circunstâncias estranhas, ainda não (e talvez nunca) esclarecidas, num verdadeiro ataque à democracia e ao povo, vez que suas primeiras perspectivas de recuperação já sinalizaram alta para poucos dias antes das eleições. Estava bem caracterizada a cena do drama e do martírio.
Em virtude do ataque sofrido e das consequências geradas em seu estado de saúde, não compareceu ele aos debates públicos presidenciais, o que prejudicou o processo dialógico que sempre precede as eleições.
Como se não fosse o suficiente, o então candidato atingido pela facada suscitou antecipadamente dúvidas acerca do resultado das eleições por voto eletrônico, caso não se sagrasse o vencedor, sendo inolvidável que foi eleito sucessivamente deputado federal por meio deste mesmo voto eletrônico sem nunca ter questionado sua eficiência e operacionalidade.
Paralelamente, seu parceiro de chapa, um general das Forças Armadas, falou em uma nova Constituição elaborada sem consulta ao povo, dando a entender que se poderia construir um novo texto “de cima para baixo”, outorgado, imposto, mesmo diante de nossa base elementar de existência ético-jurídica que é o Estado Democrático de Direito e se deve conceituar como tal a condição de conformidade ao conjunto de regras legais democráticas estabelecidas como elementos essenciais no Contrato Social, que evoluiu e se consolidou desde a Proclamação da República até os dias de hoje com o voto universal, incluindo mulheres e pobres.
Existir esta conformidade significa haver normalidade social, estabilidade republicana e cumprimento dos preceitos democráticos, sistema em que o poder é exercido pelo povo, em nome do povo e para o povo. Ou seja, para o bem do povo, ainda que tenhamos desigualdades sociais e injustiças abissais além de políticas públicas ainda não concretizadas.
Como detectar um governante autoritário
O desvirtuamento destes elementos significa ataque direto e visceral à nossa Constituição e a negação do próprio sistema democrático, disto podendo advir atos de abuso de poder, inclusive corruptos. É digno de registro, aliás, que em sua mais nova obra, intitulada “Como as Democracias Morrem”, os professores de Ciência Política da Universidade estadunidense de Harvard, Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, após criteriosos estudos e vivenciando de perto a era Donald Trump, apontam 4 conclusões sobre critérios para se detectar um autoritário, que merecem reflexão em relação ao nosso cenário político.
São elas a trapaça, que seria a rejeição ou o débil compromisso em relação às regras democráticas; o ilegítimo, total e completa negação da legitimidade dos oponentes políticos; aniquilação, que nada mais é que o encorajamento ou a tolerância a atos de violência; e, por fim, a censura – propensão à restrição das liberdades civis de seus oponentes, inclusive no campo específico da mídia.
Ziblatt e Levitsky citam Trump, (Estados Unidos), Erdogan (Turquia), Orbán (Hungria), Putin (Rússia) e Chávez (Venezuela) como exemplos de autoritários que efetivamente mataram suas democracias fazendo uso das próprias regras democráticas, sem que o povo percebesse as manobras.
A democracia não é um detalhe ou um acessório desimportante. É premissa fundamental indisponível, a partir da qual se assentam as construções da justiça e da ética. Qualquer modelo político que não a pressuponha implica ruptura do contrato social, que nos garante a coexistência pacífica e campo aberto para o autoritarismo e a corrupção. Isto nada mais é que ditadura, selvageria e barbárie.
À integridade e à transparência está contraposta a corrupção. Por tal razão, o grau de corrupção também está relacionado ao denominado “fator opacidade”, que pode ser expresso pela seguinte fórmula: “Oi = 1/5 [Ci + Li + Ei + Ai +Ri]”, conforme estudo apresentado no Congresso Nacional de Jovens Lideranças Empresariais, Ética e Transparência para o Aperfeiçoamento Contínuo da Sociedade. As variáveis da fórmula expressam as informações a seguir discriminadas:
i = país;
O = pontuação final;
C = impacto de práticas corruptas;
L = efeito da opacidade legal e judicial;
E = efeito da opacidade econômica e política;
A = efeito da opacidade contábil; e
R = impacto da opacidade regulatória e incerteza e arbitrariedade.
Ao mesmo tempo, precisamos ter consciência de nosso atraso em relação ao resto do mundo em matéria de transparência como um todo. Nossa lei de acesso à informação pública vigora desde 2012, ao passo que em países como a Suécia as regras do jogo são norteadas desta forma desde 1766.
Mudanças culturais não se processam num estalar de dedos, não acontecem em meses nem mesmo em anos ou décadas, mas sim, ao longo de gerações, o que talvez nos permita lidar com o fato que, na Suécia, se alguém pronuncia a frase: Você sabe com quem está falando? Está sujeito a processo criminal e pena de privação de liberdade.
Ao mesmo tempo, entre nós, quando uma corajosa agente de trânsito quis responsabilizar um magistrado no Rio de Janeiro por violar as leis, abordando-o e multando-o, foi enquadrada por ele que logo afirmou ser juiz, sugerindo que isto lhe garantia a absurda e impensável imunidade.
Ela rebateu sua afirmação, compreensivelmente, afirmando que o fato de ser magistrado não lhe conferiria a condição de Deus, o que ensejou ação civil reparatória por perdas e danos morais proposta pelo magistrado em face da agente de trânsito, julgada procedente.
Ou seja, ao passo que na Suécia o magistrado seria processado e preso pela atitude de abuso de poder, no Brasil, com base na lei, o mesmo fato gera obtenção de indenização por ofensa moral, o que evidencia a altura da montanha de civilidade que precisamos escalar para podermos atingir os patamares escandinavos.
Nesta perspectiva, da ética democrática transparente, vale sempre lembrar o ensinamento do festejado professor Robert Klitgaard, de Ciência Política, na Universidade da Califórnia, o qual esculpiu importante equação que classifica a concentração de poder político, os monopólios econômicos e a opacidade como elementos que contribuem para a criação de ambiente propício à prática da corrupção. E, naturalmente, a desconcentração do poder político e empresarial, assim como a transparência, são seus antídotos quanto mais forem associados.
Procurando os denominadores comuns dos indicadores apresentados pelas análises voltadas para a liberdade de imprensa e percepção da corrupção, não é tão difícil concluir que governanças políticas éticas, representativas, sólidas e confiáveis, com minimização das desigualdades, punição rigorosa da corrupção, bons caminhos na educação e prevalência da transparência democrática são elementos conducentes a bons resultados na luta internacional anticorrupção.
Assimilar bons exemplos internacionais
Sob outro ponto de vista, a Coreia do Sul, que parecia conosco em matéria de corrupção há 30 anos, virou sua própria mesa, com investimento maciço em educação integral. Cingapura é outro exemplo interessante. Além disto, a famosa interrogação de Shakespeare por volta do século XVI em Hamlet sobre a existência de algo de podre no reino da Dinamarca, retratando-a como envolta em traição, vingança, corrupção e imoralidade deu lugar a um país hoje campeão mundial anticorrupção, de igualdade social, empreendedorismo, felicidade, educação, liberdade de imprensa e muito mais.
Saibamos assimilar lições oriundas dos indicadores das pesquisas e de bons exemplos internacionais para reverter nossa própria realidade, implementando uma verdadeira e profunda reforma política e eleitoral, criminalizando de verdade o caixa dois eleitoral, implementando programas de integridade obrigatórios nos partidos políticos e exorcizando jabutis legislativos e indultos fantasmagóricos a corruptos.
Permitir candidaturas avulsas, eliminar o nefasto foro privilegiado e prender corruptos com naturalidade após condenação em segundo grau, como faz o resto do mundo ocidental democrático são iniciativas que nos permitirão avançar rumo à civilidade e à prevalência do império da lei e da justiça.
Assassinatos contra jornalistas no exercício de suas funções é crime contra o Estado Democrático de Direito, e, utilizando a teoria de Klitgaard, é facilmente perceptível que atos que atentam contra a liberdade de imprensa facilitam a prática da corrupção, pois reduzem o potencial de transparência gerado pelo trabalho da imprensa livre.

É procurador de Justiça no Ministério Público de São Paulo, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção

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